Eduardo Bolsonaro se torna réu no STF: quando a articulação política se transforma em crime de coação no curso do processo
Foto: Cristiano Mariz/ Agência O Globo

Eduardo Bolsonaro se torna réu no STF: quando a articulação política se transforma em crime de coação no curso do processo

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução: a fronteira entre manifestação política e crime processual

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, receber a denúncia contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) pelo crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal). A decisão, que tornou o parlamentar réu perante a Corte, traz à tona um debate jurídico fundamental para concursos públicos: até onde vai a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar, e quando essas prerrogativas cedem espaço à tipificação penal?

O caso envolve a articulação do deputado junto ao governo dos Estados Unidos para obtenção de sanções contra autoridades brasileiras – incluindo o chamado “tarifaço”, suspensão de vistos e aplicação da Lei Magnitsky –, com o objetivo de criar um ambiente de instabilidade institucional que favorecesse seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, no julgamento da Ação Penal 2668, que apura tentativa de golpe de Estado.

Para candidatos a concursos das carreiras jurídicas, este caso representa uma oportunidade ímpar de compreender os elementos do tipo penal de coação processual, as hipóteses de rejeição da denúncia, os institutos despenalizadores aplicáveis e, ainda, uma peculiaridade processual: a atuação da Defensoria Pública da União na defesa de pessoa aparentemente não hipossuficiente.

O crime de coação no curso do processo: anatomia do tipo penal

O art. 344 do Código Penal estabelece:

"Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa, além da pena correspondente à violência."

Elementos constitutivos do tipo penal

1. Conduta típica: usar de violência ou grave ameaça

2. Sujeitos passivos: autoridade, parte ou qualquer pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo

3. Elemento subjetivo específico: finalidade de favorecer interesse próprio ou alheio

4. Contexto: a conduta deve ocorrer em relação a processo judicial, policial, administrativo ou arbitral

A controvérsia: articulação política ou grave ameaça?

O ponto nevrálgico do caso reside na caracterização da “grave ameaça”. Para o Ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, a grave ameaça se materializou através da articulação e efetiva obtenção de sanções do governo norte-americano, incluindo:

  • Aplicação de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros (tarifaço)
  • Suspensão de vistos de ministros do STF e outras autoridades
  • Aplicação da Lei Magnitsky contra o próprio Ministro Moraes

Segundo o relator, há “indícios relevantes de que as condutas tinham como objetivo a criação de um ambiente institucional e social de instabilidade, com aplicação de crescentes sanções a autoridades brasileiras e prejuízos econômicos ao Brasil, como modo de coagir os Ministros do STF a decidir favoravelmente ao réu Jair Bolsonaro”.

Por outro lado, a Defensoria Pública da União argumentou que as manifestações do deputado constituíram articulações políticas e exercício legítimo da liberdade de expressão, não havendo prova de que ele tivesse poder efetivo para concretizar as sanções mencionadas.

O recebimento da denúncia: juízo de admissibilidade da acusação

É crucial compreender que o recebimento da denúncia não significa condenação. Trata-se de um juízo preliminar sobre a viabilidade da acusação, no qual se verifica se estão presentes os requisitos mínimos para instauração da ação penal.

Hipóteses de rejeição da denúncia (art. 395 do CPP)

A denúncia será rejeitada quando:

I – for manifestamente inepta: quando não preencher os requisitos do art. 41 do CPP (exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, qualificação do acusado, classificação do crime e rol de testemunhas)

II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal: como a incompetência absoluta do juízo ou ausência de condição de procedibilidade

III – faltar justa causa para o exercício da ação penal: quando não houver elementos mínimos de prova da materialidade e indícios de autoria

No caso concreto, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que a PGR descreveu satisfatoriamente os fatos típicos e ilícitos, demonstrando a justa causa necessária para a instauração da ação penal, com provas da ocorrência do crime e indícios razoáveis de autoria.

Institutos despenalizadores aplicáveis

Um aspecto relevante para concursos é a análise dos institutos despenalizadores cabíveis ao crime do art. 344 do CP:

Acordo de Não Persecução Penal (ANPP)

Previsto no art. 28-A do CPP, o ANPP pode ser proposto quando o investigado confessar formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos.

⚠️ Questão problemática: o art. 344 tipifica crime praticado mediante “violência ou grave ameaça”, logo, o ANPP é incabível porque o tipo penal pressupõe violência ou grave ameaça.

Suspensão condicional do processo

Prevista no art. 89 da Lei 9.099/95, aplica-se aos crimes com pena mínima igual ou inferior a um ano. O art. 344 do CP prevê pena de reclusão de 1 a 4 anos, portanto, em tese, é cabível a suspensão condicional do processo, desde que preenchidos os demais requisitos (o acusado não estar sendo processado ou condenado por outro crime, e presentes os requisitos do art. 77 do CP).

A peculiaridade da defesa pela DPU: quando o não hipossuficiente precisa de Defensor Público

coação

Um dos pontos mais intrigantes do caso é a atuação da Defensoria Pública da União na defesa de Eduardo Bolsonaro, reconhecidamente pessoa sem hipossuficiência financeira.

A Constituição Federal estabelece:

Art. 5º, LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos
Art. 134 – A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados

Já o Código de Processo Penal dispõe:

Art. 261 – Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor
Art. 264, §3º (incluído pela Lei 14.511/2023) – Em caso de abandono do processo pelo defensor, o acusado será intimado para constituir novo defensor, se assim o quiser, e, na hipótese de não ser localizado, deverá ser nomeado defensor público ou advogado dativo para a sua defesa.

A solução jurídica

No caso concreto, o Ministro Alexandre de Moraes determinou a notificação do deputado, mas ele não constituiu advogado nem apresentou defesa. Como Eduardo Bolsonaro está nos Estados Unidos e não foi possível estabelecer contato efetivo, a DPU foi nomeada para garantir o direito constitucional à ampla defesa.

A situação ilustra o princípio de que o direito à defesa técnica é absoluto, independentemente da condição financeira do acusado, quando há impossibilidade de constituição de advogado particular. Trata-se de garantia do devido processo legal, não de benefício assistencial.

⚠️ Importante: o art. 263, parágrafo único do CPP estabelece que “o acusado que não for pobre será obrigado a pagar os honorários do defensor dativo, arbitrados pelo juiz”. Embora o dispositivo mencione apenas “defensor dativo”, a jurisprudência aplica o mesmo raciocínio ao defensor público quando constatada a capacidade financeira do assistido.

Questão simulada

(Banca Estilo CESPE/CEBRASPE) João, empresário de renome nacional, foi denunciado pelo Ministério Público Federal por crimes contra a ordem tributária. Durante as investigações, João procurou um jornalista conhecido e afirmou publicamente que, caso fosse condenado, utilizaria seus contatos internacionais para obter sanções econômicas de governos estrangeiros contra as autoridades responsáveis pela sua condenação, visando pressioná-las a absolvê-lo. Posteriormente, João efetivamente articulou junto a empresários estrangeiros a suspensão de investimentos no Brasil caso sua condenação se confirmasse. Considerando a situação hipotética apresentada e a legislação penal brasileira, assinale a opção correta.

A) A conduta de João configura crime de coação no curso do processo, ainda que não haja violência física, pois a grave ameaça de prejuízos econômicos com finalidade de favorecer interesse próprio caracteriza o tipo penal do art. 344 do Código Penal.

B) A manifestação de João está protegida pela liberdade de expressão, não constituindo crime, pois não houve emprego de violência física contra as autoridades responsáveis pelo processo.

C) O crime de coação no curso do processo somente se configura quando há emprego de violência física ou ameaça direta de violência contra a integridade física das autoridades judiciais.

D) João não pode ser processado criminalmente porque suas declarações foram feitas fora do território nacional, aplicando-se o princípio da territorialidade previsto no art. 5º do Código Penal.

E) A conduta de João poderia configurar crime de coação no curso do processo, mas não cabe suspensão condicional do processo por se tratar de crime cometido mediante grave ameaça.

GABARITO: A

Explicação: A alternativa A está correta porque o crime de coação no curso do processo (art. 344 do CP) não exige violência física, bastando a grave ameaça contra autoridade, parte ou pessoa envolvida no processo, com a finalidade de favorecer interesse próprio ou alheio. A articulação de prejuízos econômicos e sanções internacionais configura grave ameaça apta a intimidar as autoridades responsáveis pelo julgamento.

A alternativa B está incorreta porque a liberdade de expressão não é absoluta e não protege condutas que configurem crimes, especialmente quando há finalidade específica de coagir autoridades judiciais.

A alternativa C está incorreta porque o tipo penal admite tanto violência quanto grave ameaça, não sendo necessária violência física para configurar a coação. A ameaça de prejuízos graves (econômicos, institucionais, sociais) é suficiente.

A alternativa D está incorreta porque o art. 7º do CP estabelece hipóteses de extraterritorialidade, aplicando-se a lei brasileira aos crimes praticados no estrangeiro quando atentem contra a administração pública. Além disso, no caso concreto, os efeitos da conduta (coação) ocorrem no Brasil.

A alternativa E está incorreta porque, embora o crime seja praticado mediante grave ameaça, a pena mínima do art. 344 é de 1 ano, permitindo, em tese, a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), desde que preenchidos os demais requisitos legais.

Conclusão estratégica: pontos-chave para memorização

Para concursos públicos, fixe os seguintes pontos sobre este tema:

1. O crime de coação no curso do processo (art. 344 do CP) exige: a) conduta (violência ou grave ameaça), b) contexto (processo judicial, policial, administrativo ou arbitral), c) vítima específica (autoridade, parte ou pessoa envolvida), d) elemento subjetivo específico (favorecer interesse próprio ou alheio)

2. A grave ameaça não se restringe a violência física, abrangendo ameaças de prejuízos graves que possam intimidar a vítima

3. O recebimento da denúncia é juízo de admissibilidade, verificando-se apenas a presença de justa causa (materialidade + indícios de autoria), e não a condenação

4. Em tese, cabem ANPP e suspensão condicional do processo ao crime do art. 344, embora haja discussão sobre o ANPP em razão da menção à “violência ou grave ameaça” no tipo penal

5. A defesa técnica é direito absoluto, podendo a Defensoria Pública atuar mesmo para não hipossuficientes quando houver impossibilidade de constituição de advogado, garantindo-se o devido processo legal

6. A liberdade de expressão e a imunidade parlamentar não são absolutas, cedendo quando há prática de conduta criminosa com finalidade específica de coagir o Poder Judiciário


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