* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o que aconteceu
O Superior Tribunal de Justiça absolveu uma mãe acusada de lesionar a filha durante um ritual candomblé. A Corte entendeu que não cabia rever a absolvição da mãe reconhecida pela Justiça paulista como compatível com a liberdade religiosa.
O caso aconteceu em janeiro de 2021, em Campinas/SP. A mãe levou a filha, de 10 anos, a um ritual de candomblé no qual a criança sofreu pequenas escarificações com lâmina, o que teria causado lesões corporais leves.
O Ministério Público alegou que a conduta se enquadrava no crime de lesão corporal no contexto da lei Maria da Penha.
O juízo de primeiro grau absolveu a mãe com fundamento na atipicidade da conduta (artigo 397, III, do CPP).
O magistrado entendeu que o ritual religioso não causou prejuízo físico, psicológico ou estético à criança e estava protegido:
- Pela liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF); e
- Pelo direito dos pais de transmitirem suas crenças aos filhos (art. 22, parágrafo único, do ECA).
Em seguida, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve o entendimento do juízo de 1º grau. Entendeu-se que não se pode criminalizar a escarificação praticada no contexto do Candomblé sem que haja lesão relevante, o que não ocorreu no caso.

O Tribunal paulista destacou que as marcas eram mínimas – cicatrizes lineares de 0,5 cm – e que “o exercício de um direito constitucional, a liberdade religiosa e a consequente possibilidade de transmissão das crenças aos filhos…não pode acarretar consequências penais”.
Ao recorrer ao STJ, o Ministério Público sustentou que o exame dos autos permitiria a revaloração jurídica dos fatos, sem reanálise de provas. Alegou, ainda, que a absolvição foi prematura e pediu o retorno do processo à origem para a devida instrução criminal.
O superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição da mãe.
Análise jurídica
Atipicidade da conduta
O principal fundamento para a absolvição da religiosa foi a atipicidade da conduta, prevista no artigo 397, III, do Código de Processo Penal.
CPP
Art. 397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar:
I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato;
II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade;
III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou
IV - extinta a punibilidade do agente.
A atipicidade da conduta, em Direito Penal, significa que uma ação ou omissão, mesmo que possa parecer contrária à legislação penal, não se encaixa, formal ou materialmente, em nenhuma descrição legal de crime previsto na lei (tipo penal), não podendo ser enquadrado como crime.
Ou seja, a tipicidade é um princípio fundamental no Direito Penal que se refere à correspondência entre a conduta de um agente e a descrição de um crime previsto em lei.
A tipicidade está intimamente ligada ao princípio da legalidade, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, conforme descrito no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal e no artigo 1º do Código Penal brasileiro.
Existem, basicamente, dois tipos de tipicidade: a formal e a material. Vejamos então:
Tipicidade formal -> Refere-se à correspondência exata entre a conduta do agente e a descrição do crime na lei penal. Em outras palavras, a ação ou omissão deve se ajustar precisamente ao que é descrito como crime na lei.
Tipicidade material -> Vai além da mera correspondência formal entre a conduta e a lei. Considera também a relevância do resultado da ação, exigindo que haja uma violação significativa de um bem jurídico protegido para que se considere a conduta como criminosa.
Segundo a teoria da tipicidade conglobante, a análise da tipicidade deve ser feita não apenas pela correspondência formal entre a conduta e o tipo penal, mas também pela consideração de normas e princípios jurídicos complementares que possam justificar ou excluir a criminalidade da ação.
Ou seja, para um fato ser penalmente típico, ele precisa ser formalmente e materialmente típico.
Liberdade religiosa
A Constituição Federal garante a liberdade religiosa como um direito fundamental, que deve ser respeitada por todos (artigo 5º, VI).
CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
A liberdade religiosa como direito fundamental implica que o Estado não deve interferir nas liturgias e não deve embaraçar, de qualquer forma, o livre exercício de culto religioso, independentemente de se tratar de religião adotada pela maioria ou minoria da população brasileira, como o são os umbandistas e candomblecistas.
O dever estatal de abstenção se impõe, em âmbito administrativo, tributário e especialmente criminal, e tratar o cidadão que vive a fé e age de acordo com os preceitos de sua religião como criminoso é odioso e flagrantemente inconstitucional.
Além do mais, os pais podem educar os filhos de acordo com sua convicção religiosa e podem transmitir suas crenças e culturas a seus filhos. Isso é o que expressamente assegura o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, parágrafo único.
ECA
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.
A limitação ao direito à liberdade religiosa, que tem natureza constitucional, é excepcional e somente se justifica para preservação de algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese concretamente considerada.
Laicidade
A Constituição Federal de 1988 indica a República Federativa do Brasil como um país laico. Ou seja, existe uma separação entre Estado e Religião, permitindo uma ampla liberdade religiosa.
A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.
Benefícios trazidos pela laicidade:
- Assegura liberdade religiosa;
- Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
- Assegura autonomia individual;
- Assegura a pluralidade de pensamento e crença.
Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.
Aliás, importante não confundir laicidade com laicismo!
LAICIDADE | LAICISMO |
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões. | Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias. |
STF e liberdade religiosa
Sacrifício de animais
Em 2019, o Supremo validou a lei gaúcha nº 12.131/2004, que permite o sacrifício de animais em ritos religiosos (RE 494.601).
O recurso visava declarar a inconstitucionalidade do sacrifício de animais em rituais religiosos com base na previsão do art. 225, §1º, VII, que prevê, como dever do poder público, “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
O ministro Edson Fachin reconheceu a total validade do texto legal, para quem a menção específica às religiões de matriz africana não apresenta inconstitucionalidade. Isso porque a utilização de animais é de fato intrínseca a esses cultos e a eles deve ser destinada uma proteção legal ainda mais forte, uma vez que são objeto de estigmatização e preconceito estrutural da sociedade.
O ministro Luiz Fux considerou que este é o momento próprio para o Direito afirmar que não há nenhuma ilegalidade no culto, liturgias e rituais, e que o julgado vai contribuir para dar um basta nessa escalada de violência e de atentados cometidos contra as casas de cultos de matriz africana.
Assim, a tese fixada pelo STF é a seguinte:
“É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”.
Dia da Consciência Negra
Em 2023, o presidente Lula sancionou a Lei nº 14.759/2023, que incluiu no calendário nacional o feriado da Consciência Negra, em 20 de novembro. A data faz referência à morte do líder do Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência negra contra a escravidão no Brasil.
O ministro Luís Roberto Barroso, destacou que o Dia da Consciência Negra celebra e enaltece um dos pilares da nacionalidade brasileira: “A data traz consigo a reflexão sobre os séculos de superação e resiliência do povo negro, além da busca por respeito, igualdade e oportunidades”.
Símbolos religiosos em órgãos públicos – TEMA 1.086
Em novembro de 2024, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do TEMA 1.086, decidindo, de forma unânime, validar o uso de símbolos religiosos, como imagens e crucifixos, em órgãos públicos, haja vista que tal prática não fere a laicidade do Estado nem a liberdade religiosa.
Entenda a origem do TEMA 1.086.
O Ministério Público Federal acionou a Justiça Federal, em São Paulo, com o objetivo de proibir a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos, sob o argumento de que que o Brasil é um país laico e que o poder público deve estar desvinculado de qualquer igreja ou religião.
Tanto o juízo de primeiro grau quanto o TRF-3 rejeitaram o pedido, considerando que a presença desses símbolos reafirma a liberdade religiosa e o respeito a aspectos culturais da sociedade brasileira.
O MPF, então, interpôs RE ao Supremo, que confirmou o entendimento das instâncias ordinárias.
O Conselho Nacional de Justiça tem entendimento de que os símbolos religiosos são manifestações da cultura e da tradição, e a Constituição Federal protege a liberdade religiosa, sua manifestação e seu livre exercício, e proíbe a discriminação por motivos de crença ou convicção filosófica.
TEMA 1.086 do STF: “A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”.
Ótimo tema para provas de direito constitucional, ECA e direito penal.
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