A internet, desde sua concepção, sempre desafiou os conceitos tradicionais de territorialidade e jurisdição.
O debate sobre a extensão territorial das decisões judiciais brasileiras que determinam a remoção de conteúdo na internet tem suas raízes em casos emblemáticos. Um dos processos envolveu a apresentadora Xuxa Meneghel e o Google (REsp 1.316.921), em 2012, que, embora tratasse de questões diferentes, já sinalizava a complexidade da moderação de conteúdo na internet.
Com o crescimento exponencial das plataformas digitais e a multiplicação de casos envolvendo fake news, difamação e outros ilícitos online, o Judiciário brasileiro passou a enfrentar um dilema fundamental: como garantir a efetividade de suas decisões em um ambiente intrinsecamente global?
Antes do Marco Civil
Antes da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), o Brasil carecia de legislação específica para regular as relações no ambiente digital. As decisões judiciais baseavam-se principalmente no: 1) Código Civil; 2) Código de Defesa do Consumidor; e assim, a 3) jurisprudência construída caso a caso.
Com o Marco Civil da Internet, temos hoje princípios fundamentais sobre o uso da internet, direitos e garantias dos usuários e sobre a responsabilidade dos provedores. Por exemplo, o artigo 11 da Lei 12.965/2014 é peça fundamental nessa discussão ao estabelecer:
"Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira."
O REsp 2.147.711
Nesse sentido, um litígio teve origem quando uma importante empresa do setor alimentício tornou-se alvo de um vídeo publicado no YouTube. A mídia apresentava supostas imagens de infestação de ratos em seus produtos.
Assim, o conteúdo, comprovadamente falso, foi produzido e divulgado de forma maliciosa. Havia apresentação de gravações manipuladas das instalações supostamente pertencentes à empresa, com imagens de roedores junto aos produtos alimentícios e uma narrativa que sugeria negligência nos processos de produção.
Narra o autor que o potencial lesivo do conteúdo mostrou-se particularmente grave, não apenas pelo impacto imediato na reputação da marca, mas principalmente pelo efeito multiplicador característico das redes sociais.
Alegou que a viralização do conteúdo falso gerou uma rápida disseminação das alegações infundadas. Isso causou um significativo dano à imagem da empresa e colocando em xeque a confiança dos consumidores em seus produtos.
Diante dessa situação, a empresa ajuizou ação com pedido de tutela de urgência, demonstrando de forma inequívoca a falsidade do conteúdo e seu potencial danoso.
O juízo de primeira instância, reconhecendo a gravidade da situação, concedeu a liminar determinando a imediata remoção do vídeo somente no Brasil. Inclusive, posteriormente, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a decisão, e foi além: ampliou o escopo da remoção para alcance global, fundamentando sua decisão na própria natureza transnacional da internet.
Por outro lado, o Google, empresa controladora do YouTube, adotou uma postura que viria a ser o cerne da controvérsia: procedeu ao bloqueio do acesso ao vídeo apenas em território brasileiro, mantendo o conteúdo acessível em outros países.
A empresa justificou sua conduta alegando respeito à soberania de outras nações. Ela apontou, ainda, limitações técnicas e operacionais, além de invocar precedentes internacionais e princípios de direito internacional.
Decisão
Apenas para você se lembrar, o Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha determinado a suspensão do Twitter “X” por descumprir normas brasileiras, entretanto, a suspensão limitou-se ao território brasileiro, tanto que também houve a fixação de multa para quem acessasse o vídeo por VPN.
A Primeira Turma do STF confirmou decisão do ministro Alexandre de Moraes que suspendeu a plataforma X, antigo Twitter, em todo o território nacional. Por unanimidade, o colegiado referendou a decisão na sessão extraordinária virtual realizada nesta segunda-feira (2).
O ministro tomou a decisão na sexta (30/8), na Petição (PET) 12404, após o STF realizar todos os esforços possíveis para que o X cumprisse ordens judiciais e pagasse as multas impostas. Em seu voto na sessão virtual, o relator reiterou os fundamentos da sua medida. Ele esclareceu que a multa diária de R$ 50 mil se aplica a pessoas e empresas que tentarem fraudar a decisão judicial, utilizando subterfúgios tecnológicos (como o uso de VPN, entre outros) para continuar a usar e a se comunicar pelo X.
Votos dos ministros
Ao acompanhar o relator, o ministro Flávio Dino ressaltou que o Judiciário garante acesso a recursos contra decisões, mas não permite obstrução ou escolha de quais ordens se cumprirão. “O poder econômico e o tamanho da conta bancária não fazem nascer uma esdrúxula imunidade de jurisdição”, frisou.
A ministra Cármen Lúcia destacou, em seu voto, que o Poder Judiciário é um sistema de órgãos decorrentes da soberania nacional, e, portanto, sua decisão tem de ser “acatada, respeitada e legitimada”. Ela reiterou que ordens judiciais devem ser questionadas na forma da legislação processual, “não segundo os humores e voluntarismos de quem quer que seja, nacional ou estrangeiro”.
Para o ministro Cristiano Zanin, o descumprimento reiterado das decisões do STF é grave. “Ninguém pode pretender desenvolver suas atividades no Brasil sem observar as leis e a Constituição Federal”, disse.
O ministro Luiz Fux também acompanhou o relator. No entanto, fez a ressalva de que a decisão não atinja pessoas ou empresas indiscriminadas e sem participação no processo, a não ser as que utilizarem a plataforma para fraudar a decisão com manifestações de racismo, fascismo, nazismo, que obstruam investigações criminais ou incitem aos crimes em geral.
STF confirma decisão que suspendeu o X, antigo Twitter, em todo o país
Nessa linha, o pensamento do Google era razoável em dizer que estava seguindo uma orientação do STF que pensava ser majoritária: as decisões dos juízes brasileiros só podem impedir que usuários no Brasil sejam afetados por suas decisões.
Certo?!
Mas o que decidiu o STJ?
Do entendimento majoritário: a extensão global da jurisdição brasileira
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, sedimentou entendimento inovador acerca dos limites territoriais da jurisdição brasileira no âmbito virtual. A Turma consolidou interpretação extensiva do Marco Civil da Internet.
In casu, a eminente relatora, ao perscrutar os fundamentos do art. 11 da Lei 12.965/2014, desenvolveu exegese que privilegia a efetividade da prestação jurisdicional em detrimento de formalismos territoriais anacrônicos.
Com efeito, sustentou a Min. Relatora que o simples fato de haver coleta de dados em território pátrio já seria suficiente para atrair a jurisdição brasileira em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos extraterritoriais das decisões judiciais.
Destarte, ao examinar a natureza intrínseca dos serviços prestados por plataformas digitais, Nancy pontuou que estas operam em escala global integrada. Assim, seria desarrazoada qualquer tentativa de fragmentação territorial de seus efeitos. Em verdade, tal compreensão coaduna-se com a própria essência do ambiente virtual, que transcende, per se, as tradicionais fronteiras geográficas.
Nessa esteira, merece especial destaque o argumento referente à efetividade da tutela jurisdicional. Conforme bem pontuado no voto condutor, restringir territorialmente a remoção de conteúdo ilícito equivaleria a negar eficácia à própria prestação jurisdicional, porquanto o material permaneceria acessível mediante simples utilização de mecanismos de mascaramento de localização ou acesso a partir de jurisdições estrangeiras.
Além disso, vale destacar que o próprio entendimento do STJ é que
“A plataforma de vídeos Youtube, provedor de aplicação de internet de propriedade da Google, pode remover, suspender ou tornar indisponíveis conteúdos de usuário que viole seus termos de uso aplicáveis, especialmente no contexto da pandemia da Covid19. Essa moderação de conteúdo encontra amparo no ordenamento jurídico, não representando violação à liberdade de expressão nem censura. Os termos de uso dos provedores de aplicação, que autorizam a moderação de conteúdo, devem estar subordinados à Constituição, às leis e a toda regulamentação aplicável direta ou indiretamente ao ecossistema da internet, sob pena de responsabilização da plataforma.” (STJ. 3ª Turma. REsp 2.139.749-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 27/8/2024 (Informativo 823).
Da tese vencida
Em que pese a robustez da tese vencedora, impende destacar os não menos relevantes argumentos trazidos à baila pelos Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze, que, data maxima venia, apresentaram preocupações pertinentes acerca dos limites constitucionais da jurisdição nacional.
Ex vi do artigo 4º da Constituição Federal, os Ministros sustentaram que a extensão irrestrita dos efeitos das decisões judiciais brasileiras poderia configurar violação à autodeterminação dos povos, princípio basilar das relações internacionais.
Outrossim, no que tange aos aspectos práticos da questão, a divergência suscitou relevante debate acerca dos mecanismos de efetivação das decisões judiciais em território alienígena. Com propriedade, questionou-se: quais instrumentos coercitivos estariam à disposição do Judiciário brasileiro para garantir o cumprimento de suas determinações além-fronteiras?
Ademais, não se pode olvidar o risco concreto de decisões conflitantes entre diferentes jurisdições, mormente considerando a ausência de tratados internacionais específicos sobre a matéria.
Seria possível considerar um mesmo conteúdo virtual como ilícito em determinada jurisdição e perfeitamente legal em outra, gerando potencial conflito normativo internacional de difícil solução.
Assim, em nossa opinião, o tema suscita fortes debates, que certamente o STF decidirá definitivamente, já que a votação foi em 3 a 2. Isso demanda que você saiba os fundamentos relevantes das duas correntes.
Como o tema já foi cobrado em provas
FGV - 2024 - AL-PR - Procurador Acerca da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) e a proteção dos direitos da personalidade, assinale a afirmativa incorreta. Alternativas A) A desindexação de conteúdos não se confunde com o direito ao esquecimento, pois não implica a exclusão de resultados, mas tão somente a desvinculação de determinados conteúdos obtidos por meio dos provedores de busca. B) Para o Marco Civil da Internet, a exposição pornográfica sem consentimento não se limita a nudez total, nem a atos sexuais que somente envolvam conjunção carnal, mas a conduta que possa gerar dano à personalidade da vítima. C) Na exposição pornográfica não consentida, o fato de o rosto da vítima não estar evidenciado nas fotos de maneira flagrante é irrelevante para a configuração dos danos morais. D) O direito ao esquecimento pode ser compreendido como o direito que uma pessoa natural possui de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos E) A tese do direito ao esquecimento, entendido como a possiblidade de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais, vem sendo confirmada nas relações pelos tribunais superiores no país. Gabarito: E
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