* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão do STF
O Supremo Tribunal Federal formou maioria no julgamento da ADPF 973 para reconhecer a omissão estatal no enfrentamento às violações de direitos da população negra.
A Suprema Corte reconheceu uma omissão estatal sistêmica no enfrentamento das manifestações de direitos da população negra.
Em decorrência desse reconhecimento, o STF determinou a elaboração de um plano nacional de enfrentamento ao racismo no prazo de 12 meses.
A ADPF 973 foi apresentada por entidades do movimento negro e partidos políticos. A ação tem por objetivo o reconhecimento de um quadro de violação massiva de direitos fundamentais da população negra e a adoção de políticas públicas de reparação diante do racismo estrutural e institucional.
Os autores argumentaram que ações e omissões do Estado têm negado sistematicamente direitos constitucionais à vida, à saúde, à segurança e à alimentação digna da população negra.
Eles apontaram a existência de um cenário de genocídio permanente, evidenciado pela alta letalidade da violência policial e pelo hiperencarceramento de jovens pretos e pardos no contexto da política antidrogas. Por essa razão, os autores defendiam o reconhecimento de um estado de coisas inconstitucional e a adoção de medidas concretas por meio de um plano nacional, atribuindo obrigações específicas ao Judiciário, Legislativo e Executivo.
Divergência sobre o “Estado de Coisas Inconstitucional” (ECI)
Embora a maioria tenha votado no sentido de reconhecer violações sistemáticas de direitos da população negra, o tema do “estado de coisas inconstitucional” (ECI) gerou divergência e caloroso debate. Vejamos.
Corrente a favor do ECI:
Alguns ministros reconheceram a existência de um “estado de coisas inconstitucional” decorrente do racismo estrutural e institucional.
Essa doutrina jurídico-constitucional se aplica quando há uma violação massiva, contínua e estrutural de direitos fundamentais que atinge um grande número de pessoas. Essa situação exige atuações coordenadas dos Poderes do Estado e não pode ser corrigida por um único ato ou órgão.
Essa corrente foi formada pelo relator, ministro Luiz Fux, pelo ministro Flávio Dino e pela ministra Cármen Lúcia. Eles entendem que há uma omissão estatal sistêmica. Então, propõem políticas públicas de reparação, incluindo a elaboração de um plano nacional de enfrentamento ao racismo com participação do Judiciário.
Corrente contra o ECI:
Outros ministros (Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli) também reconheceram o racismo estrutural e a gravidade das violações, apoiando a adoção de medidas.
No entanto, esses ministros afastaram o reconhecimento do ECI, sob o argumento de que já existem políticas implementadas ou em andamento para enfrentar omissões históricas.
O ministro Cristiano Zanin avaliou que o quadro é de insuficiência de providências, e não de ECI. Ele ainda citou entendimentos similares do Tribunal em outras ADPFs (635 e 760, relativas à segurança pública e proteção da Amazônia).

O ministro André Mendonça reconheceu o racismo estrutural na sociedade, mas discordou da caracterização do racismo institucional. Ele argumentou que o problema decorre de práticas individuais e não das instituições.
Já o ministro Alexandre de Moraes ressaltou os avanços desde a Constituição de 1988. Dentre eles estariam a criação de órgãos de promoção da igualdade racial, legislações protetivas e ações afirmativas. Dessa forma, afirmou que não é possível alegar que houve uma política estatal voltada para a manutenção do racismo estrutural.
Em manifestação enviada ao STF, a AGU reiterou o compromisso do Poder Público Federal com o enfrentamento do problema, detalhando ações já implementadas, medidas em curso e iniciativas planejadas.
Além das iniciativas e políticas já desenvolvidas no âmbito da Administração Pública Federal, a União reafirmou ao STF o compromisso, já manifestado nos autos da ADPF, de elaborar, em prazo razoável, um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional.
Aguardemos.
Análise jurídica
O Brasil sofre, desde a sua fundação, com o racismo, em especial no período de vigência da escravidão, que foi abolida oficialmente em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
Mas os efeitos nefastos da discriminação racial em nosso país se arrastam até hoje. Isso motiva e reforça a necessidade da luta contra essa prática que insiste em nos envergonhar, e que acaba se consolidando como um racismo estrutural.
Racismo
O que é o racismo estrutural? Vejamos:
O racismo estrutural consiste em uma cultura enraizada de discriminação racial por toda a sociedade, relegando os negros a uma situação de inferioridade social, econômica, política. Ou seja, é o racismo que está impregnado em todas as estruturas da sociedade, tais como instituições, consciente coletivo, arte, academia, esporte. O racismo estrutural não se manifesta, necessariamente, através de atos isolados de discriminação ou de preconceito, mas decorre de um processo histórico discriminatório que é alimentado pela falta de políticas públicas voltadas a inclusão de pessoas negras no protagonismo social.
Essa luta contra o racismo se intensificou após a Constituição Federal de 1988, quando se incluiu o crime de racismo como inafiançável e imprescritível. Outro avanço é o advento da Lei 11.645/2008, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas.
CF/88 Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: ... VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; ... Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Lei nº 9.394/96 Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
A Lei nº 7.716/89 é conhecida como a Lei do Crime Racial, pois ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
A Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, alterando a Lei do Crime Racial e o Código Penal para tipificar como racismo a injúria racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, criando elementos para interpretação dos contextos e evidenciando algumas modalidades de racismo que não eram evidentes.
“A agressão a atletas, juízes, torcedores e torcidas, em um ambiente de prática de esportes, é compreendido como racismo esportivo. O deboche ou as piadas ofensivas disfarçadas de humor caracterizam o racismo recreativo. O preconceito e a desqualificação das religiões afrobrasileiras é racismo religioso.”[1]
Estado de coisas inconstitucional
O “estado de coisas inconstitucional” (ECI) é uma situação de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais do Estado, como a omissão ou incapacidade do poder público em resolver problemas sociais complexos.
Diferente de uma única lei inconstitucional, o ECI descreve uma realidade social que contraria a Constituição de forma sistêmica. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o sistema prisional brasileiro como um ECI na ADPF 347.
| Características do ECI Violação massiva e sistêmica: afeta um grande número de pessoas e viola diversos direitos fundamentais de forma continuada. Falhas estruturais: as violações não são isoladas, mas resultam de problemas estruturais no funcionamento do Estado, como a falta de coordenação entre os poderes ou falhas em políticas públicas. Omissão estatal: ocorre pela inércia, omissão ou incapacidade reiterada das autoridades em modificar a situação. |
O reconhecimento do ECI permite que o Judiciário tome medidas para forçar a mudança, indo além de anular uma lei e agindo sobre ações e omissões do poder público.
A Corte, ao declarar um ECI, pode expedir ordens estruturais para que diversos órgãos e autoridades trabalhem juntos na elaboração e implementação de políticas públicas que visem a superação do problema.
O Judiciário pode estipular prazos, metas e acompanhar a execução das medidas necessárias para resolver a situação.
[1] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/01/lei-que-tipifica-injuria-racial-como-crime-de-racismo-entra-em-vigor
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