O Supremo Tribunal Federal consolidou, em novembro de 2025, entendimento que põe fim a uma discussão que atravessava diversas instâncias do Judiciário brasileiro.
Ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo 1.409.059, sob relatoria do Ministro Gilmar Mendes, a Corte estabeleceu que a fixação de multas administrativas em múltiplos do salário mínimo não viola o comando constitucional previsto no artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal.
Perceba que essa decisão, tomada em sede de repercussão geral, não apenas resolve o caso concreto envolvendo o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, mas também estabelece diretriz vinculante para milhares de situações semelhantes em todo o país.
Vinculação do salário mínimo
A questão de fundo merece atenção cuidadosa.
Ora, o dispositivo constitucional que veda a vinculação do salário mínimo “para qualquer fim” sempre gerou interpretações divergentes no cenário jurisprudencial brasileiro.
De um lado, algumas decisões aplicavam leitura estrita da norma, considerando inconstitucional qualquer referência ao salário mínimo fora do contexto remuneratório.
De outro lado, prevalecia entendimento mais matizado, que diferenciava o uso do salário mínimo como mera referência daquele que efetivamente o transforma em indexador econômico.
Nesse sentido, o voto do Ministro Gilmar Mendes percorreu caminho metodológico essencial para compreensão adequada da matéria.
Breve histórico
O relator recuperou o histórico constitucional do dispositivo, demonstrando que a vedação surgiu em contexto muito específico.
Com efeito, durante as décadas de 1980 e 1990, a sociedade brasileira vivenciou período de hiperinflação aguda, circunstância que levou diversos agentes econômicos a adotarem referências desvinculadas do padrão monetário oficial.
O salário mínimo, junto com o dólar e outras unidades de referência, passou a servir como base para indexação automática de contratos, preços e salários.
Veja que esse cenário criava problema estrutural grave.
Toda vez que o salário mínimo sofria reajuste, toda a economia acompanhava automaticamente esse movimento, gerando espiral inflacionária que tornava cada vez mais difícil a implementação de políticas de valorização real do mínimo.
Destarte, o constituinte de 1988 estabeleceu a vedação expressa justamente para permitir que aumentos do salário mínimo não gerassem, indiretamente, peso maior do que aquele diretamente relacionado com esses aumentos.
Multa administrativa
Todavia, o Ministro Gilmar Mendes pontuou diferença fundamental que atravessa todo o raciocínio jurídico desenvolvido no acórdão.
A imposição de multa administrativa constitui evento pontual, episódico, decorrente de infração específica cometida pelo administrado.
Não se confunde, portanto, com valores de natureza continuada, periódica, como ocorre com verbas remuneratórias.
Essa distinção mostra-se absolutamente central para o deslinde da controvérsia.
Perceba que a multa administrativa possui natureza sancionatória eventual. Ela surge vinculada à violação de obrigação legal e não possui caráter de regularidade ou periodicidade.
Ora, justamente essa característica episódica impede que a multa possa servir de referencial para reajuste de outros valores ou para correção monetária periódica.
Diferentemente do que ocorre com salários, que são pagos mensalmente e podem gerar efeito cascata na economia, as multas administrativas não têm qualquer relação direta com o poder de compra dos trabalhadores ou com o funcionamento regular da economia.
Nesse ponto, o voto do relator demonstra que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já havia construído essa distinção em diversas oportunidades anteriores.
Precedentes
A Corte validou, por exemplo, dispositivo do Código de Processo Penal que utilizava o salário mínimo como parâmetro para fixação de multa por abandono de processo, na ADI 4.398.
Da mesma forma, reconheceu a constitucionalidade da fixação do piso salarial de médicos, dentistas e auxiliares em múltiplos do salário mínimo, na ADPF 325, adotando técnica de congelamento da base de cálculo para evitar indexação futura.
Com efeito, também validou o uso do salário mínimo como critério de aferição de capacidade econômica para fins de isenção de taxas, conforme decidido na ADI 1.568.
Destarte, emerge dos precedentes citados pelo relator que a Constituição Federal não proíbe a utilização de múltiplos do salário mínimo como mera referência paradigmática.

O que se busca impedir é especificamente seu uso como fator de indexação econômica, ou seja, como mecanismo de reajuste automático que vincule diversos valores aos aumentos do mínimo. Quando não há essa vinculação automática ou esse potencial de gerar efeito cascata na economia, o uso referencial do salário mínimo permanece constitucionalmente legítimo.
O caso concreto
Ora, o caso concreto julgado pelo Supremo envolveu multas administrativas aplicadas pelo Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, com fundamento na Lei 5.724/1971.
Essa legislação estabelece multa de um a três salários mínimos para empresas e estabelecimentos que exploram atividades farmacêuticas sem comprovar que são exercidas por profissionais habilitados e registrados nos Conselhos de Farmácia.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região havia extinguido a execução fiscal e anulado as multas, interpretando que o dispositivo constitucional impedia qualquer vinculação ao salário mínimo.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, reformou essa decisão.
Seguindo o voto do Ministro Gilmar Mendes, seis ministros concluíram pela constitucionalidade da cobrança. Apenas quatro ministros divergiram, liderados pelo Ministro Dias Toffoli, que sustentou entendimento mais restritivo sobre as possibilidades de uso do salário mínimo como referência.
Veja que o Ministro Gilmar Mendes também destacou argumento pragmático relevante. O ordenamento jurídico brasileiro encontra-se repleto de dispositivos que utilizam o salário mínimo como critério para fixação de multas e outras obrigações pecuniárias.
Legislação
Perceba, o Código Penal prevê prestação pecuniária entre um e trezentos e sessenta salários mínimos como pena alternativa. O Código de Processo Civil estabelece multas em múltiplos do salário mínimo para descumprimento de decisões, litigância de má-fé e embargos protelatórios. O Código de Processo Penal também recorre ao salário mínimo para fixar multas em casos de recusa ao serviço de júri.
Destarte, declarar a inconstitucionalidade generalizada dessa prática geraria vácuo normativo extenso e complexo, com impactos práticos relevantes em diversos ramos do direito. Nesse sentido, o relator observou que, especificamente no caso dos Conselhos de Farmácia, obstaculizar a aplicação de multas iria na contramão da garantia do direito fundamental à saúde, afetando sobremaneira o exercício do poder fiscalizatório dessas entidades.
Com efeito, a tese de repercussão geral fixada pelo Supremo estabelece de forma clara e objetiva que “a fixação de multa administrativa em múltiplos do salário mínimo não viola o disposto no art. 7º, IV, da Constituição Federal”.
Perceba que essa formulação consolida entendimento que já vinha sendo construído pela Corte em diversos precedentes, mas que ainda gerava insegurança jurídica nas instâncias inferiores pela ausência de pronunciamento definitivo em sede de repercussão geral.
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!