Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma importante decisão que reafirma a força do princípio da intangibilidade da legítima no direito sucessório brasileiro.
Isto porque, a 3ª Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, estabeleceu que nem mesmo a concordância formal dos herdeiros pode validar uma doação que ultrapasse os limites legais da parte disponível.
Vamos entender melhor.
O caso e seus desdobramentos
O caso foi o seguinte.
Uma família de Santa Catarina protagonizou esta disputa judicial após os pais realizarem uma partilha em vida extremamente desigual.
Em 1999, o casal formalizou por escritura pública a doação de seu patrimônio aos dois filhos, mas com uma distribuição que favorecia mais uma das partes.
- A filha Andriele recebeu apenas dois imóveis que somavam R$ 39 mil;
- Enquanto o filho Paulo foi contemplado com participações societárias avaliadas em expressivos R$ 711 mil.
Em resumo, o desequilíbrio é notório: 5,2% para filha contra 94,8% para o filho de um patrimônio total.
Entretanto, o caso tinha uma peculiaridade: apesar da escritura conter cláusulas de anuência, quitação mútua e renúncia a ações futuras (ou seja, a filha concordou inicialmente).
Depois de um tempo, a filha prejudicada recorreu à Justiça duas décadas depois, alegando que a doação ultrapassou os limites legais e violou sua legítima.
O juiz de primeiro grau concordou com ela, mas o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendeu diferente.
Para o TJ-SC, a doação inoficiosa seria meramente anulável e teria sido “convalidada” pela concordância expressa da herdeira no momento da escritura.
A decisão do STJ
Ao analisar o Recurso Especial nº 2.107.070/SC, a Ministra Nancy Andrighi foi categórica: “Não restam dúvidas de que a doação que extrapolar a parte disponível será nula de pleno direito, pois, além de traduzir afronta a normas de ordem pública, expressamente assim determinou o legislador civil.”
Em outras palavras, a decisão unânime da Terceira Turma restabeleceu a sentença que havia reconhecido a nulidade parcial da doação, apenas na parte que excedeu o limite legal.
Vale salientar que o tribunal aplicou as regras do Código Civil de 1916, vigente à época da escritura, em especial o artigo 1.176, que estabelecia a nulidade da doação que excedesse o que o doador poderia dispor em testamento.
A natureza jurídica da partilha em vida
De início, é importante salientar que o voto da Ministra Andrighi dedicou especial atenção à análise da natureza jurídica da partilha em vida, fenômeno pouco compreendido mesmo por muitos profissionais do direito. Trata-se de um instituto peculiar, que alguns doutrinadores chamam de “doação-partilha“.
A doutrina de Arnoldo Wald, citado no acórdão, fala que a partilha em vida “não é nem doação, nem testamento, embora o autor da herança possa utilizar-se dessas formas para exteriorizar a sua vontade”. O que realmente importa é o conteúdo do ato, não sua aparência externa.
No caso julgado, embora tenha se utilizado do instrumento formal da doação, o ato dos pais tinha claramente a intenção de antecipar a partilha hereditária, distribuindo bens que normalmente seriam transmitidos apenas após sua morte.
Dessa maneira, precisava respeitar os limites impostos pelo artigo 1.776 do Código Civil de 1916:
“é válida a partilha feita pelo pai, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários”.
A legítima e os limites da disposição patrimonial
Ora, um aspecto crucial para compreender a decisão é o conceito de legítima e sua proteção em nosso ordenamento jurídico.
O que significa isso?
A legítima representa metade do patrimônio do falecido e reserva-se obrigatoriamente aos herdeiros necessários – descendentes, ascendentes e, no atual Código Civil, também o cônjuge.
No fundo, o legislador estabeleceu esse limite à liberdade de testar para garantir que os entes mais próximos não sejam totalmente deserdados.
No caso analisado, a Ministra Nancy Andrighi realizou um cálculo matemático preciso:
- Patrimônio total do casal: R$ 750.486,00;
- Parte disponível (50%): R$ 375.243,00;
- Legítima (50%): R$ 375.243,00, que deveria ser dividida igualmente entre os dois filhos;
- Cada filho deveria receber, no mínimo: R$ 187.621,50 (metade da legítima).
Contudo, a filha Andriele recebeu apenas R$ 39.000,00, muito abaixo do valor mínimo a que tinha direito por lei.
Assim, essa disparidade evidenciou a violação à legítima, tornando nula a parte excedente da doação.
A diferença crucial entre nulidade e anulabilidade
Uma curiosidade que foi o ponto central da controvérsia, e que resultou na divergência entre o tribunal estadual e o STJ, foi a qualificação jurídica da doação inoficiosa: seria ela nula ou apenas anulável?
Perceba, a distinção não é meramente acadêmica, pois produz efeitos práticos relevantes.
Ora, o ato nulo padece de vício insanável, não se convalida com o tempo nem pela vontade das partes.
Por outro lado, o ato anulável pode ser confirmado pelos interessados e está sujeito a prazos decadenciais mais curtos.
A Ministra Nancy Andrighi, citando Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, definiu que “o ato nulo (nulidade absoluta), desvalioso por excelência, viola norma de ordem pública, de natureza cogente, e carrega em si vício considerado grave. O ato anulável (nulidade relativa), por sua vez, contaminado por vício menos grave, decorre da infringência de norma jurídica protetora de interesses eminentemente privados”.
No caso da doação inoficiosa, o art. 145 do CC/1916 era expresso ao determinar que seria nulo o ato jurídico quando a lei taxativamente assim o declarasse.
E o art. 1.176 do mesmo código estabelecia que “nula é também a doação quanto à parte, que exceder a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.
Portanto, a conclusão é que a doação inoficiosa é atingida por nulidade absoluta, ao menos na parte excedente.
A irrelevância da concordância prévia
Um outro ponto do acórdão diz respeito à irrelevância da concordância prévia do herdeiro prejudicado. O tribunal estadual havia entendido que a anuência expressa na escritura pública teria o condão de convalidar a doação inoficiosa.
O STJ amparou-se ainda em precedente do Supremo Tribunal Federal (RE 94512/SP), que já havia decidido: “não importa, ainda, que a agravada tenha aceitado a doação da forma como a realizou […]. A norma, que impõe a observância às legítimas dos herdeiros necessários é de caráter cogente”.
Em resumo, tal conclusão reflete a natureza das normas que protegem a legítima. Não se trata de disposições destinadas apenas à proteção de interesses individuais, mas sim de regras que tutelam valores sociais mais amplos, relacionados à proteção familiar e à função social da herança.
Prazos prescricionais: quando é possível questionar a doação inoficiosa

Há prazo?
Outro aspecto relevante abordado pela Ministra Nancy Andrighi foi a questão do prazo para questionar judicialmente a doação inoficiosa.
Embora o ato nulo não se convalide com o tempo, a pretensão de declaração de nulidade está sujeita a prazos prescricionais.
O acórdão esclareceu que, no regime do Código Civil de 1916, aplicável ao caso, o prazo prescricional era de 20 anos para ações pessoais (art. 177), contados da data do negócio jurídico impugnado.
No atual Código Civil, esse prazo foi reduzido para 10 anos (art. 205).
No caso analisado, a escritura pública foi lavrada em dezembro de 1999, e a ação foi ajuizada em março de 2019, pouco antes de completar 20 anos, estando, portanto, dentro do prazo legal.
Como o tema já caiu em provas
Prova: FCC - 2015 - DPE-SP - Defensor Público
João, filho de Mário (falecido em 01.01.2014) e neto de Raimundo por filiação paterna, comparece à Defensoria Pública informando que seu avô, proprietário de 2 (dois) imóveis, realizou doação de uma de suas casas, em 05.05.2015, a suas duas únicas filhas vivas, Marta e Maura, sendo que o interessado, João, único filho de Mário, não anuiu com a doação, nada recebeu em virtude do ato de liberalidade e tampouco fora comunicado dela. Diante deste fato,
Alternativas
A) tendo em vista que a doação de ascendentes a descendentes importa adiantamento do que lhes cabe por herança, as filhas de Raimundo deverão ser chamadas à colação caso verificado que a doação excedeu a parte disponível dos bens do doador, sujeitando-se à redução a parte da doação feita que exceder a legítima e mais a quota disponível.
B) verificando-se tratar de doação inoficiosa, o contrato restará eivado de nulidade que afetará o negócio jurídico como um todo.
C) caso Raimundo tivesse redigido testamento, anteriormente à morte de Mário, atribuindo seu outro imóvel a esse filho somente, ante a morte de Mário, João herdaria o bem com base em seu direito de representação.
D) caso no momento da morte do doador se verifique que a doação realizada ultrapassou a legítima, nesta oportunidade aferida, a doação poderá ser considerada nula quanto à parte que exceder à que o doador poderia dispor em testamento.
E) a doação realizada é anulável, visto que não contou com a anuência do descendente (neto) do doador, que representa o filho pré-morto.
Gab: A.
A letra B está errada pois…
Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!