Racismo recreativo

Racismo recreativo

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) condenou um escritório de advocacia a pagar R$ 50 mil a um advogado vítima de racismo recreativo. Para o colegiado, o racismo disfarçado de humor viola a dignidade do trabalhador, atraindo o dever de reparação.

A vítima conseguiu juntar prints de conversas do grupo de trabalho, onde um dos empregadores, sócio do escritório, fazia referência a seu “cabelo ruim”, associando sua imagem, ainda, à de “maconheiro” e “traficante”.

Uma testemunha do ofendido afirmou ter visto o sócio e outros funcionários do escritório fazendo brincadeiras com a cor da pele do colega.

O escritório rebateu as alegações. Argumentou que as conversas não tinham caráter institucional, e que a própria vítima fazia comentários engraçados no grupo e que estava satisfeito com o convívio com os colegas. Testemunha do escritório confirmou que ela própria chamava o reclamante de “negão”.

A juíza trabalhista de 1º grau entendeu estar configurado o racismo recreativo, e condenou o escritório em R$ 109,3 mil. O TRT-2 manteve a condenação. Porém, considerando a condição da vítima, do agressor, a extensão do dano e o caráter pedagógico da medida, reduziu a indenização para R$ 50 mil.

Segundo a desembargadora relatora, Soraya Lambert, a conduta “exige, desta Justiça Especializada, reprimenda adequada a fim de se coibir tais condutas no ambiente de trabalho”.

Protocolo de Julgamento com Perspectiva Interseccional de Raça

A justiça trabalhista tem aplicado condenações relacionadas ao racismo recreativo no ambiental de trabalho, utilizando como fundamento, também, o protocolo de julgamento com perspectiva interseccional de raça.

Referido Protocolo, instituído pelo CNJ, se traduz como uma iniciativa que visa orientar a magistratura brasileira, assegurando decisões judiciais justas, iguais e sensíveis às questões raciais, e reconhecendo as particularidades dos grupos histórica e racialmente discriminados.

O Protocolo é uma iniciativa alinhada às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que já reconheceu que a questão racial deve ser considerada nos julgamentos dos processos.

A Resolução CNJ Nº 598, de 22 de novembro de 2024, estabelece diretrizes para adoção de Perspectiva Racial nos julgamentos em todo o Poder Judiciário.

A observância do protocolo é obrigatória no Poder Judiciário brasileiro e traz uma série de recomendações voltadas para a atuação de magistrados, a fim de que as questões raciais sejam incorporadas e levadas em consideração na prestação jurisdicional.

Abrangência

De acordo com a Resolução, os tribunais, em colaboração com as escolas da magistratura, promoverão cursos de formação inicial e continuada que incluam, obrigatoriamente, conteúdos relativos aos direitos humanos, gênero, raça e etnia, conforme as diretrizes previstas no Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, os quais deverão ser disponibilizados com periodicidade mínima anual.

Característica importante do documento é a ênfase na necessidade de que as decisões judiciais, de fato, reconheçam as particularidades de grupos historicamente discriminados em razão da cor da pele.

As recomendações do protocolo abrangem a área trabalhista (enfrentamento do racismo no ambiente de trabalho, discriminação e trabalho escravo, particularidades do trabalho doméstico etc.), além de diversas áreas, como direito de família (adoção, guarda e pensão alimentícia, por exemplo), infância e juventude (impactos da discriminação racial entre crianças e adolescentes), criminal (medidas para combater o racismo na persecução penal), e eleitoral (propostas para garantir igualdade racial na representatividade política).

Racismo recreativo

Mas o que vem a ser o chamado racismo recreativo? Quais suas implicações? É o que veremos a partir de agora.

Racismo recreativo

O advogado Adilson Moreira, doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, e autor do livro “Racismo Recreativo”, foi pioneiro no assunto aqui no Brasil, e define o racismo recreativo como “um conjunto de práticas sociais que operam por meio do uso estratégico do humor hostil, do humor racista”. Completa o especialista:

“Essas práticas englobam brincadeiras, piadas, mensagens e imagens que têm como objetivo principal promover a degradação moral de minorias raciais... Uma análise do conteúdo de piadas e brincadeiras racistas demonstra que seu conteúdo reproduzem uma série de estereótipos raciais baseados na suposta inferioridade moral, intelectual, estética, biológica, cultural de minorias raciais”.

Especialistas apontam quatro objetivos principais do racismo recreativo:

  • Produzir gratificação psicológica para pessoas brancas;
  • Reproduzir a ideia de que minorias raciais não são atores sociais competentes;
  • Permitir que pessoas brancas expressem hostilidade contra membros de minorias raciais; e
  • Permitir que as pessoas brancas mantenham uma imagem social positiva.

Injúria

Imperioso diferenciar a injúria simples da injúria racial.

A diferença entre injúria simples e injúria racial é que a injúria simples é uma ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém, por meio de palavras, gestos ou outros meios que expressem desprezo, menosprezo ou desrespeito, enquanto a injúria racial é uma ofensa à honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.

A injúria racial é considerada um crime contra a igualdade, e não mais contra a honra de uma pessoa. Desde janeiro de 2023 (Lei nº 14.532/2023), no Brasil, o racismo e a injúria racial recebem tratamento legal similar.

A Lei nº 7.716/89 define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. O artigo 2º-A trata da injúria racial:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.    

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.      

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.

...

Art. 20-B. Os crimes previstos nos arts. 2º-A e 20 desta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando praticados por funcionário público, conforme definição prevista no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. 

Já o artigo 140, do Código Penal, trata da injúria simples:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena:

I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;

II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.

§ 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:        

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

A Lei nº 7.716/89 é conhecida como a Lei do Crime Racial, pois ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Já a Lei nº 14.532/2023 equiparou a injúria racial ao crime de racismo, alterando a Lei do Crime Racial e o Código Penal para tipificar como racismo a injúria racial. A mudança aprofunda a ação de combate ao racismo, criando elementos para interpretação dos contextos e evidenciando algumas modalidades de racismo que não eram evidentes.

O Brasil sofre desde a sua fundação com o racismo, em especial no período de vigência da escravidão, que foi abolida oficialmente em 13 de maio de 1888, quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea.

Mas os efeitos nefastos da discriminação racial em nosso país se arrastam até hoje. Isso motiva e reforça a necessidade da luta contra essa prática que insiste em nos envergonhar, e que acaba se consolidando como um racismo estrutural.

O que é o racismo estrutural? Vejamos:

O racismo estrutural consiste em uma cultura enraizada de discriminação racial por toda a sociedade, relegando os negros a uma situação de inferioridade social, econômica, política. Ou seja, é o racismo que está impregnado em todas as estruturas da sociedade, tais como instituições, consciente coletivo, arte, academia, esporte. O racismo estrutural não se manifesta, necessariamente, através de atos isolados de discriminação ou de preconceito, mas decorre de um processo histórico discriminatório que é alimentado pela falta de políticas públicas voltadas a inclusão de pessoas negras no protagonismo social.

Essa luta contra o racismo se intensificou após a Constituição Federal de 1988, quando foi incluído o crime de racismo como inafiançável e imprescritível.

CF/88

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

...

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

...

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Racismo reverso

Em decisão tomada pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em fevereiro de 2025, a Corte concedeu habeas corpus para anular um processo por injúria racial movido contra um homem negro que teria ofendido um cidadão branco italiano.

O STJ, portanto, afastou a tese do chamado racismo reverso.

Racismo reverso configura-se por atos discriminatórios praticados por minorias étnicas ou sociais contra uma maioria (branca, por exemplo).

O entendimento consolidado é o de que a discriminação contra pessoas brancas, diante da ausência de histórico de discriminação, não se configura como racismo nos termos da Lei nº 7.716/1989. Isso porque o racismo implica uma relação de poder e dominação, que não se verifica em situações em que indivíduos brancos alegam discriminação.

O STJ afastou a possibilidade do chamado racismo reverso. Assim, a Corte determinou que a injúria racial não se configura em ofensas dirigidas a pessoas brancas exclusivamente por sua condição racial.

Fundamentos para afastar a tese do racismo reverso:

1º) O crime de injúria racial foi pensado para proteger grupos minoritários historicamente discriminados;

2º) O racismo estrutural se apresenta em um contexto de hierarquia racial imposta por grupos dominantes;

3º) O conceito de “grupos minoritários” não se refere à raça branca, mas sim à representatividade nos espaços de poder e ao acesso ao exercício pleno da cidadania.

Conclusão

Que o episódio nos sirva de lição para não tolerarmos mais gestos, piadas, olhares ou condutas, que, mesmo sem percebermos de forma consciente, sejam discriminatórios, vexatórios ou humilhantes contra quem quer que seja.

O tema não poderia ser mais atual, e é uma ótima pedida para provas discursivas de direito constitucional, direitos humanos e direito penal. Fiquem atentos!


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