Transgênero nas Forças Armadas – IAC 20
Foto: Sérgio Lima/Poder360

Transgênero nas Forças Armadas – IAC 20

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Decisão do STJ

O Superior Tribunal de Justiça decidiu que não é possível afastar militares de suas funções apenas por serem transexuais ou porque estão em transição de gênero.

O entendimento ocorreu no Incidente de Assunção de Competência 20 (IAC 20), REsp 2.133.602.


Incidente de Assunção de Competência – IAC

Instrumento processual que permite ao STJ, por meio de um órgão colegiado, julgar uma questão de direito relevante com grande repercussão social, mesmo que ela não seja repetida em múltiplos processos, visando a criação de um precedente vinculante e a estabilização da jurisprudência.

O objetivo do IAC é unificar a jurisprudência e evitar decisões conflitantes sobre temas de grande importância para a sociedade, como em casos de interesse público ou relevância jurídica, econômica e política, e está previsto no art. 947 do Código de Processo Civil.

CPC

Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.

§ 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar.

§ 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse público na assunção de competência.

§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.

§ 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito da qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.

Ao contrário dos recursos repetitivos, o IAC não exige a existência de uma multiplicidade de casos idênticos. Assim, é possível instaurá-lo mesmo em um caso de direito único, desde que a questão tenha grande repercussão social.

A decisão proferida em um IAC, que é um precedente qualificado, deve ser observada de forma estrita por todos os juízes e tribunais inferiores. Além disso, é possível apresentar uma reclamação ao STJ em caso de descumprimento.

O caso

O caso teve origem em uma ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública da União, que relatou práticas discriminatórias contra servidores federais por causa de sua condição de transexuais.

Alguns servidores das Forças Armadas foram submetidos a processos de reforma ou aposentadoria compulsória exclusivamente fundamentados em sua identidade de gênero.

A sentença de primeira instância julgou a ação parcialmente procedente para condenar a União a reconhecer o nome social de pessoas transgêneros em todos os órgãos das Forças Armadas, sem aposentadorias ou reformas sob alegação da doença “transexualismo”.

Entretanto, a decisão abriu uma exceção: quando a mudança de sexo viola as regras do edital que, licitamente, restringiu a vaga para pessoas de um só gênero — no caso, o gênero masculino.

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região derrubou essa ressalva posteriormente. O entendimento foi de que há lei que permite o ingresso de mulheres nas Forças Armadas e que a retificação de gênero do militar não é um privilégio, mas o exercício de sua cidadania.

O recurso especial analisado era da União, que defendia que a alteração de gênero não poderia se equiparar a uma simples mudança administrativa. O relator foi o ministro Teodoro Silva Santos.

Análise jurídica

O objetivo do recurso especial consistiu em definir se são permitidos:

  • Uso do nome social pelos militares transgêneros nas forças armadas;
  • A reforma de militares transgêneros nas hipóteses em que a alteração de gênero viola as regras de edital de ingresso nas Forças Armadas cuja vaga é restrita para um gênero específico.

A União defendeu que o Poder Judiciário não pode substituir os critérios administrativos para seleção ou para progressão na carreira militar, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes.

Ressaltou que há carreiras compostas exclusivamente por militares do sexo masculino. A mudança para o sexo feminino inviabiliza sua permanência no quadro de pessoal, em razão da natureza específica do cargo, sem que importe em afronta ao princípio da isonomia.

Essa mudança, segundo a AGU, fere as normas do edital do concurso para admissão na carreira, quando prevista restrição sobre o sexo dos participantes.

Ademais, as Forças Armadas entendem que, por conta do art. 142, § 3º, X, da Constituição Federal, a disposição sobre o ingresso em suas carreiras só pode ser regida mediante lei própria. Logo, não se submete ao Decreto n. 8.727/2016.

CF

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

...

§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:

...

X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.

Em 2016, houve a promulgação do Decreto n. 8.727/2016. Ele dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Entendimento do STF

O STF se debruçou sobre a matéria no tema 761, e na ADI n. 4.275, na qual se firmou a tese a seguir:

1 – O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo para tanto nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.

2 – Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”.

3 – Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial.

4 – Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

Pode-se ver a punição direcionada aos transgêneros à luz da transfobia.

Transfobia

Mas o que é a transfobia?

Transfobia é o termo utilizado para se referir ao preconceito, discriminação ou hostilidade direcionada a pessoas transgênero, ou seja, aquelas cuja identidade de gênero é diferente do sexo atribuído ao nascimento.

Pode-se perceber a transfobia de diversas formas no dia a dia:

  • Exclusão social;
  • Estigma;
  • Preconceito velado;
  • Tratamento desrespeitoso;
  • Violência física e psicológica;
  • Ameaças e até mesmo a morte. 

Homofobia

Transgênero

É preciso destacar que o STF, no julgamento da ADO 26, entendeu que a homofobia é forma de racismo (Lei nº 7.716/1998) e, por consequência, a injúria homofóbica passa a ser enquadrada como injúria racista qualificada por homofobia.
Segundo a Suprema Corte, o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

O Supremo já ressaltou que os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica.

O Ministro Flávio Dino, no ARE 1513428, foi incisivo ao reforçar que qualquer tipo de discriminação atenta contra o Estado Democrático de Direito, inclusive a motivada pela orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero, revelando-se nefasta, porque retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor.

As pessoas transexuais são aquelas que têm uma identidade de gênero divergente do sexo biológico atribuído no nascimento.

Já as pessoas intersexuais nascem com características sexuais — incluindo genitais, padrões cromossômicos e glândulas, como testículos e ovários –, que não se encaixam nas noções binárias típicas de corpos masculinos ou femininos.

Ao final do IAC 20, o relator ressaltou que a condição de transgênero ou a transição de gênero não pode considerar-se, por si só, uma incapacidade ou doença para fins de serviço militar. Isso veda a instauração de processo de reforma compulsória ou licenciamento.

Teses

Em conclusão, o STJ aprovou as seguintes teses:

TESES IAC 20

No âmbito das Forças Armadas:

a) É devido o uso de nome social e a atualização dos assentamentos funcionais (registros oficiais dos servidores públicos) e de todas as comunicações e atos administrativos para refletir a identidade de gênero do militar;

b) É vedada a reforma ou qualquer forma de desligamento fundada exclusivamente no ato de o militar transgênero ter ingressado por vaga originalmente destinada a sexo ou gênero oposto;

c) A condição de transgênero ou a transição de gênero não configuram, por si sós, incapacidade ou doença para fins de serviço militar; portanto é vedada a instauração de processo de reforma compulsória ou licenciamento ex officio fundamentados exclusivamente na identidade de gênero do militar.

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