STJ absolve mãe por lesionar filha em ritual de candomblé
Foto: Roger Cipó

STJ absolve mãe por lesionar filha em ritual de candomblé

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Superior Tribunal de Justiça absolveu uma mãe acusada de lesionar a filha durante um ritual candomblé. A Corte entendeu que não cabia rever a absolvição da mãe reconhecida pela Justiça paulista como compatível com a liberdade religiosa.

O caso aconteceu em janeiro de 2021, em Campinas/SP. A mãe levou a filha, de 10 anos, a um ritual de candomblé no qual a criança sofreu pequenas escarificações com lâmina, o que teria causado lesões corporais leves.

O Ministério Público alegou que a conduta se enquadrava no crime de lesão corporal no contexto da lei Maria da Penha.

O juízo de primeiro grau absolveu a mãe com fundamento na atipicidade da conduta (artigo 397, III, do CPP).

O magistrado entendeu que o ritual religioso não causou prejuízo físico, psicológico ou estético à criança e estava protegido:

  • Pela liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF); e
  • Pelo direito dos pais de transmitirem suas crenças aos filhos (art. 22, parágrafo único, do ECA).

Em seguida, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve o entendimento do juízo de 1º grau. Entendeu-se que não se pode criminalizar a escarificação praticada no contexto do Candomblé sem que haja lesão relevante, o que não ocorreu no caso.

Liberdade religiosa

O Tribunal paulista destacou que as marcas eram mínimas – cicatrizes lineares de 0,5 cm – e que “o exercício de um direito constitucional, a liberdade religiosa e a consequente possibilidade de transmissão das crenças aos filhos…não pode acarretar consequências penais”.

Ao recorrer ao STJ, o Ministério Público sustentou que o exame dos autos permitiria a revaloração jurídica dos fatos, sem reanálise de provas. Alegou, ainda, que a absolvição foi prematura e pediu o retorno do processo à origem para a devida instrução criminal.

O superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição da mãe.

Análise jurídica

Atipicidade da conduta

O principal fundamento para a absolvição da religiosa foi a atipicidade da conduta, prevista no artigo 397, III, do Código de Processo Penal.

CPP

Art. 397.  Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:           

I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;           

II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;           

III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou           

IV - extinta a punibilidade do agente.

A atipicidade da conduta, em Direito Penal, significa que uma ação ou omissão, mesmo que possa parecer contrária à legislação penal, não se encaixa, formal ou materialmente, em nenhuma descrição legal de crime previsto na lei (tipo penal), não podendo ser enquadrado como crime.

Ou seja, a tipicidade é um princípio fundamental no Direito Penal que se refere à correspondência entre a conduta de um agente e a descrição de um crime previsto em lei.

A tipicidade está intimamente ligada ao princípio da legalidade, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, conforme descrito no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e no artigo 1º do Código Penal brasileiro.

Existem, basicamente, dois tipos de tipicidade: a formal e a material. Vejamos então:

Tipicidade formal -> Refere-se à correspondência exata entre a conduta do agente e a descrição do crime na lei penal. Em outras palavras, a ação ou omissão deve se ajustar precisamente ao que é descrito como crime na lei.

Tipicidade material -> Vai além da mera correspondência formal entre a conduta e a lei. Considera também a relevância do resultado da ação, exigindo que haja uma violação significativa de um bem jurídico protegido para que se considere a conduta como criminosa.

Segundo a teoria da tipicidade conglobante, a análise da tipicidade deve ser feita não apenas pela correspondência formal entre a conduta e o tipo penal, mas também pela consideração de normas e princípios jurídicos complementares que possam justificar ou excluir a criminalidade da ação.

Ou seja, para um fato ser penalmente típico, ele precisa ser formalmente e materialmente típico.

Liberdade religiosa

A Constituição Federal garante a liberdade religiosa como um direito fundamental, que deve ser respeitada por todos (artigo 5º, VI).

CF/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

A liberdade religiosa como direito fundamental implica que o Estado não deve interferir nas liturgias e não deve embaraçar, de qualquer forma, o livre exercício de culto religioso, independentemente de se tratar de religião adotada pela maioria ou minoria da população brasileira, como o são os umbandistas e candomblecistas.

O dever estatal de abstenção se impõe, em âmbito administrativo, tributário e especialmente criminal, e tratar o cidadão que vive a fé e age de acordo com os preceitos de sua religião como criminoso é odioso e flagrantemente inconstitucional.

Além do mais, os pais podem educar os filhos de acordo com sua convicção religiosa e podem transmitir suas crenças e culturas a seus filhos. Isso é o que expressamente assegura o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, parágrafo único.

ECA

Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Parágrafo único.  A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.

A limitação ao direito à liberdade religiosa, que tem natureza constitucional, é excepcional e somente se justifica para preservação de algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese concretamente considerada.

Laicidade

A Constituição Federal de 1988 indica a República Federativa do Brasil como um país laico. Ou seja, existe uma separação entre Estado e Religião, permitindo uma ampla liberdade religiosa.

A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.

Benefícios trazidos pela laicidade:

  • Assegura liberdade religiosa;
  • Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
  • Assegura autonomia individual;
  • Assegura a pluralidade de pensamento e crença.

Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.

Aliás, importante não confundir laicidade com laicismo!

LAICIDADELAICISMO
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões.Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias.

STF e liberdade religiosa

Sacrifício de animais

Em 2019, o Supremo validou a lei gaúcha nº 12.131/2004, que permite o sacrifício de animais em ritos religiosos (RE 494.601).

O recurso visava declarar a inconstitucionalidade do sacrifício de animais em rituais religiosos com base na previsão do art. 225, §1º, VII, que prevê, como dever do poder público, “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.  

O ministro Edson Fachin reconheceu a total validade do texto legal, para quem a menção específica às religiões de matriz africana não apresenta inconstitucionalidade. Isso porque a utilização de animais é de fato intrínseca a esses cultos e a eles deve ser destinada uma proteção legal ainda mais forte, uma vez que são objeto de estigmatização e preconceito estrutural da sociedade.

O ministro Luiz Fux considerou que este é o momento próprio para o Direito afirmar que não há nenhuma ilegalidade no culto, liturgias e rituais, e que o julgado vai contribuir para dar um basta nessa escalada de violência e de atentados cometidos contra as casas de cultos de matriz africana.

Assim, a tese fixada pelo STF é a seguinte:

“É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”.

Dia da Consciência Negra

Em 2023, o presidente Lula sancionou a Lei nº 14.759/2023, que incluiu no calendário nacional o feriado da Consciência Negra, em 20 de novembro. A data faz referência à morte do líder do Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência negra contra a escravidão no Brasil.

O ministro Luís Roberto Barroso, destacou que o Dia da Consciência Negra celebra e enaltece um dos pilares da nacionalidade brasileira: “A data traz consigo a reflexão sobre os séculos de superação e resiliência do povo negro, além da busca por respeito, igualdade e oportunidades”.

Símbolos religiosos em órgãos públicos – TEMA 1.086

Em novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do TEMA 1.086, decidindo, de forma unânime, validar o uso de símbolos religiosos, como imagens e crucifixos, em órgãos públicos, haja vista que tal prática não fere a laicidade do Estado nem a liberdade religiosa.

Entenda a origem do TEMA 1.086.

O Ministério Público Federal acionou a Justiça Federal, em São Paulo, com o objetivo de proibir a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos, sob o argumento de que que o Brasil é um país laico e que o poder público deve estar desvinculado de qualquer igreja ou religião.

Tanto o juízo de primeiro grau quanto o TRF-3 rejeitaram o pedido, considerando que a presença desses símbolos reafirma a liberdade religiosa e o respeito a aspectos culturais da sociedade brasileira.

O MPF, então, interpôs RE ao Supremo, que confirmou o entendimento das instâncias ordinárias.

O Conselho Nacional de Justiça tem entendimento de que os símbolos religiosos são manifestações da cultura e da tradição, e a Constituição Federal protege a liberdade religiosa, sua manifestação e seu livre exercício, e proíbe a discriminação por motivos de crença ou convicção filosófica.

TEMA 1.086 do STF: “A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.

Ótimo tema para provas de direito constitucional, ECA e direito penal.


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