* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O Judiciário brasileiro tem caminhado cada vez mais depressa para absorver as mudanças sociais decorrentes do avanço da tecnologia, da utilização da inteligência artificial, da automação do sistema de justiça e da democratização dos meios de comunicação, principalmente com o advento das redes sociais.
Um exemplo claro é o reconhecimento, pela justiça, da união estável virtual.
Pois é. Não bastou o reconhecimento da união estável tradicional, o que já foi um grande avanço para assegurar os direitos daqueles que, embora não tenham se casado, mantém um relacionamento público, contínuo e duradouro, com intuito de constituir família.
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) já conferia certa proteção a essa situação fática relevante na sociedade brasileira. Exemplo disso são as súmulas 380 e 382:
- Súmula 380 (1964): Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
- Súmula 382 (1964): A vida em comum sob o mesmo teto, “more uxorio”, não é indispensável à caracterização do concubinato.
Reconhecimento da entidade familiar
A Constituição Federal de 88 consolida de vez essa proteção, ao reconhecer, em seu art. 226, §3º, a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A Lei nº 9.278/96 vem regulamentar o art. 226, §3º, da CF, reconhecendo como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Referida norma trouxe, como direitos e deveres iguais dos conviventes:
I - respeito e consideração mútuos; II - assistência moral e material recíproca; III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns.
A lei ainda previu que toda a matéria relativa à união estável é de competência do juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça.
O código civil (CC) de 2002 também trata da matéria, em seus artigos 1.723 a 1.727, ressaltando que as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Nos termos do CC, aplica-se às relações patrimoniais da união estável, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito entre os companheiros.
Além do mais, o código civil traz o conceito de concubinato:
Podemos, de forma resumida, elencar 3 requisitos necessários para a configuração da união estável:
1º) Convivência pública, contínua e duradoura;
2º) Intuito de constituir família (intuitu familiae); e
3º) Comprometimento em ficar juntos por tempo indeterminado.
Relacionamentos homoafetivos
Ocorre que, mesmo com avanços, o código civil ainda não foi capaz de assimilar as mudanças sociais relacionadas aos relacionamentos homoafetivos. Isso porque houve previsão da união estável com aplicação apenas para relacionamentos entre homem e mulher.
Esse papel de captar as mutações sociais e regular normativamente situações novas coube à doutrina e à jurisprudência.
Podemos citar, à título de exemplo, o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, ambas pela Suprema Corte, reconhecendo, por unanimidade, a união homoafetiva como entidade familiar, sujeita às mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva.
Inclusive, as decisões paradigmáticas do STF (ADPF 132 e ADI 4277) renderam o recebimento de um certificado, pela UNESCO. As decisões foram inscritas no Registro Nacional do Brasil como patrimônio documental.
Considerou-se a postura da Suprema Corte como essencial para a consolidação dos direitos alcançados no país e o compromisso do Estado brasileiro de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outras formas de discriminação, como prevê o inciso IV do artigo 3º da Constituição da República.
Relacionamento por meios virtuais
Agora, a jurisprudência dá mais um passo à frente, ao reconhecer a união estável virtual.
Mas o que vem a ser essa modalidade de união estável virtual?
União estável virtual: relacionamento entre duas pessoas, desenvolvido por meios virtuais, como redes sociais, aplicativos de mensagens e videoconferências, que se expressa na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Importante ressaltar que os requisitos da união estável virtual são os mesmos da união estável convencional: união pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família.
E será imprescindível, para sua comprovação, um conjunto probatório farto, composto de trocas de mensagens, vídeos, fotos, documentos, prints.
Da mesma forma que na união tradicional, os direitos e deveres dos companheiros virtuais são os mesmos voltados à partilha de bens, à pensão alimentícia, ao direito de herança e a outros direitos previstos no Codex Civil.
E há uma justificativa plausível para o reconhecimento da união virtual, haja vista que ela pode gerar os mesmos efeitos emocionais e psicológicos de um relacionamento tradicional, o que atrai a aplicação do instituto.
O caso emblemático de reconhecimento de união estável virtual se deu pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2022.
Na ocasião, dois homens que se conheceram pela internet e viveram juntos por cerca de dois anos tiveram a união estável virtual reconhecida. Eles conseguiram provar a união virtual por meio de trocas de mensagens, fotos e vídeos, além de depoimentos de testemunhas.
Mas, de fato, o tema ainda não é unanimidade nem na doutrina e nem na jurisprudência, havendo entendimentos conflitantes acerca da possibilidade ou não do reconhecimento da união estável virtual.
A tendencia é que, com o avanço da tecnologia, o tema se torne cada vez mais comum, até conseguir derrubar as resistências existentes em parcela dos operadores do direito que se opõe à novidade.
Contrato de namoro
Para finalizar, importante não confundir união estável com contrato de namoro. São institutos diferentes.
O Brasil tem experimentado, nos últimos anos, um aumento significativo na adoção do contrato de namoro, principalmente depois da revelação de sua utilização pelo casal Endrick, jogador da seleção brasileiro, e sua namorada, a influenciadora Gabriely Miranda.
O contrato de namoro tem servido, principalmente, para formalizar que a relação afetiva entre os namorados não tem por objetivo constituir família, não tem por objetivo a união estável. Por isso que se tem utilizado esse instrumento como uma alternativa ao contrato de união estável.
Uma das grandes vantagens do contrato de namoro é que ele confere segurança jurídica àqueles que não pretendem se casar ou constituir família, apenas vivenciar uma simples relação de namoro, resguardando o patrimônio e os direitos de ambos os contratantes enamorados.
Portanto, em caso de término do namoro, não haverá os efeitos próprios do casamento ou da união estável, como pensão, herança e divisão de bens. Referido contrato desponta, aqui, como um importante instrumento de planejamento patrimonial e sucessório.
Regras e formalização
O contrato de namoro também pode ser utilizado simplesmente para estabelecer as regras da relação de namoro. Esse foi o caso do jogador Endrick e sua namorada. Eles se utilizaram do instrumento mais como uma brincadeira, através de um aplicativo de mensagens, e não envolveu advogado ou mesmo o cartório.
Nesse caso específico, as cláusulas do contrato proibiram qualquer tipo de vício, mudança drástica de comportamento e tem como uma das obrigações dizer sempre “eu te amo”.
O contrato de namoro é ideal para casais que estão começando um relacionamento, e que não pretendem assumir um compromisso mais profundo neste momento. Nada impede, porém, que no futuro possam se casar ou passar para o estado de união estável.
Após as partes decidirem assinar um contrato de namoro, e colocarem no papel as cláusulas acordadas, é hora de formalizar o instrumento. Essa formalização pode ser por meio de escritura pública perante o cartório de notas, ou um simples contrato particular com reconhecimento de firma. O contrato não precisa ser feito, necessariamente, com ajuda de um advogado, e geralmente os cartórios já possuem modelos prontos, mas que podem ser adaptados.
Perceba que, se o casal vive ou quer viver uma relação de união estável, não poderá se utilizar do contrato de namoro.
Caso esse instrumento seja utilizado para situações de união estável, o contrato poderá ser considerado nulo ante a simulação do negócio, conforme prevê o art. 167 do código civil.
Ou seja, o contrato de namoro só pode ser utilizado para situações de namoro, sem o objetivo de constituir família. Assim, não pode ser aplicado à relação de união estável, que contém regramento legal próprio (artigos 1.723 a 1.727 do código civil).
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