Para compreender adequadamente a relevância desta decisão, é fundamental esclarecer o cenário fático que originou a discussão.
No Rio Grande do Sul, quatro indivíduos efetuaram disparos de arma de fogo contra três policiais civis durante operação policial.
Embora os agentes não tenham sido atingidos devido à sua reação armada, um dos projéteis acabou ferindo Roger Soares Silva, transeunte que se encontrava no local.
A questão central reside precisamente neste ponto: o Ministério Público sustentava que deveria haver imputação autônoma por tentativa de homicídio contra o civil atingido, fundamentando-se na alegação de dolo eventual.
Em contrapartida, as instâncias inferiores entenderam tratar-se de hipótese clássica de aberratio ictus (erro na execução), aplicando-se a teoria da equivalência prevista no art. 73 do Código Penal.
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em julgamento concluído em 21 de maio de 2025, sob a relatoria do Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), negou provimento ao agravo regimental interposto pelo Ministério Público gaúcho. Consolidou-se, assim, um entendimento de suma importância que CAI MUITO EM PROVAS!
A fundamentação do STJ
Consoante a fundamentação expendida pelo relator, "o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria da equivalência na hipótese de erro na execução (aberratio ictus), determinando que o agente responda como se tivesse atingido a pessoa originalmente visada".
Esta orientação hermenêutica decorre, sobretudo, da necessidade de preservar a coerência sistemática do direito penal brasileiro.
Nessa perspectiva, o tribunal esclareceu que se “trata-se de ficção jurídica que busca equiparar, para fins penais, o resultado produzido ao inicialmente pretendido, preservando a tipificação do delito conforme a intenção do autor”.

Consequentemente, conforme asseverou o julgado, “caso o erro resulte na ofensa simultânea tanto à vítima pretendida quanto a terceiro, aplica-se a regra do artigo 70 do Código Penal, que prevê o concurso formal de crimes, impondo a responsabilização por cada um dos eventos lesivos produzidos”.
Outrossim, o acórdão destacou que “o dispositivo, portanto, opera como um critério de imputação penal, assegurando que a configuração típica da conduta não seja alterada pelo erro na execução, salvo nas hipóteses em que se verifique o concurso efetivo de crimes”.
A distinção fundamental entre unidade simples e complexa
O STJ estabeleceu distinção técnica de extrema relevância para a correta aplicação do instituto.
Conforme precedente citado da própria Sexta Turma, "ocorre aberratio ictus com resultado duplo, ou unidade complexa, de que dispõe o art. 73, segunda parte, do CP, quando, na execução do crime de homicídio doloso, além do resultado intencional, sobrevém outro não pretendido, decorrente de erro de pontaria, em que, além da vítima originalmente visada, outra é atingida por erro na execução" (REsp 1853219-RS, Ministro Nefi Cordeiro).
Por conseguinte, na hipótese dos autos, considerando que “os denunciados efetuaram diversos disparos de arma de fogo contra três policiais civis, não logrando êxito em atingi-los em razão da reação armada destes”, configurou-se aberratio ictus com unidade simples.
Destarte, conforme assinalou o relator, “a tipificação do delito deve considerar o número de vítimas visadas, e não o resultado concreto, razão pela qual a denúncia imputou aos acusados a prática de três tentativas de homicídio qualificado contra os policiais civis”.
A rejeição da tese do dolo eventual e questões processuais
O Ministério Público sustentava que "a conduta dos recorridos revela a assunção do risco de atingir qualquer pessoa presente no local dos fatos, evidenciando, assim, a presença de dolo eventual".
Ademais, argumentava que “a moldura fática delineada nos autos demonstra que os agentes, ao efetuarem disparos de arma de fogo em via pública movimentada, consentiram com a possibilidade de vitimarem terceiros”.
Todavia, o STJ foi categórico ao afastar tal entendimento.
Conforme explicitado no voto condutor, "não havendo duplo resultado, não pode prosperar a imputação de uma quarta tentativa de homicídio por dolo eventual aos denunciados, sob pena de bis in idem, uma vez que, pelo mesmo contexto fático, já respondem por três homicídios tentados contra as vítimas efetivamente visadas".
Relativamente às questões processuais, o parquet alegou violação ao art. 413 do Código de Processo Penal, “atribuindo ao magistrado de primeiro grau juízo de certeza incompatível com a fase de pronúncia”.
Contudo, o tribunal manteve o posicionamento de que a exclusão decorreu de aplicação direta da norma penal, não demandando valoração probatória específica sobre elemento subjetivo.
Implicações práticas
A decisão produz reflexos significativos na práxis forense.
Primeiramente, estabelece que “a exclusão da quarta tentativa decorreu do entendimento de que, na aberratio ictus com unidade simples, o agente responde pelo crime contra aqueles que efetivamente pretendia ofender, não incidindo, nessa hipótese, a regra do concurso formal prevista no artigo 70 do Código Penal”.
Ademais, conforme registrou o acórdão, "o atingimento do transeunte decorreu de erro na execução, hipótese em que a norma penal estabelece que o agente deve responder como se tivesse atingido aqueles que pretendia ofender, não se configurando crime autônomo em relação ao terceiro atingido".
Traduzindo
Assim, a Corte Superior consolidou tese de fundamental importância:
"1. Na aberratio ictus com unidade simples, o agente responde pelo crime contra aqueles que pretendia ofender, não configurando crime autônomo em relação ao terceiro atingido.
2. A teoria da equivalência na hipótese de erro na execução determina que o agente responda como se tivesse atingido a pessoa originalmente visada".
Para compreendermos o alcance prático desta decisão, é necessário simplificar o que efetivamente o STJ decidiu. Imagine a seguinte situação: criminosos atiram contra policiais específicos, mas erram os tiros. Um desses tiros perdidos acaba atingindo uma pessoa inocente que passava pelo local. A pergunta fundamental era: os criminosos devem responder por crimes separados – um pelos policiais que queriam atingir e outro pela pessoa que atingiram por acidente?
O STJ respondeu categoricamente que não. A decisão estabelece que quando alguém erra o alvo e atinge uma terceira pessoa por acidente (aberratio ictus), essa pessoa deve ser tratada legalmente como se tivesse atingido apenas quem realmente queria atingir. Em outras palavras, os criminosos respondem apenas pelas três tentativas de homicídio contra os policiais que efetivamente visavam, não havendo um quarto crime contra o transeunte atingido acidentalmente.
A lógica jurídica por trás dessa decisão é impedir que se puna duas vezes a pessoa pelo mesmo ato criminoso (bis in idem). O código penal brasileiro já prevê essa situação no artigo 73, criando uma “ficção jurídica” que equipara o resultado acidental ao resultado pretendido.
Dessa forma, o STJ garantiu que a aplicação da lei penal seja uniforme e previsível, evitando que a gravidade do contexto leve a punições excessivas ou duplas pelo mesmo fato criminoso.
Como o tema já caiu em provas
CESPE - 2019 - TJ-SC - Juiz Substituto
No chamado aberratio ictus, quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, em vez de vitimar a pessoa que pretendia ofender, o agente atingir pessoa diversa, consideram-se as condições e qualidades não da vítima, mas da pessoa que o agente pretendia atingir.
Gabarito: Certo
Comentário: configura-se a aberratio ictus quando o agente erra a execução do crime. Vindo ele a atingir pessoa diversa da pretendida, consideram-se as características da pessoa pretendida (art. 20, §3º, CP: O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime). Destarte, o filho que desfere tiro contra o pai e, por erro, atinge fatalmente seu vizinho, deve ser considerado patricida.
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