A Súmula Vinculante 24 se aplica aos crimes formais contra a ordem tributária? O distinguishing do STJ no Informativo 865

A Súmula Vinculante 24 se aplica aos crimes formais contra a ordem tributária? O distinguishing do STJ no Informativo 865

Prof. Gustavo Cordeiro

Introdução: quando o lançamento definitivo (não) importa

Imagine a seguinte situação: um empresário vende mercadorias sem emitir nota fiscal. A fiscalização constata a irregularidade e instaura procedimento criminal. O advogado invoca a Súmula Vinculante 24, argumentando que não pode haver crime antes do lançamento definitivo do tributo. O juiz acolhe a tese e tranca a ação penal. Decisão correta?

Não! E foi exatamente esse equívoco que o Superior Tribunal de Justiça corrigiu no Informativo 865, em agosto de 2025, ao julgar o RHC 209.207/GO.

A Súmula Vinculante 24 do STF é uma das mais cobradas em concursos jurídicos e uma das mais mal compreendidas na prática. Seu texto parece simples:

"Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo."

Mas há uma palavra-chave que muitos esquecem: “material”. E é justamente aqui que mora o problema.

O STJ, aplicando a técnica do distinguishing (distinção de precedentes), deixou cristalino: a SV 24 NÃO se aplica ao crime do art. 1º, V, da Lei 8.137/90 (negar ou deixar de fornecer nota fiscal), porque este é um crime formal, cuja consumação independe do lançamento tributário.

Compreendendo a Súmula Vinculante 24: origem e fundamento

O contexto pré-sumular

crimes

Antes da edição da SV 24, em 2009, havia enorme controvérsia sobre o momento em que se consumavam os crimes tributários. Muitos juízes e tribunais entendiam que o simples comportamento fraudulento (exemplo: omitir receita na declaração) já configurava crime, independentemente de qualquer procedimento administrativo.

Outros sustentavam que, enquanto houvesse discussão administrativa sobre a existência e o valor do tributo, não se poderia falar em crime, pois o próprio objeto material da conduta (o tributo devido) ainda não estaria definido.

A posição do STF

O Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula Vinculante 24, pacificou o entendimento de que, nos crimes materiais contra a ordem tributária (arts. 1º, I a IV, da Lei 8.137/90), o tipo penal só se consuma com a efetiva supressão ou redução do tributo, o que pressupõe sua constituição definitiva.

Fundamentos da SV 24:

Princípio da legalidade tributária: Não há tributo sem lei que o estabeleça. Logo, não há crime de suprimir tributo que ainda não foi validamente constituído.

Princípio da ampla defesa: Enquanto pendente discussão administrativa, o contribuinte está exercendo direito constitucional de questionar a cobrança. Não pode ser criminalizado por isso.

Natureza material dos crimes dos incisos I a IV: Esses crimes exigem resultado naturalístico (supressão ou redução de tributo). Sem o lançamento definitivo, não há como comprovar que o resultado ocorreu.

Subsidiariedade do Direito Penal: Antes de criminalizar, deve-se esgotar a via administrativa. O Direito Penal é ultima ratio.

O que é lançamento definitivo?

O lançamento tributário é o procedimento administrativo pelo qual a autoridade fiscal:

  1. Verifica a ocorrência do fato gerador
  2. Determina a matéria tributável
  3. Calcula o montante do tributo devido
  4. Identifica o sujeito passivo
  5. Constitui o crédito tributário

O lançamento torna-se definitivo quando:

  • O contribuinte não impugna no prazo legal, ou
  • A impugnação é julgada improcedente em última instância administrativa, ou
  • O contribuinte desiste da impugnação ou deixa de apresentar recurso

Enquanto houver recurso administrativo pendente, o lançamento não é definitivo, e os crimes materiais dos incisos I a IV não se consumam.

Crimes materiais vs. crimes formais: a distinção fundamental

Para compreender o distinguishing do STJ, você precisa dominar a diferença entre crimes materiais e formais.

Crimes materiais

– Definição: São aqueles que exigem a produção de resultado naturalístico para sua consumação. O tipo penal descreve uma conduta E um resultado que deve efetivamente ocorrer no mundo real.

 Exemplos clássicos:

  • Homicídio (art. 121, CP): exige a morte da vítima
  • Furto (art. 155, CP): exige a subtração e inversão da posse
  • Estelionato (art. 171, CP): exige a obtenção de vantagem ilícita

 Estrutura típica: CONDUTA + RESULTADO + NEXO CAUSAL

 Tentativa: É possível, pois pode haver início da execução sem produção do resultado.

Crimes formais (ou de consumação antecipada)

 Definição: São aqueles que se consumam com a mera realização da conduta descrita no tipo penal, independentemente da produção de resultado naturalístico. O resultado pode até ocorrer, mas é irrelevante para a consumação.

 Exemplos clássicos:

  • Ameaça (art. 147, CP): consuma-se com a ameaça, mesmo que a vítima não fique amedrontada
  • Extorsão (art. 158, CP): consuma-se com a exigência mediante violência/grave ameaça, mesmo que a vantagem não seja obtida
  • Concussão (art. 316, CP): consuma-se com a exigência, mesmo que não haja pagamento

 Estrutura típica: CONDUTA (o resultado é presumido ou dispensado)

 Tentativa: É possível, mas rara, pois a consumação ocorre no início da execução.

Aplicação aos crimes tributários

CrimeTipoConsumaçãoSV 24?
Art. 1º, I – Omitir informação para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva do tributo✅ Aplica-se
Art. 1º, II – Fraudar fiscalização para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva do tributo✅ Aplica-se
Art. 1º, III – Falsificar documento para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva do tributo✅ Aplica-se
Art. 1º, IV – Elaborar documento falso para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva do tributo✅ Aplica-se
Art. 1º, V – Negar ou deixar de fornecer nota fiscalFormalMera negativa/omissão❌ Não se aplica

O crime do art. 1º, V, da lei 8.137/90: anatomia do tipo

Vamos dissecar o dispositivo que foi objeto do julgamento do STJ:

"Art. 1º Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

[...]

V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação."

Elementos do tipo

  • Núcleo do tipo: “negar” ou “deixar de fornecer” (condutas omissivas)
  • Objeto material: nota fiscal ou documento equivalente
  • Elementar normativa: “quando obrigatório” (depende de legislação tributária)
  • Circunstância: relativa a operação “efetivamente realizada”
  • Modalidade equiparada: “fornecê-la em desacordo com a legislação”

Por que é crime formal?

O tipo não exige que o tributo seja efetivamente suprimido ou reduzido. A consumação se dá com a mera negativa ou omissão na emissão do documento fiscal.

Exemplo prático:

  • Empresário vende mercadoria por R$ 10.000,00
  • Não emite nota fiscal
  • O crime se consuma no momento em que deveria ter emitido a nota e não emitiu
  • É irrelevante se posteriormente:
    • O Fisco descobriu ou não a operação
    • Houve ou não autuação
    • O tributo foi ou não lançado
    • Houve ou não prejuízo ao erário

Bem jurídico protegido

Enquanto os crimes dos incisos I a IV protegem primordialmente a arrecadação tributária (patrimônio público), o crime do inciso V protege:

  • A administração tributária em seu poder de fiscalização
  • A ordem econômica, impedindo concorrência desleal (quem não emite nota consegue preço mais baixo)
  • O sistema de documentação fiscal, essencial para o controle estatal

Dolo exigido

O dolo é a consciência e vontade de:

  • Não emitir o documento fiscal quando obrigatório, ou
  • Emiti-lo em desacordo com a legislação

Não se exige dolo específico de suprimir ou reduzir tributo. Basta o dolo genérico de descumprir a obrigação de documentar a operação.

O julgamento do STJ (RHC 209.207/GO – Informativo 865)

Contexto do caso

Um empresário foi denunciado pela prática do crime do art. 1º, V, da Lei 8.137/90 (deixar de emitir nota fiscal). A defesa impetrante alegou que, sem o lançamento definitivo do tributo, não haveria crime, invocando a Súmula Vinculante 24.

A Turma Recursal acolheu a tese e trancou a ação penal. O Ministério Público interpôs Recurso em Habeas Corpus ao STJ.

A tese da defesa

A defesa sustentou que:

  • A SV 24 condiciona a tipificação de crime tributário ao lançamento definitivo
  • O inciso V está no art. 1º da Lei 8.137/90, que cuida de “suprimir ou reduzir tributo”
  • Logo, a súmula seria aplicável

A decisão do STJ

A Sexta Turma, por unanimidade, sob relatoria do Min. Sebastião Reis Júnior, reformou a decisão e determinou o prosseguimento da ação penal.

Fundamentos:

 Interpretação literal da SV 24: A súmula expressamente limita sua aplicação aos incisos I a IV. A exclusão do inciso V foi deliberada, não acidental.

 Natureza formal do crime: O inciso V descreve conduta que se consuma independentemente da supressão ou redução de tributo.

 Técnica do distinguishing: O caso concreto (inciso V) se distingue dos precedentes que fundamentaram a SV 24 (incisos I a IV) porque:

  • A estrutura típica é diferente (formal vs. material)
  • O bem jurídico imediatamente protegido é diferente (fiscalização vs. arrecadação)
  • A consumação é diferente (conduta vs. resultado)

 Proteção à administração tributária: O dever de emitir nota fiscal é autônomo e imediato, não dependendo da constituição do crédito tributário.

Trecho fundamental do acórdão

"A Súmula Vinculante n. 24 do STF estabelece que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo. A própria redação do enunciado sumular, ao delimitar expressamente sua aplicação aos incisos I a IV do art. 1º da Lei n. 8.137/1990, evidencia uma escolha deliberada do Supremo Tribunal Federal em não incluir o inciso V no seu âmbito de incidência."

A técnica do distinguishing: o que é e por que importa?

O que é distinguishing?

Distinguishing (ou distinção) é uma técnica de aplicação de precedentes que consiste em demonstrar que o caso concreto difere substancialmente do precedente, de modo que este não deve ser aplicado.

  • Origem: Common law (Inglaterra/EUA)
  • Lógica: Precedentes vinculam casos semelhantes (stare decisis). Se o caso é diferente, o precedente não se aplica.
  • Fundamento: Permite evolução jurisprudencial sem necessidade de overruling (superação formal do precedente).

Elementos do distinguishing

Para realizar distinguishing, o julgador deve:

  1. Identificar a ratio decidendi (razão de decidir) do precedente
  2. Extrair os fatos relevantes (holding) que fundamentaram a decisão
  3. Comparar com o caso concreto
  4. Demonstrar diferenças substanciais que justifiquem solução diversa

Distinguishing no caso concreto

ElementoPrecedente (SV 24 – Incisos I a IV)Caso concreto (Inciso V)
Estrutura típicaCrime materialCrime formal
ConsumaçãoDepende da supressão/reduçãoIndepende de resultado
Bem jurídicoArrecadação tributáriaAdministração fiscal
CondicionanteLançamento definitivoObrigatoriedade legal
ResultadoNecessárioDispensável

Conclusão do distinguishing: O inciso V se distingue dos incisos I a IV em aspectos estruturais e axiológicos essenciais, de modo que a ratio decidendi da SV 24 (proteção contra criminalização prematura enquanto pendente definição administrativa) não se aplica.

Outros crimes formais tributários

O entendimento do STJ não se limita ao art. 1º, V. Outros crimes tributários formais também não se submetem à SV 24:

Art. 2º, II - Deixar de Recolher ICMS

"Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos."

🔶 Natureza: Crime formal (omissivo próprio)

🔸 Consumação: Vencimento do prazo legal sem recolhimento

🔶 SV 24: Não se aplica (STJ, REsp 1.785.383)

🔸 Particularidade: O tributo já foi retido/descontado de terceiro. O agente atua como mero depositário. Não há discussão sobre a existência ou valor do tributo.

Quadro comparativo completo

DispositivoCondutaNaturezaConsumaçãoSV 24
Art. 1º, IOmitir informação para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva✅ Sim
Art. 1º, IIFraudar fiscalização para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva✅ Sim
Art. 1º, IIIFalsificar documento para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva✅ Sim
Art. 1º, IVElaborar documento falso para suprimir tributoMaterialSupressão efetiva✅ Sim
Art. 1º, VNegar/omitir nota fiscalFormalMera omissão Não
Art. 2º, IDeclaração falsaMaterial*Supressão efetiva✅ Sim*
Art. 2º, IIDeixar de recolher tributo retidoFormalVencimento do prazo❌ Não

*Posição majoritária, mas há controvérsia.

Conexão com concursos públicos: como o tema pode cair?

Questão simulada (Estilo CESPE/CEBRASPE)

João, comerciante, realizou diversas vendas de mercadorias sem emitir nota fiscal, conforme exigido pela legislação tributária. A fiscalização estadual constatou as irregularidades e lavrou auto de infração. João apresentou impugnação administrativa, que está pendente de julgamento. O Ministério Público ofereceu denúncia pela prática do crime previsto no art. 1º, V, da Lei 8.137/90. A defesa requereu o trancamento da ação penal, invocando a Súmula Vinculante 24 do STF, sob o argumento de que não há crime antes do lançamento definitivo do tributo.

À luz da jurisprudência do STJ (Informativo 865 - RHC 209.207/GO), assinale a alternativa correta.

(A) A tese defensiva deve ser acolhida, pois a Súmula Vinculante 24 se aplica a todos os crimes do art. 1º da Lei 8.137/90, incluindo o inciso V, sendo indispensável o lançamento definitivo para a tipificação.

(B) A tese defensiva deve ser rejeitada, pois o crime do art. 1º, V, é formal, consumando-se com a mera omissão na emissão da nota fiscal, independentemente do lançamento definitivo do tributo, não se aplicando a Súmula Vinculante 24.

(C) A tese defensiva deve ser acolhida, pois, enquanto pendente impugnação administrativa, o contribuinte está exercendo direito constitucional de defesa, não podendo ser criminalizado prematuramente.

(D) A tese defensiva deve ser rejeitada apenas se comprovado dolo específico de suprimir tributo, caso em que o crime se consumaria independentemente do lançamento definitivo.

(E) A tese defensiva deve ser parcialmente acolhida, suspendendo-se o processo até o julgamento definitivo da impugnação administrativa, em respeito ao princípio da não autoincriminação.

🎯 Gabarito: Letra B

Por que a alternativa B está correta?

O STJ, no RHC 209.207/GO (Informativo 865), aplicou a técnica do distinguishing para afastar a incidência da Súmula Vinculante 24 ao crime do art. 1º, V, da Lei 8.137/90.

Fundamentos:

  1. Interpretação literal da SV 24: O enunciado sumular expressamente limita sua aplicação aos incisos I a IV, excluindo deliberadamente o inciso V.
  2. Natureza formal do crime: O art. 1º, V tipifica crime formal, cuja consumação se dá com a mera negativa ou omissão na emissão da nota fiscal, independentemente da supressão ou redução efetiva de tributo.
  3. Distinção estrutural: Enquanto os incisos I a IV descrevem crimes materiais que exigem resultado naturalístico (supressão/redução de tributo), o inciso V descreve conduta que se consuma com a mera realização do verbo típico.
  4. Bem jurídico protegido: O inciso V tutela primordialmente a administração tributária e seu poder de fiscalização, não diretamente a arrecadação. O dever de documentação fiscal é autônomo e imediato.
  5. Desnecessidade do lançamento: Como a consumação independe de resultado material, o lançamento tributário é irrelevante para a tipificação.

Por que as demais estão incorretas?

(A) Errada. A SV 24 não se aplica ao inciso V, conforme entendimento consolidado do STJ. A própria redação da súmula delimita expressamente sua aplicação aos incisos I a IV, evidenciando escolha deliberada do STF em não incluir o inciso V.

(C) Errada. Embora a pendência de impugnação administrativa impeça a tipificação dos crimes materiais (incisos I a IV), essa lógica não se aplica aos crimes formais, cuja consumação independe da constituição definitiva do crédito tributário. O direito de defesa administrativa permanece íntegro, mas não obsta a persecução penal em crimes formais.

(D) Errada. O crime do art. 1º, V é formal e exige apenas dolo genérico (consciência e vontade de não emitir a nota fiscal quando obrigatório). Não se exige dolo específico de suprimir tributo. A consumação ocorre independentemente de comprovação de dolo específico ou de resultado material.

(E) Errada. Não há previsão legal ou jurisprudencial de suspensão do processo penal até o julgamento da impugnação administrativa nos crimes formais tributários. A persecução penal e o procedimento administrativo são autônomos e independentes. O princípio da não autoincriminação não se confunde com direito à suspensão processual.


Dicas práticas: mnemônico M.F.L.

Para memorizar quando a SV 24 se aplica, use o acrônimo M.F.L.:

  • Material: O crime precisa ser material (exigir resultado)
  • Fiscal: Deve envolver supressão ou redução de tributo
  • Lançamento: Depende do lançamento definitivo

Se o crime é FORMAL, a SV 24 NÃO se aplica, independentemente de lançamento.


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