A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve por unanimidade, nesta terça-feira (18/8), a condenação de uma juíza aposentada a três anos e três meses de prisão em regime semiaberto por crime de peculato-desvio.
O colegiado rejeitou recurso da defesa que questionava a tipificação penal do uso de oito servidores comissionados do Tribunal de Justiça de Mato Grosso para atividades exclusivamente domésticas entre julho de 2005 e dezembro de 2007.
Vamos entender o caso, primeiro, peculato-desvio:
Deve-se compreender a posse necessária para configuração do crime de peculato não só como a disponibilidade direta, mas também como disponibilidade jurídica, exercida por meio de ordens.
Essa conclusão está amparada na lição da doutrina, segundo a qual a “posse, a que se refere o texto legal, deve ser entendida em sentido amplo, compreendendo a simples detenção, bem como a posse indireta (disponibilidade jurídica sem detenção material, ou poder de disposição exercível mediante ordens, requisições ou mandados” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 9, p. 339, apud NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. Parte Especial: arts. 213 a 361 do Código Penal. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 467).
Existem outros julgados do STJ no mesmo sentido:
O conceito de ‘posse’ de que cuida o artigo 312 do Código Penal tem sentido amplo e abrange a disponibilidade jurídica do bem, de modo que resta configurado o delito de peculato na hipótese em que o funcionário público apropria-se de bem ou valor, mesmo que não detenha a sua posse direta.
Pratica o delito de peculato o Delegado da Polícia Federal que obtém em proveito próprio quantia em espécie em posto de combustível com o qual a Superintendência Regional havia celebrado convênio para abastecimento de viaturas, sendo irrelevante que o réu não detivesse a posse direta do valor apropriado se possuía a disponibilidade jurídica do valor, dado que era ele que emitia as requisições de abastecimento.
STJ. 6ª Turma. REsp 1695736/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 08/05/2018.
No peculato-desvio, exige-se que o servidor público se aproprie de dinheiro do qual tenha posse direta ou indireta, ainda que mediante mera disponibilidade jurídica.
STF. Plenário. Inq 2966, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15/05/2014.
Fundamentação sólida confirma materialidade delitiva
O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, foi categórico ao destacar que “a Corte estadual manteve a condenação com base em análise detalhada dos elementos probatórios que confirmaram a materialidade e autoria do delito de peculato”.

Segundo o acórdão do TJMT citado pelo ministro, a juíza “valendo-se de seu cargo público de magistrada, contratou servidores pagos pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso para desempenhar serviços particulares em sua residência, sem qualquer correlação com os cargos públicos que ocupavam”.
A fundamentação judicial ressaltou que os comissionados executavam tarefas como cuidar de criança, pagar contas pessoais, trabalhos de jardinagem, segurança doméstica e cuidados com animais de estimação.
O TJ estadual foi taxativo ao concluir que “essa prática foi corroborada por depoimentos de testemunhas, que confirmaram que os serviços prestados eram de cunho doméstico e não relacionados ao cargo público para o qual foram nomeados”.
Jurisprudência
Vale ressaltar que esta decisão integra jurisprudência consolidada sobre desvio de finalidade no serviço público.
Como citamos, o STJ tem sistematicamente aplicado o entendimento de que a nomeação fraudulenta para cargos comissionados configura peculato quando há evidente descompasso entre as atribuições formais e as atividades efetivamente exercidas.
Inclusive, o caso ganha relevância por envolver magistrada que, teoricamente, deveria ser guardiã da probidade administrativa.
Ademais, a Corte Superior tem precedentes firmes no sentido de que não existe “zona cinzenta” na aplicação do art. 312 do Código Penal quando demonstrado o dolo específico de apropriação indevida de recursos públicos.
Já, o ministro Reis Júnior observou que “não se tratava de servidores públicos que foram desviados de sua função, mas de indivíduos admitidos em cargo de confiança com o exclusivo propósito de prestar serviços particulares para a então magistrada”.
Instâncias ordinárias
O caso iniciou-se com investigação do Ministério Público que descobriu a peculiaridade geográfica determinante: a juíza exercia jurisdição na comarca de Jaciara, interior de Mato Grosso, mas residia em Curitiba, distante mais de 1.500 quilômetros.
Nessa linha, durante o período investigado, a magistrada encontrava-se afastada por licença médica.
Os depoimentos testemunhais foram uníssonos em confirmar que os oito comissionados “sequer conheciam a comarca onde estavam nomeados ou até mesmo o próprio Estado de Mato Grosso”, conforme registrou o tribunal estadual.
Além disso, uma testemunha relatou ter sido “contratado pela magistrada para desempenhar suas atividades na residência dela, substituindo outra servidora cuja função era controlar a agenda, cuidar de uma criança e pagar as contas”.
Posteriormente, também exerceu função de motorista particular.
A defesa tentou argumentar “atipicidade da conduta” e “inexistência de ardil”, teses rejeitadas pelo TJMT que concluiu ser “clarividente que a nomeação dos servidores foi apenas subterfúgio para acessar a remuneração paga pelo Tribunal”.
Estima-se que o prejuízo calculado de R$ 145 mil aos cofres estaduais demonstra como desvios aparentemente “menores” podem representar sangria substancial de recursos.
O TJMT foi enfático ao registrar que "mesmo que as atribuições dos cargos pudessem ser desempenhadas em local diverso do gabinete, é certo que a realização de atividades de cunho doméstico configura, inegavelmente, peculato-desvio".
Por outro lado, a defesa anunciou estratégia recursal abrangente, incluindo embargos de declaração na própria Sexta Turma, embargos de divergência na Seção Criminal do STJ e eventual recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal baseado na Ação Penal 504, que estabeleceu entendimento sobre utilização de serviços de servidores públicos.
Como o tema já caiu em provas
Prova: CESPE / CEBRASPE - 2024 - TJ-PE - Titular de Serviços de Notas e de Registros - Provimento
Carlos, tabelião de um ofício de notas, apropriou-se de valores públicos que deveriam ter sido repassados a determinado fundo estadual, cujos recursos financeiros são destinados ao processo de modernização e reaparelhamento do Poder Judiciário.
Nessa situação, de acordo com o entendimento do STJ, a conduta praticada por Carlos configura crime
Alternativas
A) de concussão.
B) de apropriação indébita.
C) contra a ordem tributária.
D) de peculato-desvio.
E) de prevaricação.
Gab.: D.
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