O Tribunal de Justiça de São Paulo recentemente proferiu decisão emblemática acerca da responsabilidade civil do Estado por atos praticados durante a ditadura militar. O caso em tela envolve Evandir Vaz de Lima, ex-estudante da Universidade de São Paulo, preso e torturado em 1974 por sua participação em movimentos estudantis.
O que aconteceu foi o seguinte:
Em abril de 1974, Evandir Vaz de Lima, então com 26 anos, foi detido nas proximidades da Cidade Universitária em São Paulo.
Seu “crime”: participar da edição de um jornal universitário com ideias contrárias ao regime vigente.
Em seguida, levado ao Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), Evandir foi submetido a interrogatórios e torturas que resultaram em danos físicos permanentes, incluindo a perda parcial da audição.
Após quase quatro meses de detenção, Evandir foi liberado, mas continuou sendo perseguido, o que o levou ao exílio fugindo do país.
Retornou ao Brasil apenas em 1980, com o advento da Lei da Anistia.
Quando foi em 2023 ele ingressou uma ação por danos morais contra o Estado de São Paulo.
Primeira pergunta, houve prescrição? Demorou mais de 40 anos para ele ingressar com uma ação reparatória…
NÃO houve prescrição.
A 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo ressaltou a imprescritibilidade das ações de reparação por danos oriundos da ditadura aplicando a Súmula 647 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece:
"São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar."
Ou seja, o STJ reconhece a excepcionalidade dos crimes contra a humanidade, afastando a incidência dos prazos prescricionais comumente aplicáveis às ações indenizatórias.
Tal entendimento é crucial para a efetivação da justiça em casos que envolvem graves violações de direitos humanos, permitindo, assim, que as vítimas busquem reparação mesmo décadas após os fatos ocorridos.
Segunda pergunta: e a responsabilidade não seria da União?
Não. O relator, desembargador Marrey Uint, enfatizou que as condutas imputadas envolviam exclusivamente agentes do Estado de São Paulo, vinculados à Secretaria de Segurança Pública local.
Tal constatação afastou alegações de ilegitimidade passiva e eventuais tentativas de incluir a União no polo passivo da demanda.
Terceira pergunta, e se a ação ao invés de ser contra o Estado fosse contra os agentes públicos que perseguiram o autor, estaria prescrita?
Sim! Perceba a diferença:
1) Se a ação for ajuizada contra o Estado/União: NÃO. Neste caso, a pretensão é imprescritível (Súmula 647-STJ).
2) Se a ação for ajuizada contra Antônio: SIM. Neste caso, a pretensão não é imprescritível (não se aplica a Súmula 647-STJ).
Essa conclusão foi a que chegou o STJ. 4ª Turma. REsp 2.054.390-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29/11/2023 (Info 799).
Responsabilidade objetiva do Estado
A decisão baseou-se no art. 37, § 6º da Constituição Federal, que consagra a teoria do risco administrativo.
Segundo esta teoria, o Estado responde objetivamente pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.
No caso em questão, o tribunal entendeu que foram os agentes estatais no exercício de suas funções que praticaram os atos de tortura, ainda que de forma ilícita e abusiva.
Além disso, vale frisar que a decisão do TJSP alinha-se com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade estatal por violações de direitos fundamentais. Em casos análogos, o STF tem reiteradamente afirmado a impossibilidade de invocar a Lei de Anistia para obstar a responsabilização civil do Estado.
Nesse sentido, cabe mencionar o julgamento da ADPF 153, onde o STF, embora tenha mantido a validade da Lei de Anistia no âmbito penal, não excluiu a possibilidade de responsabilização civil do Estado pelos atos praticados durante o regime militar. Essa distinção é fundamental para compreender o alcance da decisão do TJSP e suas implicações para casos semelhantes.
Ademais, a decisão reforça o entendimento doutrinário de que a responsabilidade objetiva do Estado, no caso de atos comissivos, prescinde da demonstração de culpa ou dolo do agente público. Basta a comprovação do dano e do nexo causal entre a conduta estatal e o prejuízo sofrido pela vítima.
Outrossim, é importante destacar que o STJ vem entendendo que é possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica que a Lei nº 10.559/2002 (Lei da Anistia Política) prevê, conforme a Súmula 624 estabelece. Isso significa que as vítimas podem buscar reparação tanto na esfera administrativa quanto judicial, ampliando as possibilidades de compensação pelos danos sofridos.
O anistiado político que obteve, na via administrativa, a reparação econômica prevista na Lei nº 10.559/2002 (Lei de Anistia) não está impedido de pleitear, na esfera judicial, indenização por danos morais pelo mesmo episódio político. Inexiste vedação para a acumulação da reparação econômica com indenização por danos morais, porquanto se tratam de verbas indenizatórias com fundamentos e finalidades diversas: aquela visa à recomposição patrimonial (danos emergentes e lucros cessantes), ao passo que esta tem por escopo a tutela da integridade moral, expressão dos direitos da personalidade.
STJ. 1ª Turma. REsp 1485260-PR, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 5/4/2016 (Info 581).
Súmula 624-STJ: É possível cumular a indenização do dano moral com a reparação econômica da Lei nº 10.559/2002 (Lei da Anistia Política).
STJ. 1ª Seção. Aprovada em 12/12/2018, DJe 17/12/2018.
Súmula 647-STJ: São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar.
STJ. 1ª Seção. Aprovada em 10/03/2021.
Como o tema já caiu em concursos
CESPE - 2010 - AGU - Procurador Federal As ações de reparação de dano ajuizadas contra o Estado em decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar não se sujeitam a qualquer prazo prescricional. (Certo)
CESPE - 2013/PG-DF/Procurador No âmbito da responsabilidade civil do Estado, são imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o regime militar de exceção. (Certo)
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