Advogada casada com traficante é barrada no concurso para delegado

Advogada casada com traficante é barrada no concurso para delegado

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Uma advogada mineira de 32 anos acabou sendo excluída do concurso para delegado da Polícia Civil de Santa Catarina na fase de investigação social. O motivo foi o fato de ela ter casado com um homem condenado por tráfico de drogas e participação no compartilhamento de lucros do crime (ambiência criminosa).

A advogada havia passado com ótima colocação pela prova objetiva, prova dissertativa, teste de capacidade física, prova oral, avaliação psicológica, exame toxicológico e avaliação de títulos, mas acabou sendo excluída na fase de investigação social.

A Polícia Civil de Santa Catarina justificou sua eliminação com base no edital. O documento determina que se deve avaliar a idoneidade dos candidatos considerando seu histórico social e relações interpessoais, garantindo a adequação ao cargo.

Defesa da advogada

A candidata impetrou, em janeiro de 2025, um mandado de segurança com o objetivo de ser reintegrada no certame. Ela alegou que sua eliminação na fase de investigação social foi injusta: “Eu não posso ser responsabilizada pela conduta de terceiros”.

FUNDAMENTOS DA CANDIDATA NO MANDADO DE SEGURANÇA
A eliminação foi desproporcional.
Quando conheceu seu companheiro, ele já havia sido condenado e cumpria pena em liberdade, sem qualquer envolvimento atual com atividades ilícitas.
A relação se desenvolveu de forma natural e nunca teve qualquer ligação com os crimes pelos quais ele foi sentenciado.
Sempre manteve uma vida social e profissional ilibada, e sua conduta jamais foi questionada antes da fase de investigação social.
Sua eliminação viola o princípio da pessoalidade da pena, pois estaria sendo punida pelo passado de outra pessoa sem comprovação de que essa relação afetiva comprometeria sua idoneidade ou sua capacidade de exercer o cargo.
O critério usado para sua exclusão foi “subjetivo e abusivo”, pois o edital não determinava expressamente a eliminação de candidatos por conta de seus relacionamentos conjugais.
Questionou, ainda, por que sua trajetória acadêmica e profissional não foi levada em consideração na avaliação.
Seu cônjuge, apesar de condenado por tráfico, possui emprego formal e uma carreira estável.

A candidata até conseguiu uma liminar determinando sua reintegração provisória. No entanto, a 2ª Câmara de Direito Público do TJSC acabou denegando a segurança e, consequentemente, mantendo sua eliminação.

Análise jurídica

Investigação social

A Investigação Social, justificada pela indisponibilidade do interesse público, tem por objetivo avaliar aspectos da vida dos candidatos em sociedade que permitam concluir que seus hábitos e comportamentos adequam-se à investidura no cargo e ao exercício de suas prerrogativas, em cumprimento da exigência de conduta social ilibada dos pretendentes ao cargo de delegado.

Na fase de investigação social os candidatos passam por uma apuração que busca identificar condutas inadequadas e reprováveis do candidato nos mais diversos aspectos da vida em sociedade, incompatíveis com o exercício da função de Delegado de Polícia.

Entre os aspectos a se investigar sobre a vida dos candidatos em sociedade, incluem-se suas relações interpessoais e eventuais transgressões à ordem jurídica vigente, que não se limitam à busca por inquéritos, processos e sentenças.

Aqui temos a famosa “ambiência criminosa”.

investigação social

A fase de investigação social pode levar em consideração:

  • Antecedentes profissionais e ocupacionais;
  • Relações sociais incompatíveis com o exercício da função;
  • Inadimplemento de obrigações contratuais;
  • Uso de drogas ilícitas.

Eliminação de candidato

A investigação social em concursos públicos é uma fase do certame que, além de servir à apuração de infrações criminais, presta-se a avaliar idoneidade moral e lisura daqueles que desejam ingressar nos quadros da administração pública.

Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça entendem que o candidato não pode ser eliminado de concurso público, na fase de investigação social, em virtude da existência de termo circunstanciado, inquérito policial ou ação penal sem trânsito em julgado ou extinta pela prescrição da pretensão punitiva.

O Supremo consolidou a questão no julgamento do TEMA 22, senão vejamos:

Tese fixada no TEMA 22, do STF: “Sem previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal”.

A eliminação do candidato do concurso na fase de investigação social, nessa hipótese, pressupõe:

  • I – Condenação definitiva; e
  • II – Relação de incompatibilidade entre a natureza do crime em questão e as atribuições do cargo concretamente pretendido, a ser demonstrada de forma motivada por decisão da autoridade competente.

Mas o Supremo não parou por aí, já que, posteriormente, consolidou um entendimento mais abrangente sobre o tema.

Suspensão dos direitos políticos

O art. 15, III, da Constituição Federal, determina que em caso de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, os direitos políticos são suspensos.

A interpretação predominante na doutrina e jurisprudência é no sentido de que, enquanto estiver sendo cumprida a pena imposta, o condenado criminalmente permanece com os direitos políticos suspensos.

Daí surge a pergunta: é possível invocar a suspensão dos direitos políticos para impedir a nomeação e posse do condenado aprovado em concurso público? Muitos editais trazem esse requisito, tentando impedir a nomeação daquele que está cumprindo pena.

Em âmbito federal, a Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, exige como requisito básico para investidura em cargo público, dentre outros, o gozo dos direitos políticos.

Mas o STF tem entendimento pacificado sobre a questão em sentido contrário. E essa pacificação se deu no julgamento do TEMA 1.190, onde se fixou a seguinte tese:

TEMA 1.190: É inconstitucional, por violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (CF, artigo 1º, III e IV), a vedação a que candidato aprovado em concurso público venha a tomar posse no cargo, por não preencher os requisitos de gozo dos direitos políticos e quitação eleitoral, em razão de condenação criminal transitada em julgado (CF, artigo 15, III), quando este for o único fundamento para sua eliminação no certame, uma vez que é obrigatoriedade do Estado e da sociedade fornecer meios para que o egresso se reintegre à sociedade. O início do efetivo exercício do cargo ficará condicionado ao regime da pena ou à decisão judicial do juízo de execuções, que analisará a compatibilidade de horários.

Portanto, o STF decidiu que condenados aprovados em concursos públicos podem ser nomeados e empossados. Contudo, é necessário que não haja incompatibilidade entre o cargo a ser exercido e o crime cometido nem conflito de horários entre a jornada de trabalho e o regime de cumprimento da pena.

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes explicou que a suspensão dos direitos políticos em caso de condenação criminal não alcança direitos civis e sociais. “O que a Constituição Federal estabelece é a suspensão do direito de votar e de ser votado, e não do direito a trabalhar”, assinalou, ressaltando que a ressocialização dos presos no Brasil é um desafio que só pode ser enfrentado com estudo e trabalho.

Constou no acórdão que gerou o TEMA 1.190 que:

“o direito ao trabalho é um direito social (art. 6º da CF/1988) que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III e IV, da CF/1988), sendo meio para se construir uma sociedade livre, justa e solidária; para se garantir o desenvolvimento nacional; bem como para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I, II, e III, da CF/1988); não se confundindo com os direitos políticos...

Não é razoável que o Poder Público, principal responsável pela reintegração do condenado ao meio social, obstaculize tal finalidade, impossibilitando a posse em cargo público de candidato que, a despeito de toda a dificuldade enfrentada pelo encarceramento, foi aprovado em diversos concursos, por mérito próprio.”

Exigências rigorosas

As carreiras de segurança pública são atividades típica de Estado, com autoridade sobre a vida e a liberdade de toda a coletividade, em razão do que é imperativo que os ocupantes desses cargos estejam submetidos a critérios mais severos de controle.

A lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determinados cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas. Esse é o caso, por exemplo, das carreiras da magistratura, das funções essenciais à justiça e da segurança pública (CRFB/1988, art. 144), sendo vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade.

Portanto, a exigência de idoneidade moral para o ingresso em carreiras de segurança pública é plenamente legítima e coerente com o texto constitucional. Isso justificaria a exclusão da candidata em decorrência da ambiência criminosa.

Intranscendência da pena

A doutrina e a jurisprudência se dividem em relação à possibilidade de exclusão de candidato em decorrência da existência de um parente preso ou condenado.

Aqui entra em discussão a aplicação do princípio da intranscendência da pena (ou princípio da pessoalidade). O fundamento vem do artigo 5º, XLV, da Constituição Federal, pelo qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

investigação social

Portanto, muitos operadores do direito veem a exclusão de candidato a cargo público pelo simples fato da condenação de um parente ou cônjuge na seara criminal como uma afronta ao princípio da intranscendência da pena. Nesse sentido, o candidato estaria sendo punido por uma condenação criminal de outra pessoa.

No caso ora analisado, importante pontuar que o cargo pretendido pela advogada é o de delegado de polícia, que exige, de fato, uma avaliação mais rigorosa na fase de investigação socia. Isso porque, dentre as atribuições do cargo, estão a de presidir inquéritos policiais, chefiar investigações criminais, comandar operações policiais, efetuar prisões.

Podemos concluir que, em regra, não se admite a exclusão de candidato em concurso público pelo simples fato de ter um parente ou cônjuge preso ou condenado criminalmente, sob pena de afronta ao princípio da intranscendência da pena, salvo quando se tratar de cargos específicos, como os da área de segurança pública (policiais, delegados, investigador de polícia, guarda municipal), que exigem uma avaliação mais rigorosa do candidato.   

Ótimo tema para provas de direito constitucional, direito administrativo e direito penal. Importante acompanhar o desenrolar desse caso.


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