Informativo Extraordinário 21 do STJ – Resquício de droga na balança não é suficiente para o tráfico – REsp 2.092.011-SC – Análise Jurídica

Informativo Extraordinário 21 do STJ – Resquício de droga na balança não é suficiente para o tráfico – REsp 2.092.011-SC – Análise Jurídica

Introdução

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão unânime da Quinta Turma, proferida em 24/06/2024, manteve a absolvição de um acusado pelo crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006.

O caso em questão, julgado no AgRg no REsp 2.092.011-SC, traz importantes considerações sobre a comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas, especialmente em situações onde não há apreensão efetiva de substâncias entorpecentes, foi divulgado no informativo de Edição Extraordinária nº 21 de 30 de julho de 2024.

Contexto do caso

Na noite de 15 de março de 2023, após uma investigação de rotina, a Polícia Civil de Santa Catarina cumpriu um mandado de busca e apreensão na residência de Valdinei Becker Claudino, no município de Blumenau.

Os policiais, liderados pelo Delegado Roberto Silva, chegaram à casa por volta das 22h, encontrando Valdinei sozinho.

Durante a busca, os agentes não localizaram quantidades significativas de drogas, mas encontraram uma série de itens que levantaram suspeitas:

  • Uma balança de precisão marca BMX modelo QC PASS 500g, com resquícios de um pó branco;
  • 38 pinos vazios transparentes;
  • 29 micro-potes (recipientes plásticos) de cor preta com tampa;
  • Um caderno com anotações de nomes e valores;
  • R$ 3.500 em dinheiro em notas pequenas.

A perícia técnica, realizada no local, identificou que os resquícios na balança eram de cocaína, embora em quantidade tão pequena que impossibilitou a pesagem.

Além das evidências materiais, a polícia apresentou o depoimento de João Ferreira, um usuário de drogas detido na semana anterior, que afirmou ter comprado cocaína de Valdinei diversas vezes nos últimos meses.

O policial Marcos Oliveira, veterano da corporação, também testemunhou sobre investigações anteriores que apontavam o envolvimento de Valdinei com o tráfico local.

Resquício

Valdinei, por sua vez, negou qualquer envolvimento com o tráfico.

Alegou que a balança era usada para pesar suplementos alimentares, já que era frequentador assíduo de uma academia local.

Quanto aos pinos e recipientes, afirmou que os utilizava para organizar pequenas peças em seu trabalho como técnico em eletrônica.

O dinheiro, segundo ele, era proveniente de seu salário recém-recebido.

Denúncia

O Ministério Público, representado pela Promotora de Justiça Dra. Carla Mendes, ofereceu denúncia contra Valdinei pelo crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006).

A promotoria argumentou que, embora não houvesse apreensão significativa de drogas, o conjunto probatório – incluindo os resquícios de cocaína na balança, os materiais típicos de embalagem de drogas, o depoimento do usuário e as investigações prévias – seria suficiente para comprovar a materialidade do crime de tráfico.

A defesa de Valdinei, por outro lado, sustentou que a ausência de apreensão efetiva de drogas e a impossibilidade de quantificar os resquícios encontrados tornavam impossível a configuração do crime de tráfico. Argumentaram que as evidências circunstanciais não poderiam suprir a falta de prova material do delito.

Finalmente, após passar pelas instâncias inferiores, o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde se discutiu a suficiência dos elementos probatórios para a configuração do crime de tráfico de drogas na ausência de apreensão significativa de substâncias ilícitas.

A decisão do STJ

A Quinta Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental do Ministério Público, mantendo a absolvição do réu. Os principais fundamentos da decisão foram:

  1. A impossibilidade de considerar o resquício encontrado na balança como objeto material do crime de tráfico de drogas.
  2. A ausência de comprovação da materialidade do crime, dada a não apreensão efetiva de drogas e a impossibilidade de quantificar o resquício encontrado.
  3. A insuficiência dos demais elementos probatórios (como depoimento policial e declaração de usuário) para comprovar a materialidade do delito na ausência de apreensão de drogas.

O crime de tráfico de Drogas

O crime de tráfico de drogas está tipificado no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, que dispõe:

"Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa."

O STJ enfatizou que “drogas” é elemento essencial do tipo penal, sendo o objeto material sobre o qual recaem os verbos nucleares do artigo.

Conceito de droga na Legislação

O conceito de “droga” para fins penais é definido pelo art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006:

"Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União."

A definição das substâncias consideradas drogas é feita pela Portaria nº 344/1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, conforme previsto no art. 66 da Lei nº 11.343/2006.

Materialidade do Crime

A materialidade do crime, no direito penal, refere-se à prova da existência do delito.

No caso do tráfico de drogas, a materialidade está intrinsecamente ligada à apreensão e identificação da substância entorpecente.

Nesse sentido, o STJ reiterou que é imprescindível a apreensão das substâncias supostamente ilícitas sobre as quais incidiu a conduta do acusado, bem como sua submissão à perícia técnica.

Isso serve para constatar se há enquadramento na norma administrativa e, consequentemente, submissão da conduta à norma penal.

Análise da decisão

Insuficiência dos resquícios para comprovação da materialidade

O STJ entendeu que não é possível afirmar que a conduta imputada ao acusado (guardar em depósito ou vender) recaiu sobre o “resquício” de cocaína encontrado na balança.

Ademais, a Corte destacou que não se pode sequer afirmar se tal resquício seria decorrente da conduta imputada ao agente no presente feito ou de conduta pretérita.

Este entendimento alinha-se com o princípio da tipicidade estrita em direito penal, segundo o qual a conduta do agente deve se enquadrar perfeitamente na descrição legal do crime.

Impossibilidade de quantificação

O Tribunal observou que não houve indicação da quantidade do resquício encontrado, dada a evidente impossibilidade de pesagem, conforme constatado no laudo pericial.

Assim, esta impossibilidade de quantificação reforça a inviabilidade de utilizar o resquício como prova da materialidade do crime.

Insuficiência de outros elementos probatórios

Embora existissem outros elementos probatórios, como depoimento policial e declaração de usuário, o STJ manteve o entendimento de que estes não são suficientes para comprovar a materialidade do crime de tráfico na ausência de apreensão efetiva de drogas.

Este posicionamento reforça a importância da prova técnica (laudo toxicológico) na configuração do crime de tráfico, em detrimento de provas testemunhais ou indiciárias.

Jurisprudência análoga

O STJ fez referência ao entendimento pacificado na Terceira Seção da Corte, citando o HC nº 686.312/MS, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior (Rel. para acórdão Ministro Rogerio Schietti, DJe 19/4/2023).

Neste julgado, estabeleceu-se que a ausência de apreensão de drogas e do consequente laudo toxicológico impossibilita a comprovação da materialidade do crime de tráfico, resultando na absolvição do réu por falta de provas.

Implicações práticas

Para a investigação e persecução penal

A decisão do STJ reforça a necessidade de uma investigação mais robusta nos casos de tráfico de drogas.

Isto é, as autoridades policiais e o Ministério Público devem priorizar a apreensão efetiva de substâncias entorpecentes e a realização de perícia técnica, não se contentando apenas com provas indiciárias ou testemunhais.

Para a defesa dos acusados

Por outro lado, para a defesa, a decisão fortalece a tese de que, na ausência de apreensão efetiva de drogas, deve-se pleitear a absolvição por falta de provas da materialidade do crime.

Isso pode ser particularmente relevante em casos onde há apenas indícios circunstanciais de tráfico, sem a apreensão concreta de substâncias ilícitas.

Para o judiciário

Desse modo, os juízes e tribunais devem estar atentos à necessidade de prova robusta da materialidade do crime de tráfico, não podendo condenar com base apenas em elementos indiciários quando não houver apreensão efetiva de drogas.

Críticas e controvérsias

Dificuldades na persecução penal

Uma crítica possível a este entendimento é que ele pode dificultar a persecução penal em casos onde há fortes indícios de tráfico, mas não foi possível apreender drogas no momento da prisão.

Isso poderia levar à impunidade de traficantes que conseguem se desfazer das drogas antes da abordagem policial.

Proteção aos direitos fundamentais

Por outro lado, o entendimento do STJ protege os direitos fundamentais dos acusados, evitando condenações baseadas em provas frágeis ou circunstanciais. Isso está em consonância com princípios constitucionais como a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Como o tema já caiu em concursos

FUNDATEC - 2018 - PC-RS - Delegado de Polícia - Bloco II
 
Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito de tráfico de drogas, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por dois peritos nomeados.

Comentário: Errado

Art. 50. § 1o Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea.

Conclusão

Por fim, a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp 2.092.011-SC estabelece um importante precedente ao afirmar categoricamente que o mero resquício de droga encontrado em uma balança de precisão não é suficiente para a configuração do crime de tráfico de drogas. Esta decisão reforça a necessidade de uma prova material robusta para sustentar uma condenação por tráfico.

Em seguida, vejamos os pontos-chave da decisão:

  1. A materialidade do crime de tráfico de drogas exige a apreensão efetiva da substância ilícita em quantidade passível de ser mensurada e periciada.
  2. Resquícios não quantificáveis, mesmo que identificados como droga, não podem ser considerados objeto material do crime de tráfico.
  3. Elementos circunstanciais, como depoimentos de policiais ou usuários, não são suficientes para suprir a ausência de apreensão efetiva de drogas.
  4. A decisão alinha-se com o princípio da tipicidade estrita em direito penal e com garantias constitucionais como a presunção de inocência e o in dubio pro reo.

Desafios

Esta decisão do STJ serve como um importante balizador para os tribunais inferiores e órgãos de persecução penal, exigindo uma investigação mais robusta e uma produção probatória mais consistente nos casos de tráfico de drogas. Ela reafirma que, por mais que existam indícios ou suspeitas, a condenação por tráfico não pode se basear em meros resquícios ou em provas circunstanciais na ausência de uma apreensão substancial de drogas.

Ao mesmo tempo, esta decisão pode representar desafios para a persecução penal em casos onde há fortes indícios de tráfico, mas não foi possível apreender quantidades significativas de drogas. Isso pode levar a uma necessidade de aprimoramento das técnicas investigativas e de coleta de provas por parte das autoridades policiais.

Em última análise, o STJ reforça com esta decisão que, no delicado equilíbrio entre a efetividade da justiça criminal e a proteção dos direitos individuais, a prova material concreta e mensurável deve prevalecer sobre indícios e circunstâncias quando se trata da configuração do crime de tráfico de drogas.


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