Medidas cautelares pessoais e o caso Bolsonaro: análise técnico-processual

Medidas cautelares pessoais e o caso Bolsonaro: análise técnico-processual

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução

Em 18 de julho de 2025, o Supremo Tribunal Federal protagonizou decisão de grande relevância para o estudo das medidas cautelares pessoais. O Ministro Alexandre de Moraes determinou a aplicação de diversas medidas cautelares diversas da prisão ao ex-presidente Jair Bolsonaro, no âmbito da Petição 14129, vinculada à Ação Penal 2668, que apura crimes relacionados à tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito.

A decisão monocrática foi submetida ao referendo da Primeira Turma do STF em 21 de julho, ocasião em que os ministros Cármen Lúcia, Flávio Dino e Cristiano Zanin acompanharam o relator, registrando-se divergência do ministro Luiz Fux quanto à proporcionalidade das medidas aplicadas.

O presente estudo analisa o caso sob perspectiva estritamente técnico-processual, sem adentrar em questões político-partidárias ou discussões sobre a (a)tipicidade da conduta ou a (i)legitimidade da competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento do caso. Dessa forma, o objetivo é tão somente examinar a aplicação prática do sistema cautelar pessoal previsto no Código de Processo Penal, utilizando decisão de repercussão nacional como caso paradigmático para compreensão dos institutos processuais.

Fundamentos do sistema cautelar pessoal

Conceito e natureza jurídica

As medidas cautelares pessoais constituem instrumentos processuais destinados a assegurar a eficácia do processo penal, mediante restrição temporária de direitos fundamentais do investigado ou acusado. Assim, distinguem-se das medidas cautelares reais por incidirem sobre a liberdade ambulatorial e direitos conexos, não sobre o patrimônio.

O sistema cautelar brasileiro estrutura-se em gradação de intensidade, partindo de medidas menos invasivas até alcançar a prisão preventiva como medida extrema. Essa escala progressiva reflete o princípio da proporcionalidade e a natureza subsidiária da custódia cautelar.

Requisitos legais: o binômio do artigo 282

O artigo 282 do CPP estabelece dois requisitos fundamentais e cumulativos para aplicação de qualquer medida cautelar:

I – Necessidade: a medida deve ser imprescindível para:

  • Aplicação da lei penal
  • Adequada investigação ou instrução criminal
  • Evitar a prática de infrações penais (nos casos expressamente previstos)

II – Adequação: a medida deve observar proporcionalidade com:

  • A gravidade do crime
  • As circunstâncias do fato
  • As condições pessoais do indiciado ou acusado

Esses requisitos funcionam como filtros processuais que impedem a aplicação arbitrária de medidas restritivas. A necessidade relaciona-se ao periculum libertatis, enquanto a adequação materializa o princípio da proporcionalidade.

O sistema de medidas cautelares diversas da prisão

O catálogo do artigo 319

O legislador estabeleceu nove modalidades de medidas cautelares alternativas à prisão:

I - Comparecimento periódico em juízo - Consiste na obrigação de apresentação regular perante a autoridade judicial para informar e justificar atividades. Medida adequada para crimes de menor potencial ofensivo, quando o investigado possui endereço fixo e ocupação lícita definida.

II - Proibição de acesso ou frequência a determinados lugares - Restrição espacial vinculada às circunstâncias do delito. Aplicável quando o local guarda relação com a prática criminosa ou quando a presença do investigado pode comprometer a ordem pública. Exemplos: vedação de acesso a estádios em crimes relacionados a violência em eventos esportivos; proibição de frequentar a residência da vítima em casos de violência doméstica.

III - Proibição de manter contato com pessoa determinada - Medida destinada à proteção de vítimas e testemunhas ou para impedir concertação entre investigados. No caso analisado, aplicou-se esta medida para vedar contato entre o ex-presidente e corréus, incluindo seu filho Eduardo Bolsonaro.

IV - Proibição de ausentar-se da Comarca - Limitação territorial que assegura a disponibilidade do investigado para atos processuais. Pode ser modulada conforme as necessidades, admitindo-se autorizações judiciais para deslocamentos justificados.

V - Recolhimento domiciliar - Restrição parcial da liberdade ambulatorial, aplicável no período noturno e dias de folga quando o investigado mantém residência e trabalho fixos. No caso em análise, determinou-se recolhimento das 19h às 6h nos dias úteis e integral nos finais de semana e feriados.

VI - Suspensão do exercício de função pública ou atividade econômica - Medida específica para crimes funcionais ou quando a manutenção na função pode comprometer a investigação. Visa impedir a utilização do cargo para obstrução processual ou reiteração delitiva.

VII - Internação provisória - Aplicável exclusivamente a inimputáveis ou semi-imputáveis nos termos do artigo 26 do Código Penal, quando praticado crime com violência ou grave ameaça e houver risco de reiteração.

VIII - Fiança - Garantia patrimonial com tríplice função: assegurar o comparecimento aos atos processuais, garantir eventual indenização e custear despesas processuais. Pode ser cumulada com outras medidas cautelares.

IX - Monitoração eletrônica - Controle tecnológico de deslocamentos mediante dispositivo eletrônico. Permite fiscalização remota do cumprimento de outras cautelares, especialmente o recolhimento domiciliar.

Medidas cautelares inominadas: o poder geral de cautela

Medidas cautelares

A jurisprudência consolidou entendimento de que o rol do artigo 319 possui natureza exemplificativa. O poder geral de cautela autoriza o magistrado a determinar medidas não expressamente previstas, desde que observados os requisitos de necessidade e adequação.

No caso analisado, o Ministro Alexandre de Moraes determinou a proibição de uso de redes sociais, medida não catalogada no artigo 319. A decisão fundamentou-se na relação entre o meio digital e a suposta prática delitiva, demonstrando adequação entre a restrição imposta e as circunstâncias do caso.

Em seguida, outros exemplos de medidas atípicas admitidas pela jurisprudência:

  • Entrega de passaporte
  • Proibição de concessão de entrevistas
  • Vedação de participação em eventos públicos
  • Limitação de acesso a sistemas informatizados

A progressividade no descumprimento: análise do §4º do artigo 282

A escala de respostas ao descumprimento

O §4º do artigo 282 estabelece sistema escalonado de consequências para o descumprimento de medidas cautelares:

  1. Substituição da medida: primeira alternativa, consistente na troca por outra medida mais adequada ou eficaz
  2. Cumulação de medidas: segunda opção, mediante adição de novas restrições às já existentes
  3. Prisão preventiva: apenas “em último caso”, como medida extrema

Esta progressividade é obrigatória, não facultativa. Logo, o magistrado deve esgotar as alternativas menos gravosas antes de decretar a prisão, fundamentando a insuficiência de cada uma delas.

A prisão preventiva como “Ultima Ratio”

Por conseguinte, o §6º do artigo 282 reforça o caráter excepcional da prisão cautelar:

"A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada."

A exigência de fundamentação individualizada impede decisões genéricas ou padronizadas. Por isso, cada caso exige análise específica das circunstâncias que tornam insuficientes as medidas alternativas.

O caso concreto: análise da decisão

As medidas aplicadas

O Ministro Alexandre de Moraes determinou o seguinte conjunto de medidas cautelares:

  • Monitoração eletrônica (art. 319, IX)
  • Recolhimento domiciliar noturno e integral nos finais de semana (art. 319, V)
  • Proibição de uso de redes sociais (medida inominada)
  • Proibição de acesso a embaixadas e consulados (art. 319, II)
  • Proibição de contato com autoridades diplomáticas (art. 319, III)
  • Proibição de contato com corréus e investigados (art. 319, III)

A combinação de medidas típicas e atípicas demonstra a flexibilidade do sistema cautelar para adequar-se às peculiaridades do caso concreto.

O descumprimento e a não conversão em prisão

Constatado o descumprimento pontual da medida cautelar – especificamente a divulgação de conteúdo em redes sociais de terceiros – o magistrado optou por não decretar a prisão preventiva. Nesse sentido, a fundamentação observou rigorosamente os parâmetros legais:

  1. Análise da natureza do descumprimento: qualificado como isolado e não reiterado;
  2. Avaliação da necessidade atual: ausência de demonstração de que as medidas vigentes se tornaram insuficientes;
  3. Manutenção do status quo: preservação das medidas já impostas;
  4. Advertência formal: indicação expressa de que novo descumprimento ensejaria a prisão.

Esta decisão exemplifica a aplicação prática da progressividade estabelecida no §4º do artigo 282, demonstrando que o descumprimento não gera automaticamente a conversão em prisão preventiva.

Conclusão

O caso analisado oferece exemplo paradigmático da aplicação do sistema cautelar pessoal brasileiro. A decisão do Supremo Tribunal Federal demonstra, neste particular, observância aos princípios fundamentais que regem a matéria: subsidiariedade da prisão, progressividade das respostas ao descumprimento e necessidade de fundamentação individualizada.

Para o operador do direito, especialmente aqueles que se preparam para ingresso nas carreiras jurídicas, o caso evidencia aspectos essenciais:

  1. A imprescindibilidade da análise conjunta dos requisitos de necessidade e adequação
  2. O caráter meramente exemplificativo do rol do artigo 319
  3. A obrigatoriedade da progressividade na resposta ao descumprimento
  4. A natureza excepcional da prisão preventiva no sistema cautelar

Por fim, a correta compreensão desses institutos transcende o conhecimento teórico, revelando-se fundamental para a atuação prática no processo penal. O caso demonstra que o sistema cautelar pessoal, quando adequadamente aplicado, consegue equilibrar as necessidades quanto à eficácia do processo com a preservação dos direitos fundamentais, independentemente da posição social, ideológica ou política do investigado.


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