* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão por ampla maioria
O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que a responsabilidade civil do Estado por danos causados a pessoas alheias a protestos, decorrentes da atuação policial, é objetiva.
A decisão se deu no contexto dos danos causados durante a “Operação Centro Cívico“, ocorrida no Paraná, em 29 de abril de 2015. O evento resultou em 213 pessoas feridas, sendo 14 de maneira grave.
A questão foi debatida no Recurso Extraordinário 1.467.145, apresentado pelo Ministério Público do Estado do Paraná contra decisão do Tribunal de Justiça que havia definido que as vítimas deveriam provar que não foram culpadas pela ação policial.
Exigir que a vítima prove que era “terceiro inocente” (como defendido pela tese vencida do TJ/PR) representa um ônus desproporcional que esvaziaria o núcleo do direito fundamental à liberdade de reunião previsto na Constituição Federal.
O Ministro Nunes Marques divergiu parcialmente, pois reconheceu que, apesar da responsabilidade do Estado ser objetiva, no caso concreto o arquivamento do inquérito policial militar, que concluiu pelo estrito cumprimento do dever legal pelos policiais, deveria ser considerado parâmetro fático vinculante.
Portanto, para Nunes, caberia ao cidadão demonstrar ser “terceiro inocente”.
Em resumo, ficou estabelecido que cabe ao poder público, e não à vítima, provar excludente de responsabilidade em ações policiais durante manifestações, como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior.
O placar ficou da seguinte forma1:

Relembre o caso2
O episódio ocorreu em 29/4/15, quando servidores estaduais, a maioria professores, protestavam em frente à Assembleia Legislativa do Paraná.
Durante a manifestação, um grupo teria derrubado a barreira de proteção, levando a PM a intervir com o uso de bastões e spray de pimenta.
Em seguida, unidades de operações especiais lançaram bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha. A ação resultou em 213 feridos, sendo 14 em estado grave.
O tribunal estadual entendeu que a responsabilidade do Estado se limita aos casos em que a vítima comprove ser terceiro inocente, ou seja, que não tenha participado da manifestação ou contribuído para a reação policial.
O /Ministério do Paraná recorreu da decisão do TJ/PR sobre essa atuação da PM na “Operação Centro Cívico”.
No STF, o MP paranaense defendia que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, ou seja, independe da comprovação de dolo ou culpa, bem como do fato de a vítima ser ou não um terceiro inocente.
Análise jurídica
A responsabilidade civil objetiva do Estado funda-se na teoria do risco administrativo, consagrada no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
CF/88
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
...
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Essa teoria implica que o dever de ressarcir os prejuízos sofridos por terceiros ocorre em decorrência dos riscos da atuação administrativa. Assim, a consideração sobre a licitude da ação administrativa (se regular ou irregular) seria irrelevante para o dever de indenizar.
Teoria do Risco Administrativo
Conceito do direito que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado por danos causados a terceiros em decorrência de suas atividades. Isso significa que o Estado deve indenizar o cidadão prejudicado sem que seja necessário provar culpa ou dolo do agente público. Para a responsabilização do Estado, é suficiente demonstrar a existência de uma conduta administrativa, um dano e um nexo causal entre os dois.
O Ministro Flávio Dino destacou que a solução adotada anteriormente pelo Tribunal de Justiça do Paraná, via Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, violou a lógica constitucional ao presumir a culpa das vítimas e inverter o ônus da prova.
O Tribunal local havia restringido a responsabilização do Estado aos casos em que a vítima comprovasse ser “terceiro inocente”.
O STF já havia assentado a responsabilidade objetiva do Estado em contexto semelhante no Tema nº 1.055 da Repercussão Geral (RE 1.209.429), que tratava de profissionais de imprensa feridos por agentes policiais durante a cobertura de manifestações.
Neste precedente, só se admite a excludente de culpa exclusiva da vítima quando o profissional descumpre advertência ostensiva e clara sobre acesso a áreas delimitadas de grave risco.
| Tese do TEMA 1.055 do STF: “É objetiva a Responsabilidade Civil do Estado em relação a profissional da imprensa ferido por agentes policiais durante cobertura jornalística, em manifestações em que haja tumulto ou conflitos entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente da responsabilidade da culpa exclusiva da vítima, nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas, em que haja grave risco à sua integridade física.” |
Estrito cumprimento do dever legal
O procurador-geral do Paraná defendeu a manutenção da decisão do TJ/PR, alegando que o Estado atuou em estrito cumprimento do dever legal e que o arquivamento do inquérito militar confirmava a licitude da conduta policial.
Ele argumentou que exigir que o Estado identificasse a participação de cada indivíduo representaria um ônus desproporcional.
Liberdade de reunião
Durante o julgamento, os ministros Gilmar Mendes e Flávio Dino refletiram sobre a liberdade de reunião e os limites do uso da força estatal.
Gilmar Mendes mencionou um estudo europeu sobre a criação de uma lei padrão para regular o direito de reunião. Em resposta, o relator Flávio Dino ressaltou a importância de reafirmar que o uso da força policial deve ser:
- Moderado;
- Necessário; e
- Proporcional.
A ministra Carmen Lúcia, que já foi procuradora do Estado (MG), destacou que o dever do poder público é reconhecer os próprios erros quando há lesão a direitos fundamentais:
“Quando é reconhecidamente caso de lesão ao direito, de dano provocado por uma ação do Estado, é preciso que os Estados comecem a reconhecer, e que a advocacia pública passe a cada vez mais fazer valer os termos do § 6º da CF, no sentido de regressar como obrigação contra quem tenha ou atuado por culpa dolo, ou quem tenha mandado ou permitido, em última instância, que acontecesse, porque é assim que o Estado de direito funciona.”
| O direito de reunião é fundamental e autoexecutável, não dependendo de autorização do poder público, mas apenas de comunicação prévia para fins de segurança e organização. Assim, condicionar a reparação à prova de inocência do cidadão viola o núcleo essencial das liberdades democráticas. |
Ao final, foi fixada a seguinte tese:
I) O Estado do Paraná, em conformidade com postulados adotados pelo Supremo Tribunal Federal na fixação da tese no Tema nº 1.055 da Repercussão Geral, responde objetivamente pelos danos concretos diretamente causados por ação de policiais durante a ‘Operação Centro Cívico’, ocorrida em 29 de abril de 2015. Cabe ao ente público demonstrar, em cada caso, os fatos que comprovem eventual excludente da responsabilidade civil, não havendo coisa julgada criminal a ser observada.
II) Não se presume o reconhecimento da excludente de culpa exclusiva da vítima unicamente pelo fato desta estar presente na manifestação.”
O tema é extremamente relevante para provas de procuradorias. Portanto, muita atenção!
- https://www.migalhas.com.br/quentes/443347/stf-responsabilidade-estatal-por-ferido-alheio-a-protesto-e-objetiva ↩︎
- https://www.migalhas.com.br/quentes/443347/stf-responsabilidade-estatal-por-ferido-alheio-a-protesto-e-objetiva ↩︎
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