Prof. Gustavo Cordeiro
O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento de significativa importância para o direito internacional privado brasileiro ao decidir que dívidas de jogo contraídas em países onde a prática é lícita podem ser cobradas no Brasil. A decisão no REsp 1.891.844-SP, relatada pelo Ministro João Otávio de Noronha em maio de 2025, representa evolução jurisprudencial que harmoniza princípios aparentemente conflitantes do ordenamento jurídico nacional.
O caso paradigmático: quando Las Vegas encontra São Paulo
Roberto, empresário brasileiro, vivenciou situação que poderia ser roteiro de filme, mas tornou-se precedente jurídico. Durante convenção de negócios em Las Vegas, frequentou o cassino Wynn Las Vegas, onde, após perder quantia considerável no poker e blackjack, solicitou e obteve empréstimo de um milhão de dólares mediante assinatura de nota promissória. A sorte não mudou, Roberto perdeu todo o valor emprestado e, ao retornar ao Brasil, não honrou o compromisso.
A Wynn Las Vegas LLC não hesitou em buscar a satisfação de seu crédito, propondo execução perante a Justiça estadual paulista, munida de nota promissória devidamente traduzida e registrada. Roberto opôs embargos à execução invocando o art. 814 do Código Civil brasileiro, dispositivo que aparentemente vedaria a cobrança ao estabelecer que “as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento.”
O conflito normativo estava estabelecido: de um lado, a legislação brasileira tradicionalmente hostil às dívidas de jogo; de outro, o princípio de direito internacional privado que determina a aplicação da lei do local onde a obrigação foi constituída. A solução demandaria sofisticada interpretação sistemática do ordenamento jurídico.
O aparente conflito normativo: entre a tradição e a modernidade
O artigo 814 do Código Civil brasileiro reflete tradição jurídica secular de considerar as dívidas de jogo como obrigações naturais, desprovidas de exigibilidade judicial. Essa orientação fundamenta-se em concepção moralista que vê no jogo atividade potencialmente danosa à ordem social e econômica, merecedora de desestímulo pelo direito.
As obrigações naturais ocupam posição peculiar no sistema jurídico. São obrigações imperfeitas, reconhecidas pelo ordenamento mas desprovidas de ação para exigi-las judicialmente. O devedor não pode ser compelido a pagar, mas se pagar voluntariamente, não pode repetir o pagamento alegando que não havia obrigação. É exatamente essa a natureza que o art. 814 atribui às dívidas de jogo no direito brasileiro: existem no plano moral e social, mas carecem de tutela jurisdicional.
A ratio legis dessa disciplina remonta ao direito romano, que já distinguia entre obligationes civiles e obligationes naturales. A dívida de jogo seria débito de honra, cuja satisfação dependeria exclusivamente da consciência moral do devedor, não da coerção estatal. Essa concepção permeou os ordenamentos de tradição romanística, incluindo o brasileiro.
Contudo, o parágrafo segundo do mesmo dispositivo introduz importante exceção: "O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos." Essa ressalva abre caminho interpretativo fundamental para compreender a decisão do STJ, pois sugere que nem toda dívida de jogo é obrigação natural - apenas aquelas derivadas de jogos não legalmente permitidos.
Paralelamente, o artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece regra de conexão clara para obrigações internacionais: "Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem." Trata-se da consagração do princípio lex loci celebrationis, amplamente aceito no direito internacional privado.
A tensão entre esses dispositivos não é meramente acadêmica. Representa o embate entre concepções jurídicas que precisam ser harmonizadas em um mundo globalizado, onde brasileiros frequentemente se deslocam para jurisdições com regulamentações diversas sobre atividades lúdicas.
A transmutação da obrigação: de natural a civil
O cerne da questão jurídica reside na natureza da obrigação quando constituída em jurisdição estrangeira. No Brasil, a dívida de jogo seria tipicamente obrigação natural – existente mas inexigível. Em Nevada, onde o jogo é atividade econômica regulamentada e protegida pelo Estado, a mesma dívida constitui obrigação civil plena, dotada de todas as garantias jurídicas.
O STJ, ao aplicar o artigo 9º da LINDB, reconheceu que a lei do local de sua constituição determina a natureza da obrigação. Não se trata de simples dívida de jogo que depois se pretende cobrar no Brasil, mas de obrigação validamente constituída segundo o ordenamento de Nevada, que ingressa no sistema jurídico brasileiro já com natureza de obrigação civil.
Essa interpretação revela sofisticação conceitual: a obrigação não “nasce” natural e depois se torna civil. Ela nasce como obrigação civil plena no ordenamento estrangeiro e assim deve ser reconhecida no Brasil, ressalvadas apenas as hipóteses de ofensa à ordem pública. O que o STJ decidiu foi que não há tal ofensa quando o jogo é legal no local onde praticado.
A questão da ordem pública: um conceito em evolução
Roberto argumentou que aceitar a cobrança violaria a ordem pública brasileira, invocando o art. 17 da LINDB, segundo o qual “as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”
O conceito de ordem pública funciona como válvula de escape no direito internacional privado, permitindo ao Estado receptor recusar aplicação de norma estrangeira que conflite com princípios fundamentais de seu ordenamento. Tradicionalmente, poder-se-ia argumentar que a cobrança de dívida de jogo ofenderia a ordem pública brasileira, dada a histórica repulsa do direito pátrio a tais obrigações.
Todavia, o STJ tem reconhecido que ordem pública não é conceito estático, mas dinâmico, que evolui conforme as transformações sociais e jurídicas. A proliferação de modalidades de jogos e apostas legalmente autorizadas no Brasil – loterias federais, apostas esportivas, bingos em determinados períodos – demonstra flexibilização da rigidez histórica quanto ao tema.
Ademais, a própria exceção contida no §2º do art. 814 do Código Civil indica que o ordenamento brasileiro não repudia absolutamente as dívidas de jogo, mas apenas aquelas derivadas de jogos não permitidos. Quando o jogo é legal no local onde praticado, estabelece-se ponte normativa que permite o reconhecimento da obrigação.
O princípio do enriquecimento sem causa como fundamento
Aspecto crucial da decisão do STJ foi a invocação do princípio que veda o enriquecimento sem causa, positivado no artigo 884 do Código Civil. Roberto efetivamente recebeu o crédito do cassino, utilizou os valores no jogo e, caso a cobrança fosse vedada, reteria vantagem patrimonial indevida.

Interessante observar que mesmo na teoria das obrigações naturais, o pagamento voluntário é irrepetível – ou seja, quem paga dívida de jogo não pode pedir devolução. O artigo 814 é expresso: “não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou.” Isso demonstra que o ordenamento reconhece substrato ético nessas obrigações, ainda que lhes negue coercibilidade.
No caso em análise, Roberto recebeu voluntariamente o crédito do cassino. Ainda que se argumentasse tratar-se de obrigação natural sob a ótica brasileira, o princípio da irrepetibilidade do pagamento voluntário, combinado com a vedação ao enriquecimento sem causa, militaria contra permitir que Roberto retivesse os valores sem pagamento.
O enriquecimento sem causa constitui princípio geral do direito, reconhecido universalmente como fonte de obrigações. Sua aplicação ao caso concreto revela sofisticação argumentativa: ainda que se questione a natureza da dívida de jogo, é inegável que houve deslocamento patrimonial do cassino para o jogador, criando desequilíbrio que o direito não pode chancelar.
A boa-fé objetiva também fundamenta a decisão. Roberto voluntariamente se dirigiu ao cassino, solicitou o empréstimo, assinou a nota promissória e utilizou os valores. Invocar posteriormente a legislação brasileira para se eximir do pagamento configuraria comportamento contraditório, vedado pelo princípio do venire contra factum proprium.
A jurisprudência consolidada do STJ
A decisão no REsp 1.891.844-SP não surgiu no vácuo jurisprudencial. O STJ já havia enfrentado a questão em precedente anterior, o REsp 1.628.974-SP, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva em 2017, estabelecendo que "a cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro em cassino que funciona legalmente no exterior é juridicamente possível e não ofende a ordem pública, os bons costumes e a soberania nacional."
A reiteração do entendimento demonstra consolidação jurisprudencial sobre o tema. O STJ tem compreendido que a globalização e a mobilidade internacional exigem abordagem mais flexível das normas de direito internacional privado, respeitando-se os ordenamentos jurídicos estrangeiros quando não houver incompatibilidade absoluta com princípios fundamentais brasileiros.
Importante observar que a jurisprudência não chancela qualquer dívida de jogo contraída no exterior. É essencial que o jogo seja legal no local onde praticado e que a obrigação tenha sido constituída regularmente segundo a legislação local. Dívidas contraídas em jogos clandestinos ou em jurisdições onde se proíbe o jogo continuariam inexigíveis no Brasil.
Requisitos para a exigibilidade da dívida de jogo internacional
A análise sistemática da jurisprudência do STJ permite identificar requisitos cumulativos para que dívida de jogo contraída no exterior seja exigível no Brasil. Primeiro, o jogo deve ser legalmente permitido e regulamentado na jurisdição onde foi praticado. Não basta tolerância fática; é necessária permissão legal expressa.
Segundo, a obrigação deve ter sido constituída conforme as formalidades da lei local. No caso de Las Vegas, isso significa observância das regulamentações de Nevada sobre concessão de crédito em cassinos, documentação adequada e procedimentos de controle estabelecidos pela Gaming Control Board.
Terceiro, deve haver prova documental idônea da obrigação. A nota promissória apresentada pela Wynn Las Vegas, devidamente traduzida por tradutor juramentado e registrada conforme as normas brasileiras de títulos executivos extrajudiciais, atende a esse requisito.
Quarto, não pode haver vício de consentimento na formação da obrigação. Se houvesse prova de que Roberto estava incapacitado por embriaguez extrema ou sob coação ao contrair a dívida, poder-se-ia questionar a validade da obrigação mesmo sob a lei de Nevada.
Implicações práticas e cautelas necessárias
A decisão do STJ tem implicações práticas significativas para brasileiros que frequentam cassinos no exterior. A possibilidade de cobrança judicial no Brasil de dívidas contraídas em jogos legais estrangeiros impõe maior responsabilidade aos jogadores, que não podem mais contar com a proteção absoluta do art. 814 do Código Civil.
Cassinos internacionais, por sua vez, ganham segurança jurídica para conceder crédito a jogadores brasileiros, sabendo que poderão buscar a satisfação de seus créditos no Brasil caso necessário. Isso pode levar tanto a maior liberalidade na concessão de crédito quanto a desenvolvimento de mecanismos de verificação da capacidade financeira dos jogadores.
Advogados que atuam na área devem orientar seus clientes sobre os riscos de contrair dívidas de jogo no exterior, especialmente considerando a volatilidade cambial que pode tornar dívida em dólares significativamente mais onerosa quando da cobrança no Brasil. A possibilidade de execução judicial no país de domicílio do devedor elimina a proteção prática que a distância geográfica anteriormente proporcionava.
Como o tema pode surgir em concursos públicos
A matéria oferece rico material para questões de concurso, especialmente nas áreas de direito internacional privado e direito civil. Uma questão objetiva típica poderia apresentar-se assim:
Brasileiro contrai dívida de jogo em cassino legalmente estabelecido em Las Vegas e não efetua o pagamento. O cassino propõe execução no Brasil. Segundo o entendimento do STJ, a cobrança:
a) É vedada pelo artigo 814 do Código Civil, que proíbe cobrança de dívidas de jogo
b) É possível, aplicando-se a lei do local de constituição da obrigação
c) Depende de homologação de sentença estrangeira
d) Só é possível se houver tratado internacional sobre o tema
A resposta correta seria a alternativa B, exigindo do candidato conhecimento da aplicação do artigo 9º da LINDB e da jurisprudência do STJ.
Conclusão: entre a tradição e a modernidade do Direito
A decisão do STJ no REsp 1.891.844-SP representa mais que solução para caso individual. Simboliza a adaptação do direito brasileiro às realidades de um mundo globalizado, onde fronteiras físicas não impedem a circulação de pessoas e a constituição de obrigações internacionais.
A aparente contradição entre a tradicional hostilidade do direito brasileiro às dívidas de jogo e o reconhecimento de obrigações constituídas no exterior resolve-se através de interpretação sistemática que privilegia a segurança jurídica internacional, a boa-fé e a vedação ao enriquecimento sem causa.
Particularmente significativa é a forma como o STJ lidou com o conceito de obrigação natural. Ao invés de transplantar mecanicamente a qualificação brasileira para obrigações constituídas no exterior, a Corte reconheceu que a natureza da obrigação deve ser determinada pela lei de sua constituição. Uma obrigação que nasce como civil plena em Nevada não se transmuta em natural pelo simples fato de seu credor buscar satisfação no Brasil. Essa abordagem preserva a coerência do sistema de direito internacional privado enquanto respeita as peculiaridades de cada ordenamento.
Para o operador do direito, especialmente aquele em preparação para concursos públicos, o precedente oferece exemplo privilegiado de como princípios aparentemente conflitantes podem se harmonizar através de interpretação sofisticada que considera a evolução social e a necessidade de integração jurídica internacional.
A mensagem final é clara: o direito internacional privado brasileiro não se fecha em si mesmo, mas dialoga com ordenamentos estrangeiros, respeitando suas normas quando compatíveis com uma concepção moderna e dinâmica de ordem pública. Roberto aprendeu essa lição de forma custosa, mas seu caso serve de alerta e orientação para futuros jogadores brasileiros que se aventurarem nos cassinos mundo afora. A proteção das obrigações naturais existe para dívidas constituídas no Brasil – atravessar fronteiras em busca do jogo significa submeter-se integralmente às consequências jurídicas do ordenamento estrangeiro.
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