STJ decide se é possível incluir gênero neutro no registro civil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

STJ decide se é possível incluir gênero neutro no registro civil

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidirá, pela primeira vez, se é possível a retificação do registro civil para constar o gênero neutro (REsp 2.135.967).

A ministra Nancy Andrighi, antecipando seu entendimento, já votou pela possibilidade de retificação em registro civil a fim de alterar o gênero para neutro. 

O caso que chegou à Corte é de uma pessoa que, após realizar cirurgias e tratamento hormonal para alteração de gênero, não se adaptou à mudança, e afirma, agora, não se identificar nem como homem, nem como mulher.

A ministra ressaltou a complexidade do caso, que se apresenta como um grande desafio jurídico e social. Este será um dos primeiros julgamentos sobre o assunto no mundo.

Além disso, Andrighi reconheceu a angústia vivida pela parte:

“Do meu modo de ver, ele [ser humano] deve estar sofrendo muito... Porque você sofrer cirurgia, tomar hormônios, converter-se naquilo que ela imaginava que seria bom para ela. E depois ela se deu conta que não era também aquilo”.

Ao final de seu voto, a relatora votou para conhecer e prover o recurso especial, determinando a retificação do registro civil para excluir a menção ao gênero masculino e incluir o gênero neutro.

O presidente do colegiado, ministro Humberto Martins, destacou que esse é o primeiro caso de neutralidade de gênero que chega à Corte. Isso pode abrir precedentes para todo o país.

Dessa forma, o julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que argumentou que precisava estudar melhor o tema.

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Análise jurídica

Dignidade da pessoa humana

O caso em questão demanda a reflexão sobre importantes direitos fundamentais, como o direito de liberdade de expressão, de autodeterminação, e a própria dignidade da pessoa humana.

Os elementos essenciais à dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, incluem o respeito a integridade física e psicológica, liberdade de expressão, igualdade de direitos, acesso à educação, saúde e condições básicas de vida digna, além do reconhecimento da individualidade e da autonomia de cada pessoa.

Inclusive, a Constituição Federal protege tanto a dignidade da pessoa humana quanto o direito à liberdade de expressão.

CF/88

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

...

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

...

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

...

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

...

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Liberdade de expressão

E não existem direitos absolutos. Todos os direitos devem observar certas balizas instituídas pelo próprio ordenamento jurídico. A liberdade de expressão, integrante das liberdades públicas, é cláusula pétrea. Mas tal liberdade não pode ser exercida de maneira a ofender a dignidade humana de outrem ou de grupos minoritários.

Dino ressaltou, no ARE 1513428, que o Supremo tem entendimento consolidado de que o direito à liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento não são absolutos, cabendo intervenção da Justiça em situações de evidente abuso:

“Entendo que as obras jurídicas adversadas não estão albergadas pelo manto da liberdade de expressão, pois, ao atribuírem às mulheres e à comunidade LGBTQIAPN+ características depreciativas, fazendo um juízo de valor negativo e utilizando-se de expressões misóginas e homotransfóbicas, afrontam o direito à igualdade e violam o postulado da dignidade da pessoa humana, endossando o cenário de violência, ódio e preconceito contra esses grupos vulneráveis".

O Ministro foi incisivo ao reforçar que qualquer tipo de discriminação atenta contra o Estado Democrático de Direito, inclusive a motivada pela orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero, revelando-se nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor.

Dino concluiu:

“Assim, concluo que as publicações impugnadas na ação civil pública movida na origem (...) desbordam do exercício legítimo dos direitos à liberdade de expressão e de livre manifestação do pensamento, configurando tratamento degradante, capaz de abalar a honra e a imagem de grupos minoritários (comunidade LGBTQIAPN+) e de mulheres na sociedade brasileira, de modo a impor a necessária responsabilização dos recorridos”.

Gênero neutro

A Organização das Nações Unidas já adota o conceito de gênero neutro.

Gênero neutro

Aliás, importante não confundir neutralidade de gênero (não-binários) com neutralidade de sexo (intersexo).

Márcia Fidélis Lima explica:

“Enquanto o intersexo tem características biológicas dos dois sexos ou, não contemplam todas as características biológicas para serem considerados como do sexo masculino ou do sexo feminino, o agênero pode ter sexo definido. Porém, o seu sexo biológico não condiz com sua autopercepção de gênero”.

As pessoas transexuais são aquelas que têm uma identidade de gênero divergente do sexo biológico atribuído no nascimento.

Já as pessoas intersexuais nascem com características sexuais — incluindo genitais, padrões cromossômicos e glândulas, como testículos e ovários –, que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos. Elas podem ser diagnosticadas no pré-natal, no nascimento, durante a puberdade e em outros momentos, como ao tentar conceber um filho. Por exemplo, pessoa que possui os genitais e órgãos internos referentes ao sexo feminino, mas que não produz hormônios correspondentes; pessoa que possui pênis e ovários ou pessoa que nasceu com pênis e vagina.

Conclusão

Pontos decididos pelo STF na ADI 4275
O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.
A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.
A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.

Já no TEMA 761, a Suprema Corte definiu a seguinte tese:

“i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; 

ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero';

iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;

iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos”.

Portanto, o tema é, de fato, polêmico, atual e demanda dos operadores do direito, em especial dos julgadores e aplicadores da norma, uma compreensão da questão à luz dos direitos fundamentais encartados na Constituição Federal, sempre com vistas à garantia da dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa República.

Ótimo tema para provas de direitos humanos, direito constitucional e direito civil.


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