A recente decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 632.115, relatado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, representa um marco significativo na delimitação das fronteiras entre a responsabilidade civil objetiva do Estado e as prerrogativas funcionais inerentes ao mandato parlamentar.
Isto porque, a Corte fixou entendimento de que a imunidade material parlamentar, prevista no art. 53 da Constituição Federal, atua como excludente da responsabilidade civil objetiva do ente público por manifestações amparadas por essa garantia constitucional.
O caso concreto envolveu declarações proferidas por deputado estadual durante sessão na Assembleia Legislativa do Ceará. Na ocasião, ele teria utilizado expressões como “conluio”, “conchavo” e “maracutaia” ao se referir a magistrado, insinuando favorecimento a prefeito municipal.
Nessa linha, o Tribunal de Justiça local havia condenado o Estado ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 200 mil, fundamentando-se na responsabilidade civil objetiva prevista no art. 37, §6º, da Constituição.
A dupla dimensão da Imunidade Parlamentar Material
Veja, a compreensão adequada do instituto da imunidade parlamentar material exige reconhecer sua natureza dúplice: trata-se, simultaneamente, de uma forma qualificada de proteção à liberdade de expressão e de uma garantia institucional destinada a preservar a independência do Poder Legislativo.
Não se configura, portanto, privilégio pessoal do parlamentar, mas prerrogativa funcional vinculada ao exercício do mandato representativo.
Assim, a Constituição de 1988 incorporou sistema robusto de proteção à liberdade de expressão, reconhecendo-lhe posição preferencial no ordenamento jurídico.
Logo, essa proteção reforçada justifica-se pela multifuncionalidade do direito à livre manifestação do pensamento: é condição para a efetiva realização da democracia, para a garantia da dignidade humana e do livre desenvolvimento da personalidade, e para o processo coletivo de busca da verdade, que depende da circulação desimpedida de ideias plurais.
No âmbito parlamentar, essa proteção assume contornos ainda mais amplos. A inviolabilidade conferida aos representantes eleitos por suas opiniões, palavras e votos constitui instrumento indispensável para assegurar o livre debate de ideias, a fiscalização dos demais Poderes e a expressão de correntes minoritárias.
Assim, trata-se de mecanismo institucional de proteção da democracia que permite aos parlamentares manifestarem-se sem receio de retaliação ou sanções civis ou penais.
Os limites da imunidade
Vale ressaltar que, de matriz blackstoniana, afirma-se que manifestações ocorridas no recinto da Casa Legislativa gozam de inviolabilidade absoluta, prescindindo de exame de nexo causal com o mandato.
Nesses casos, a responsabilização restringe-se ao âmbito político-disciplinar, sujeita ao controle interno pela própria Casa Legislativa.
Quanto às manifestações extraparlamentares, adota-se orientação inspirada na tradição milliana, segundo a qual a imunidade é relativa e depende da verificação de nexo causal entre a manifestação e o exercício do mandato.
Logo, exige-se que a opinião ou palavra externada guarde pertinência com o desempenho da função parlamentar – seja em atividades de crítica política, fiscalização governamental, prestação de contas ao eleitorado ou participação no debate público sobre questões de interesse coletivo.
Mais recentemente, a jurisprudência tem buscado interpretar a imunidade parlamentar material, independentemente do local da manifestação, à luz de sua teleologia: a proteção reforçada da liberdade de expressão do parlamentar como mecanismo de tutela do regime democrático.
Nessa perspectiva, a análise detida do nexo entre o discurso e o exercício legítimo do mandato permite afastar a incidência da cláusula de imunidade nos casos de abuso de direito, fraude ou desvio de finalidade.
Fundamentos para a exclusão da responsabilidade civil estatal
Teleológico
De início, o primeiro fundamento para afastar a responsabilidade civil objetiva do Estado decorre da interpretação teleológica da imunidade parlamentar. Se essa prerrogativa foi instituída para ampliar a proteção da liberdade de expressão do parlamentar, assegurando a independência do Poder Legislativo e resguardando o Estado Democrático de Direito, não seria coerente restringir a excludente de responsabilidade apenas à pessoa do parlamentar.
A ameaça de condenação do próprio Estado a indenizar terceiros por discursos protegidos produziria, por via transversa, indesejável efeito de censura ou inibição (chilling effect) sobre o debate público. O parlamentar, enquanto agente político dotado de independência e autonomia, poderia moderar preventivamente seus discursos para evitar exposição financeira do erário, desestimulando a crítica contundente, as denúncias e a fiscalização do poder.
Converter a fala parlamentar imune em passivo financeiro do Estado fragilizaria a separação de Poderes e a autonomia do Legislativo. Isso acaba abrindo uma via de interferência indireta sobre a liberdade de expressão parlamentar. Se a imunidade existe precisamente para blindar a deliberação parlamentar de sanções civis e penais, socializar no erário o custo do discurso imune desvirtua a finalidade da garantia.
Sistemático
De outro lado, o elemento sistemático de interpretação constitucional também conduz à conclusão de que a imunidade parlamentar atua como excludente da responsabilidade estatal. O princípio da unidade da Constituição preconiza que o texto constitucional deve ser interpretado como sistema harmonicamente articulado, jamais de forma fragmentada.
A imunidade material parlamentar do art. 53 funciona como norma especial, estruturante e axiologicamente superior dentro do sistema, destinada a resguardar o núcleo da representação democrática, a independência do Legislativo e a separação de Poderes. Por isso, deve conformar e limitar o âmbito de incidência da cláusula geral de responsabilidade objetiva do art. 37, §6º. Onde a Constituição subtrai, por razões institucionais, a relevância civil do conteúdo de "opiniões, palavras e votos", não pode subsistir o título de imputação para o risco administrativo.
Ademais, surge questão de coerência interna: a existência da imunidade material exclui a possibilidade de o Estado reaver o numerário público despendido em razão do dano causado pelo agente público, tornando sem efeito a parte final do §6º do art. 37, que prevê o direito de regresso. Criar “responsabilidade sem regresso” constitui solução que distorce o desenho constitucional.
Proporcionalidade
Perceba, a aplicação do princípio da proporcionalidade à colisão entre princípios – de um lado, o direito à honra e à reparação integral do dano moral; de outro, a liberdade de expressão e o princípio democrático condensados na imunidade material – revela a inadequação da responsabilização estatal.
Ainda que se reconheçam as vantagens sociais da reparação do dano sofrido, a responsabilidade civil do Estado provoca significativa restrição à liberdade de expressão e ao princípio democrático. O parlamentar poderia deixar de dirigir sua fala e seus esforços de fiscalização se a porta do erário estivesse aberta para indenizações. O efeito resfriador (chilling effect) sobre os discursos recomenda que se recorra a remédios constitucionais alternativos e menos gravosos, como mecanismos políticos, disciplinares e eleitorais.
Dimensão objetiva da liberdade de expressão
Além disso, a tutela reforçada da liberdade de expressão dos parlamentares no exercício dos mandatos não se circunscreve à dimensão subjetiva – que resguarda seus titulares de censura prévia e afasta medidas restritivas ilegítimas. Também deve ser garantida a partir da dimensão objetiva, associada a ações estatais positivas para que a liberdade de expressão seja adequadamente promovida e irradie-se por toda a ordem jurídica.
Decorre dessa dimensão objetiva o dever estatal de reconhecer salvaguardas materiais e processuais adequadas, capazes de dar efetividade ao direito à liberdade de expressão no âmbito do exercício do mandato parlamentar. Afastar a responsabilidade civil objetiva do Estado torna-se, assim, medida necessária para evitar situação de proteção deficiente dessa liberdade fundamental.

Por fim, a responsabilização civil do Estado por discursos cobertos pela imunidade material parlamentar colide com a própria arquitetura representativa da Constituição. O regime representativo, especialmente o sistema proporcional, foi desenhado para pluralizar a arena legislativa e dar voz a correntes minoritárias, em sintonia com o pluralismo político.
Se cada manifestação funcional pudesse converter-se em passivo indenizatório do erário, instaurar-se-ia veto orçamentário majoritário: a maioria teria incentivos para policiar, desestimular ou silenciar discursos dissidentes, sob o argumento de evitar custos financeiros socializados. Em vez de garantir a circulação de ideias minoritárias – muitas vezes essenciais à fiscalização e ao avanço de direitos –, o sistema passaria a homogeneizar o debate por constrangimento fiscal indireto.
Excesso: responsabilização pessoal do parlamentar
Por outro lado, nas situações em que a conduta do parlamentar extrapole os limites da imunidade material, configurando ato ilícito desvinculado do mandato ou uso abusivo ou fraudulento da prerrogativa constitucional, a responsabilidade recai de forma pessoal, direta e exclusiva sobre o próprio parlamentar. Nesses casos, tampouco há fundamento para cogitar responsabilidade civil objetiva do Estado.
A expressão "nessa qualidade" constante do art. 37, §6º, não é meramente formal, mas substancial, indicando a necessidade de vínculo funcional entre a atuação do agente e a órbita de atribuições do Estado. Atos praticados pelo agente público fora de sua função, ou que não guardem qualquer relação com ela, não atraem a responsabilidade do ente público, mas sim a responsabilidade pessoal do agente sob o regime de responsabilidade civil subjetiva, conforme previsto nos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil.
A jurisprudência do STF tem afastado a incidência da cláusula de imunidade quando o discurso parlamentar constitua abuso de direito, fraude ou desvio de finalidade. A inviolabilidade parlamentar não foi concebida para amparar incitação à prática de crime, discursos de ódio, ataques às instituições democráticas ou imputações sabidamente falsas de fatos, proferidas com dolo ou manifesta negligência pela verdade.
Tese do STF
"1. A imunidade material parlamentar (art. 53, caput, c/c art. 27, § 1º, e art. 29, VIII, CF/88) configura excludente da responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37, § 6º, CF/88), afastando qualquer pretensão indenizatória em face do ente público por opiniões, palavras e votos cobertos por essa garantia.
2. Nas hipóteses em que a conduta do parlamentar extrapolar os limites da imunidade material, eventual responsabilização recairá de forma pessoal, direta e exclusiva sobre o próprio parlamentar, sob o regime de responsabilidade civil subjetiva."
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