Candidato com Tourette e TOC pode concorrer a vagas PcD, decide TRF-1

Candidato com Tourette e TOC pode concorrer a vagas PcD, decide TRF-1

Notícia

A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) garantiu o direito de um candidato diagnosticado com Síndrome de Tourette e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) a concorrer às vagas reservadas para pessoas com deficiência (PcD) em concurso público do Ministério Público da União.

Assim, foi a notícia divulgada: Candidato com Tourette e TOC pode concorrer a vagas PcD, decide TRF-1

Nesse sentido, o caso ganhou relevância por abordar uma questão interessante ao qual iremos aprofundar, isto é, o reconhecimento de condições neuropsiquiátricas como deficiência.

No caso concreto, o candidato havia sido eliminado do certame após a banca examinadora (Cebraspe) considerar que seus diagnósticos não se enquadravam como deficiência nos termos do edital.

Entretanto, após recorrer à Justiça Federal, obteve decisão favorável em primeira instância na 9ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, que determinou sua reintegração ao concurso.

Por fim, a União e o Cebraspe apelaram da decisão, mas o TRF-1 manteve o entendimento inicial.

Agora, o caso pende de recurso especial (STJ) ou extraordinário (STF).

Análise jurídica

O que vamos aprofundar é o que ficou decidido no acórdão 1000922-77.2019.4.01.3400.

Argumentos da Cebraspe e da União

Em breve síntese, a Apelação do Cebraspe aduzia que o edital é a peça básica do concurso e vincula tanto a Administração quanto os candidatos concorrentes.

Logo, ao realizarem a inscrição no concurso, os candidatos aderem às normas postas em edital e sujeitam-se às exigências nele contidas, bem como à legislação aplicável. Ao elaborar os editais dos concursos, disse observar rigorosamente a legislação vigente que disciplina a reserva de vagas aos candidatos com deficiência em concursos públicos.

Candidato com

Asseverou que, na fase de avaliação biopsicossocial, constatou-se que o candidato não aparentava dificuldades para desempenho de atividade. Por isso, ele foi considerado inapto na aludida avaliação e perdeu o direito de concorrer às vagas destinadas aos candidatos com deficiência.

Esclareceu que a junta médica deve se ater ao que dispõe a legislação no que concerne à definição de deficiência no momento das avaliações dos laudos apresentados pelos candidatos, sob pena de desatender aos preceitos legais.

Narrou que, na análise da documentação médica apresentada pelo candidato, constatou-se também que a CID entregue pelo candidato não correspondia a uma deficiência. Nesse sentido, a legislação brasileira não considera “doença de Guilles de Ia Tourette” e “transtorno obsessivo compulsivo” (CID F95.2 e F42.0) como deficiência.

Por fim, a União defendeu que é possível verificar que as informações médicas apresentadas pelo autor para fins de enquadramento na lista de candidatos portadores de necessidades especiais (PNE) não o enquadravam nos termos do item 5.1.3 do edital do certame.

O que é a Síndrome de Tourette e o TOC?

Para entender a dimensão desta decisão, torna-se fundamental compreender as características das condições neuropsiquiátricas envolvidas:

Síndrome de Tourette (CID F95.2): a Síndrome de Tourette é um distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado pela presença de tiques múltiplos, tanto motores quanto vocais. Os tiques são movimentos ou vocalizações súbitas, rápidas, recorrentes e não-rítmicas. Esta condição tipicamente se manifesta na infância e pode persistir ao longo da vida adulta, afetando significativamente a qualidade de vida do indivíduo. As manifestações podem incluir:

  • Tiques motores simples (piscadas, movimentos faciais, sacudir a cabeça);
  • Tiques motores complexos (tocar objetos, pular, girar);
  • Tiques vocais simples (pigarrear, fungar, tossir);
  • Tiques vocais complexos (repetir palavras ou frases).

Transtorno Obsessivo-Compulsivo – TOC (CID F42): caracteriza-se pela presença de obsessões e/ou compulsões que interferem significativamente na vida diária do indivíduo. Em síntese, esta condição se manifesta através de:

  • Obsessões: pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que são experimentados como intrusivos e indesejados;
  • Compulsões: comportamentos repetitivos ou atos mentais que o indivíduo se sente compelido a executar em resposta a uma obsessão;
  • Comportamentos repetitivos focados no corpo;
  • Tentativas constantes de reduzir ou parar estes comportamentos.
Nessa linha, na página 4 do acórdão (ID 2159718297), o perito judicial descreve o TOC da seguinte forma:

"O Transtorno Obsessivo Compulsivo é caracterizado pela presença de obsessões e/ou compulsões. Obsessões são pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que são vivenciados como intrusivos e indesejados, enquanto compulsões são comportamentos repetitivos ou atos mentais que um indivíduo se sente compelido a executar em resposta a uma obsessão."

Ainda no mesmo documento, o perito define a Síndrome de Tourette como "um distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado por tiques múltiplos, motores ou vocais."

Como foi o acórdão do TRF1?

A banca examinadora, quando da realização da perícia médica para a verificação da condição de candidato PcD do autor, concluiu pelo seu indeferimento. Segundo ela, a “CID não corresponde a uma deficiência” nos termos do item 5.6.1 do edital do certame (id. 403195664), tendo mantido esse entendimento após a interposição do recurso administrativo (id. 403195666).

Nessa senda, o art. 4º, do Decreto nº 3.298/99, com a redação dada pelo Decreto nº 5.296/2004, dispõe que:

“É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias: (...) IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho; V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências”.

Por outro lado, a perícia judicial, submetida ao crivo do contraditório, foi conclusiva ao enquadrar o autor como pessoa com deficiência na forma prevista pelo Decreto nº 3.298/99, art. 4º, inciso IV, pois possui deficiência mental CID X: F95.2 (Síndrome de Tourette) associado a F42 (Transtorno Obsessivo Compulsivo).

Quanto aos quesitos apresentados, o perito também respondeu:

1. O candidato é portador de doença ou lesão? (Informar o diagnóstico alfanumérico, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças – CID-10). Em caso positivo, é possível informar a data de início da doença? Sim. O periciando apresenta quadro clinico compatível com CID X: F95.2(Síndrome de Tourette) associado a F42 (Transtorno Obsessivo Compulsivo).

Data de inicio da doença desde os 17 anos de idade.
2. Essa doença/distúrbio é de natureza temporária/passageira (aquela para a qual se pode esperar recuperação, controle ou cura com os recursos atuais da medicina) ou duradoura/permanente (insuscetível de recuperação, controle ou cura com os recursos atuais das ciências médicas)?

Doença permanente.
3. Essa doença/distúrbio foi a razão de o candidato concorrer às vagas destinadas às Pessoas com Deficiência no Concurso Público do MPU – 2018 conduzido pelo Cebraspe?

Esta condição permite o candidato a concorrer às vagas destinadas a pessoas com deficiência.
4. Alguma das doenças e co-morbidades apresentadas pelo candidato (Síndrome de La Tourette, TOC, Distúrbio Mentais) estão relacionadas no Decreto 3.298/99 como forma de inclusão na condição de Pessoa com Deficiência?

Sim, Deficiência Mental.

Desempenho das funções inerentes ao cargo

Logo, o exame da documentação apresentada pelos candidatos que optam por concorrer às vagas destinadas à pessoa com deficiência deve ser realizada com objetivo de validar ou não a existência da deficiência aduzida. A deficiência mental do autor foi devidamente comprovada por exames médicos enviados à banca organizadora quando da avaliação biopsicossocial, tendo a perícia judicial confirmado o seu diagnóstico.

Reforça ainda mais o argumento o fato de que o candidato já teve sua inscrição como pessoa com deficiência deferida em outros concursos.

Por essa razão, o não reconhecimento da deficiência da parte autora, ao argumento de que a deficiência apresentada não produz dificuldade para o desempenho de funções inerentes ao cargo pretendido se divorcia da finalidade inclusiva do Estatuto da Pessoa com Deficiência (cf. art. 4º). Sendo certo que, na hipótese em que se houvesse incompatibilidade da deficiência do candidato com as referidas funções, o caso seria de impossibilidade de assunção do cargo.

É dizer, a compatibilidade da deficiência do candidato com os atributos do cargo é uma imposição, daí porque alegar-se a inexistência desta (incompatibilidade) como justificativa para a descaracterização de deficiência praticamente equivale a uma contradição em termos.

Além disso, já decidiu a jurisprudência:

“IV Na espécie, o laudo pericial demonstra, à saciedade, que a autora é portadora de deficiências neurológicas e psiquiátricas (Deficiência mental leve, Sindrome de Tourette, Transtorno Obsessivo-Compulsivo - TOC e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade - TDAH e depressão moderada) altamente incapacitantes, que a impedem de desempenhar as atividades do dia a dia dentro do padrão considerado normal para o ser humano, impossibilitando-a de atuar na imensa maioria das ocupações, razão pela qual afigura-se ilegal o ato administrativo que não considerou comprovada sua condição de pessoa com deficiência, excluindo-a do concurso público para o cargo de Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios - TJDFT (Edital nº 01/2013)”.

(AC 0065662-71.2013.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, TRF1 - QUINTA TURMA, PJe 30/09/2021)

Fundamentos da decisão

Em breve síntese, a decisão foi construída em três fundamentos principais:

  1. O primeiro fundamento se baseia na força probatória da perícia judicial. A relatora deu especial importância ao fato de que o laudo pericial, produzido sob o crivo do contraditório, confirmou de maneira inequívoca que o autor possuía quadro clínico compatível com Síndrome de Tourette e Transtorno Obsessivo Compulsivo. Mais que isso, a perícia não apenas confirmou os diagnósticos, mas demonstrou que estas condições se enquadravam perfeitamente na definição legal de deficiência mental prevista no Decreto 3.298/99.
  2. O segundo fundamento traz uma interpretação evolutiva do direito, apoiando-se no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). A relatora demonstrou que negar o reconhecimento da deficiência apenas porque o candidato não apresentava dificuldades evidentes para o desempenho das funções seria contradizer a própria essência da legislação inclusiva.
  3. O terceiro fundamento estabelece uma distinção crucial que amarra os dois anteriores: a diferença entre ter uma deficiência e ter capacidade para exercer um cargo. A relatora explicou que são conceitos distintos e independentes. Se um candidato com deficiência pode desempenhar bem suas funções, isso não descaracteriza sua condição de pessoa com deficiência – pelo contrário, demonstra o sucesso da política de inclusão. A incompatibilidade com o cargo, se existisse, levaria à impossibilidade de assumir a função, mas nunca à negação da condição de pessoa com deficiência.

E aí, o que você achou desse acórdão? Isso é importante para os concursos, e vale a pena ficar de olho no que decidirá possivelmente o STJ.


Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!

0 Shares:
Você pode gostar também