* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
Uma cena chamou a atenção nos últimos dias, causando uma enorme polêmica: o hino nacional foi entoado em linguagem neutra em um comício de Guilherme Boulos, candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo.
A cerimônia contou com a participação do presidente Lula e de Marta Suplicy, candidata a vice-prefeita, na chapa de Boulos.
Foi possível ouvir a cantora Yurungai, responsável por cantar o hino no ato, trocar o gênero da última estrofe para o gênero neutro. Em vez de “dos filhos deste solo és mãe gentil”, ela cantou “des files deste solo…”.
Yurungai é cantora, compositora e tocadora de Mbira, um instrumento musical de origem africana. Em seu perfil do Instagram, a artista diz que sua obra “reinterpreta a música popular brasileira com influência africana”.
A campanha de Boulos disse que em momento algum solicitou ou autorizou a alteração na letra do Hino Nacional:
“A campanha, em momento algum, solicitou ou autorizou alteração na letra do Hino Nacional interpretado na abertura do comício no último sábado, 24, na Zona Sul da cidade. A produtora, organizadora do evento, foi responsável pela contratação de todos os profissionais que trabalharam para a realização da atividade, incluindo a seleção e o convite à intérprete que cantou o Hino Nacional”.
Reação negativa
Vários líderes e parlamentares da oposição se manifestaram contra a alteração do hino, acusando a intérprete e os organizadores do evento de desrespeito aos símbolos nacionais.
- Nikolas Ferreira (PL-MG), deputado federal, afirmou que a mudança seria um ataque à cultura e à língua: “A intenção era tirar sarro?“
- Flávio Bolsonaro (PL-RJ), senador, criticou severamente o uso da linguagem neutra no hino: “Desrespeitar os símbolos nacionais é crime, um crime que aconteceu embaixo do nariz do presidente da República“.
- Kim Kataguiri (União Brasil-SP), deputado federal, compartilhou a sua indignação: “Cantar o hino nacional dessa forma não é só vergonhoso. É crime, mas a esquerda não se importa“.
- Thiago Gagliasso (PL-RJ), deputado estadual, atacou os políticos presentes no evento: “Os desgraçados cantaram o hino nacional em linguagem neutra“.
Após a repercussão negativa nas redes sociais a campanha de Boulos retirou o vídeo do ar.
Análise jurídica
Passemos, agora, para as repercussões jurídicas desse episódio inusitado.
Linguagem neutra
A linguagem neutra ou linguagem inclusiva é uma forma de comunicação que visa incluir todas as pessoas, independentemente da sua identidade de gênero, sexualidade ou outros aspetos da sua expressão, e sua utilização é defendida por simpatizantes da comunidade LGBTQIA+.
A linguagem neutra aplica um gênero neutro em vez do feminino ou masculino, evitando termos ou expressões que possam ser discriminatórios ou reforçar estereótipos de gênero.
Aplicação prática da linguagem neutra:
- Pronomes neutros: elu/delu;
- Substantivos e adjetivos neutros: substituição de palavras com conotações de gênero, como “homem” ou “mulher”, por “pessoa” ou “indivíduo”;
- Formas neutras de tratamento: evitar usar formas de tratamento que definem um gênero exclusivo, como “prezado” ou “prezada”, que são substituídas por “prezade”.
Cantar o hino nacional em linguagem neutra pode ser enquadrado como crime ou deve ser encarado como ato de respeito à diversidade? O que diz a legislação? Vejamos.
Constituição Federal
Segundo a Constituição Federal (artigo 13) a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil, que possui 04 símbolos nacionais:
- A bandeira;
- O hino;
- As armas; e
- O selo nacionais.
CF/88 Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. § 1º São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais. § 2º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão ter símbolos próprios.
Atitude de respeito
A Lei nº 5.700/71 dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais. Essa lei impõe uma série de exigências visando garantir e preservar sentimentos de patriotismo e respeito.
O artigo 35, inclusive, tipifica como contravenção penal a violação às exigências trazidas pela lei, sujeitando o infrator à pena de multa de uma a quatro vezes o maior valor de referência vigente no País, elevada ao dobro nos casos de reincidência.
Especificamente quanto ao hino nacional, o que temos de exigências afinal? Elas estão elencadas nos artigos 24 e 25.
A execução do Hino Nacional obedecerá às seguintes prescrições: I - Será sempre executado em andamento metronômico de uma semínima igual a 120 (cento e vinte); II - É obrigatória a tonalidade de si bemol para a execução instrumental simples; III - Far-se-á o canto sempre em uníssono; IV - nos casos de simples execução instrumental ou vocal, o Hino Nacional será tocado ou cantado integralmente, sem repetição. V - Nas continências ao Presidente da República, para fins exclusivos do Cerimonial Militar, serão executados apenas a introdução e os acordes finais.
Será o Hino Nacional executado: I - Em continência à Bandeira Nacional e ao Presidente da República, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal, quando incorporados; e nos demais casos expressamente determinados pelos regulamentos de continência ou cerimônias de cortesia internacional; II - Na ocasião do hasteamento da Bandeira Nacional; III - na abertura das competições esportivas organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Desporto.
Ou seja, pela literalidade da norma não há qualquer previsão impedindo a alteração da letra do hino ao ser cantado.
O que há, entretanto, é a previsão do artigo 30, que exige uma atitude de respeito na execução do hino nacional:
Portanto, a discussão, do ponto de vista legal, passa por saber se a alteração da letra do hino para se adaptar à linguagem neutra configura ou não atitude de desrespeito.
Se considerarmos a linguagem neutra como desrespeito ao hino nacional o responsável deverá, então, ser condenado às penas inerentes à contravenção penal prevista no artigo 35.
Por outro lado, caso entendamos que a adaptação da letra, ao contrário de desrespeitar o símbolo nacional, acaba por prestigiar a diversidade de gênero, não há qualquer irregularidade.
Repercussão da linguagem neutra
Alguns Estados e Municípios já proibiram o uso da linguagem neutra1. São eles:
- Paraná: em janeiro de 2023, sancionou-se uma lei que proíbe a aplicação de linguagem neutra em escolas estaduais, editais, currículos escolares, concursos públicos e em comunicações do governo do estado.
- Rondônia: entrou em vigor em 2021 uma lei que proibia a linguagem neutra na grade curricular e no material de ensino público e privado, além de em editais de concursos públicos.
- Santa Catarina: um decreto estadual de 2021, que está em vigor, proíbe o uso dessa linguagem na redação de documentos oficiais e nas instituições de ensino ou dentro de sala de aula.
- Manaus: a prefeitura de Manaus decretou a lei em abril de 2022, que proíbe a utilização da linguagem neutra no ensino da matéria da Língua Portuguesa nas escolas.
- Porto Alegre: em junho de 2022 houve a sanção de uma lei que proíbe o uso da linguagem neutra em escolas e na administração pública.
O STF, à princípio, tem considerado inconstitucionais leis que proíbem o uso de linguagem neutra, sob o fundamento de que a competência para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional é da União. Além de violação à garantia da liberdade de expressão, a proibição da censura é um dos objetivos fundamentais da República, relacionado à promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Desse modo, Ministro Flávio Dino arrematou, na ADI 7644:
“…a língua é viva e está sempre aberta a novas possibilidades. Por isso, não se descarta a possibilidade de utilização da linguagem neutra. A seu ver, trata-se de um processo cultural decorrente de mudanças sociais que, posteriormente, podem ser incorporadas ao sistema jurídico.
‘A gestão democrática da educação nacional exige, inclusive para adoção ou não da linguagem neutra, o amplo debate do tema entre a sociedade civil e órgãos estatais, sobretudo se envolver mudanças em normas vigentes’.”
Vejamos alguns julgados do STF nesse sentido:
Águas Lindas de Goiás (GO) -> ADPF 1150
Ibirité (MG) -> ADPF 1155
Amazonas (AM) -> ADI 7644
Rondônia (RO) -> ADI 7019
Paraná (PR) -> ADI 7564 (Ainda não há decisão)
Conclusão
Em resumo, ainda não temos um posicionamento jurisprudencial firme sobre a possibilidade de adaptação do hino nacional para a linguagem neutra, mas em relação às leis que proíbem o uso dessa linguagem nos Estados e Municípios já existe a formação de uma linha de pensamento no sentido de permitir o uso da linguagem neutra (sala de aula, documentos oficiais, propaganda etc.).
A discussão é extremamente polêmica, e pode surgir em provas de direitos humanos, direito constitucional, direito penal e português. Portanto, muita atenção!
- Disponível em: <https://www.handtalk.me/br/blog/linguagem-neutra-e-acessibilidade/>. ↩︎
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