Senado aprova Lei Joca

Senado aprova Lei Joca

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Lei Joca

Transporte

O Senado Federal acaba de aprovar o projeto de lei que cria regras para o transporte de cães e gatos por companhias aéreas, conhecido informalmente como “Lei Joca” (PL nº 13/2022).

A proposta foi protocolada após a morte de um labrador que foi transportado em um voo da Gol.

O texto precisará retornar para a análise da Câmara dos Deputados. Isso porque a relatora da proposta no Senado, Margareth Buzetti, fez alterações no projeto, flexibilizando o texto vindo da Câmara.

O texto original, da Câmara, estabelecia que aeroportos com movimentação superior a 600 mil passageiros por ano teriam a obrigação de ter veterinário responsável pelo acompanhamento das condições de embarque e desembarque dos animais.

A relatora retirou essa previsão, argumentando tratar-se de uma medida “exagerada”.

O projeto inicial também obrigava as companhias aéreas a transportar animais de estimação na cabine do avião.

O texto que passou pelo Senado permite o transporte dos animais tanto na cabine, quanto no compartimento de bagagens, a depender do porte e do peso.

A regra não vale para cães-guia, que poderão viajar com os tutores.

De acordo com o texto aprovado no Senado, as companhias aéreas serão responsabilizadas pela morte ou lesão dos animais, e serão obrigadas a pagar indenização aos tutores.

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) deverá elaborar as regras sobre o transporte.

O projeto determina, ainda, que as companhias aéreas passem a oferecer opções adequadas para o transporte de animais, com equipes treinadas especificamente para essa finalidade.

As empresas deverão divulgar informações atualizadas e completas sobre o serviço, que deverá respeitar as normas de segurança operacional e será regulamentado pela Anac. Os cães-guias continuam com o direito garantido de voar junto aos seus tutores, conforme a lei 11.126/05.

O texto prevê que o transportador não será responsável se a morte ou lesão resultar exclusivamente do estado de saúde do animal transportado ou se for causada por culpa exclusiva do tutor, do responsável ou de terceiros.

Relembre o caso Joca

Em 2024, uma triste notícia povoou o noticiário em nosso país: a morte do cãozinho Joca, um Golden Retriever de 4 anos, que morreu após um voo pela companhia aérea. O cão embarcou em Guarulhos (SP), com destino a Sinop (MR), mas foi parar em Fortaleza. Ao constatar o erro, a empresa (GOL) enviou o animal para Guarulhos, mas ele chegou morto ao local.

A notícia causa grande indignação não só no dono do animal como também nas entidades voltadas à proteção dos animais. Até mesmo o presidente Lula cobrou da ANAC e do Ministério da Justiça uma pronta resposta ao ocorrido, além de homenagear o cãozinho ao usar uma gravata com desenho de cachorro.

Após a morte do pet, a GOL suspendeu por um mês o transporte de cães no porão das aeronaves para ‘se dedicar totalmente ao processo de investigação deste evento’.

Análise jurídica

Como fica a responsabilidade da companhia aérea diante da morte desse animal em decorrência de uma falha no transporte? É o que veremos aqui.

Natureza jurídica dos animais

A nossa fauna é composta pelos animais silvestres, exóticos e domésticos. Estes últimos são aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e melhoramento zootécnico tornaram-se domésticas, possuindo características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo inclusive apresentar aparência diferente da espécie silvestre que os originou.

Corrente clássica

Nas últimas décadas prevaleceu a corrente clássica de que os animais de estimação possuíam natureza jurídica de coisa, sendo um bem móvel (semovente) e, portanto, seriam simplesmente objetos de direitos, e não sujeitos de direito.

Neste sentido, os bichos seriam apenas um item do patrimônio de seu titular. Não teriam direitos, de forma que suas garantias estariam relacionadas aos direitos de seus donos, e as discussões sobre eles estariam mais próximas de institutos como a posse e a propriedade.

Teria aplicação, portanto, do artigo 82 do código civil:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Ocorre que a realidade é extremamente mutável, e o Direito precisa se adaptar para acompanhar a evolução social.

Presenciamos, nos últimos anos, novos fenômenos relacionados à relação entre as pessoas, chamados de “pais de pets”, e seus bichinhos de estimação: criação de planos de saúde para pets, buffets especializados em organizar festas para os bichinhos, creches e hotéis para cães e gatos, surgimento de profissões voltadas a esses animais e muito mais.

Diante dessa inovação fática os operadores do direito tiveram que se adaptar na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico, pois a definição como simples coisas não resolve mais as controvérsias sobre os pets.

Correntes moderna e intermediária

Existe uma corrente moderna, que considera os animais como sujeitos de direito. Algumas decisões judiciais já adotam essa visão, apesar de não serem majoritárias.

Mas o Superior Tribunal de Justiça tem caminhado para adotar uma corrente intermediária, pela qual os animais de estimação seriam um “terceiro gênero“. Para o ministro Luís Felipe Salomão, não se trata de humanizar o animal, tampouco de equiparar a posse dos bichos com a guarda de filhos, mas de considerar que o direito de propriedade sobre eles não pode ser exercido de maneira idêntica àquele relativo às coisas inanimadas ou que não são dotadas de sensibilidade. Portanto, os animais seriam seres dotados de sensibilidade. Conferir o REsp 1.944.228.

“2. A solução de questões que envolvem a ruptura da entidade familiar e o seu animal de estimação não pode, de modo algum, desconsiderar o ordenamento jurídico posto – o qual, sem prejuízo de vindouro e oportuno aperfeiçoamento legislativo, não apresenta lacuna e dá respostas aceitáveis a tais demandas –, devendo, todavia, o julgador, ao aplicá-lo, tomar como indispensável balizamento o aspecto afetivo que envolve a relação das pessoas com o seu animal de estimação, bem como a proteção à incolumidade física e à segurança do pet, concebido como ser dotado de sensibilidade e protegido de qualquer forma de crueldade. 

2.1 A relação entre o dono e o seu animal de estimação encontra-se inserida no direito de propriedade e no direito das coisas, com o correspondente reflexo nas normas que definem o regime de bens (no caso, o da união estável). A aplicação de tais regramentos, contudo, submete-se a um filtro de compatibilidade de seus termos com a natureza particular dos animais de estimação, seres que são dotados de sensibilidade, com ênfase na proteção do afeto humano para com os animais.”

Por essa visão, adotada pelo STJ, reconhece-se os animais como seres sencientes. Mas o que são esses seres sencientes? Simples:

Seres sencientes são seres que possuem a capacidade de sentir e perceber o mundo ao seu redor. Isso inclui a habilidade de experimentar emoções como dor, prazer, alegria e sofrimento.

O professor José Fernando Simão arremata:

O que se coloca é saber se, por isso, animais não humanos e demais coisas devem receber tratamento idêntico pelo Código Civil. Em outros termos, é necessário definir se a propriedade de animais gera iguais efeitos à propriedade das coisas inanimadas, como um carro, uma cadeira, uma casa.

Evidentemente que a resposta é negativa. A propriedade de animais não humanos passa por um filtro óbvio: os animais não humanos são coisas especiais, pois são seres dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento e dor. É por isso que o direito de propriedade sobre os animais, segundo interpretação sistemática do Código Civil, não pode ser exercido de maneira idêntica àquele que se exerce sobre coisas inanimadas ou não dotadas de sensibilidade.

(Simão, José Fernando. Direito dos Animais: Natureza Jurídica. A Visão do Direito Civil. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 4, ano 3, 2017, p. 899)

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino, em decisão cautelar na ADI 7.704, arrematou:

Ao se preocupar com outras formas de vida não humanas, a Constituição incorporou uma visão mitigada do antropocentrismo, de modo a reconhecer que seres não humanos podem ter valor e dignidade1. À luz do texto constitucional, a dignidade não é um atributo exclusivo do ser humano.

Portanto, será cada vez mais comum nos depararmos com questões envolvendo visita e guarda de pets, busca e apreensão de animais e proibição ou não de castração dos bichinhos.

Em resumo, quanto a visão acerca da natureza jurídica dos pets, temos:

1) A corrente clássica ou tradicional, que entende que o animal é um bem semovente, com fundamento antes mesmo do Código Civil;

2) A corrente moderna, que entende que se deva considerar o animal como um ser sujeito de direito;

3) A corrente intermediária, adotada pelo STJ, pela qual o animal de estimação seria um “terceiro gênero”, dotado de sensibilidade, ou seja, um ser senciente.

Responsabilidades

A CF/88, em seu artigo 225, §1º, VII, aduz que é dever do poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Já a lei de crimes ambientais (Lei nº 9.605/98) prevê como crime, em seu artigo 32, o ato de “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa. Já quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas acima descritas será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda, sendo esta pena aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.

O artigo 225, §3º, da Constituição Federal impõe aos infratores três espécies distintas de responsabilidades pelo dano ambiental (o que inclui danos aos animais), quais sejam: a responsabilidade civil, a responsabilidade administrativa e a responsabilidade penal, senão vejamos:

CF/88

“Art. 225...

§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”

Portanto, em tese a companhia aérea poderia responder pela morte do animal nas três esferas acima citadas: civil, administrativa e penal.

Administrativa

O que fundamenta a possibilidade de imposição de sanções administrativas ao infrator é o poder de polícia, que é a prerrogativa que a Administração Pública detém de impor limitações às liberdades individuais em prol do interesse público.

Portanto, para garantir a prevalência do interesse público a Administração Pública edita normas que limitam as liberdades individuais, e caso estas normas sejam descumpridas surge o dever de impor as sanções correspondentes.

Em se comprovando o cometimento de uma infração à norma administrativa, a empresa se responsabilizaria, desde que demonstrado o elemento subjetivo (culpa ou dolo).

Penal

O mesmo raciocínio se aplica à responsabilidade penal. Caso se comprove que houve maus-tratos ou abuso ao cachorro, tanto as pessoas físicas envolvidas quanto a própria pessoa jurídica poderá se responsabilizar criminalmente, desde que cumpridos os requisitos legais (elencados na lei de crimes ambientais). Em relação à responsabilidade criminal da pessoa jurídica não podemos deixar de elencar os dois requisitos legais exigidos no caput do artigo 3º, da Lei nº 9.605/98, quais sejam:

1 – A infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado;

2 – Ato praticado no interesse ou benefício da sua entidade (PJ).

Civil

Já em relação à responsabilidade civil (obrigação de reparar os danos causados), é de se ressaltar que não há necessidade da comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa), já que ela é objetiva, ou seja, basta que se comprove o dano ambiental e haja a presença do nexo de causalidade, ligando esse resultado ao causador do dano.

Também devemos pontuar que a responsabilidade civil pelo dano ambiental é calcada na teoria do risco integral, que é uma teoria extremada do risco, onde o nexo de causalidade é fortalecido (ver informativo STJ nº 545), afastando excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito, a força maior, a culpa de terceiro ou a culpa da vítima. Mesmo atos lícitos podem ensejar a responsabilização.

Importante acompanhar a tramitação desse relevante projeto de lei. Ótimo tema para provas de direito ambiental.


  1. DIAS, Jefferson Aparecido; NELSON, Rocco Antônio Rangel Rosso. Do Direito dos animais não humanos – em busca de uma personalidade esquecida. Revista Brasileira de Direito Animal. UFBA. P. 35. ↩︎

Quer saber quais serão os próximos concursos?

Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!
0 Shares:
Você pode gostar também