* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão do STJ
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão unânime que reconheceu uma união estável homoafetiva post mortem e admitiu a relativização do requisito da publicidade em virtude de um contexto social discriminatório.
O caso foi relatado pela ministra Nancy Andrighi, e envolvia a validade da união estável entre duas mulheres, uma delas falecida. O casal manteve uma convivência por mais de 30 anos no interior de Goiás.
O reconhecimento da união havia sido negado na origem sob o argumento da ausência de publicidade do relacionamento.
A ministra Nancy Andrighi destacou que a exigência do requisito de publicidade deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da liberdade individual.
Andrighi ressaltou que negar o reconhecimento pela falta de publicidade significaria “invisibilizar uma camada da sociedade já estigmatizada, que muitas vezes recorre à discrição como forma de sobrevivência”.
No seu voto, ela afirmou que é possível relativizar a publicidade quando comprovada a convivência contínua, duradoura e com comunhão de vida e interesses, conforme o artigo 1.723 do Código Civil (CC).
CC Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável.
O colegiado consolidou a orientação do STJ de ampliar a proteção jurídica a relações afetivas marcadas pela discrição imposta por contextos sociais ou culturais.
O advogado André de Almeida Dafico Ramos, que atuou no caso, explicou que a decisão não dispensou a caracterização do requisito legal da publicidade, mas reafirmou sua importância jurídica, interpretando-a em harmonia com os direitos constitucionais à intimidade e à privacidade.
Essa interpretação é crucial, especialmente em relações homoafetivas, onde a publicidade da relação pode expor o casal a situações de extrema vulnerabilidade ou, em casos extremos, à violência.
Direito das minorias
Para o advogado, o julgamento representa um marco significativo na defesa do direito das minorias. A decisão permite que a interpretação do requisito legal oriente-se por um olhar humanizado, sensível às especificidades da vida real e às estruturas sociais que impõem o silêncio a muitas relações.
Ela reconhece que não se deve avaliar a publicidade por um padrão abstrato de exposição social, mas por uma avaliação concreta que considere os motivos que levaram à discrição, como o medo, a ameaça e a violência simbólica e material decorrentes da homofobia.
A decisão concretiza a aplicação do Direito que transcende a “letra fria da Lei” e resgata sua função de promover justiça com humanidade. O advogado pontuou que exigir publicidade ampla ignora a realidade homofóbica presente na sociedade e reflete a manutenção de estruturas do conservadorismo heterossexual normativo.
Trata-se de uma vitória civilizatória, que reafirma que o Direito não pode exigir coragem onde a sociedade impõe medo.
Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões (IBDFAM), considerou a decisão inovadora e extremamente relevante por consagrar os princípios constitucionais da dignidade, isonomia e liberdade individual.
Ele explicou que a decisão relativiza a publicidade, um dos requisitos do artigo 1.723 do Código Civil para o reconhecimento de uma união estável. O jurista observou que relações homoafetivas eram mantidas com maior discrição devido à discriminação.
Ele citou dados do Censo, indicando que, apesar do reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, o número de casais homoafetivos constatado em 2010 era de 58 mil, saltando para 480 mil em 2022 — um crescimento de oito vezes.
Rolf acredita que o cenário tende a mudar ainda mais. É possível que haja um aumento exponencial da publicidade desses relacionamentos e uma diminuição da necessidade de discrição, à medida que os casais circulam livremente em lugares públicos, exercendo a liberdade de amar.
Análise jurídica
União estável
O código civil de 2002 trata da matéria, em seus artigos 1.723 a 1.727. Tais dispositivos ressaltam que as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Nos termos do CC, aplica-se às relações patrimoniais da união estável, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito entre os companheiros.
Podemos, de forma resumida, elencar 3 requisitos necessários para a configuração da união estável:
1º) Convivência pública, contínua e duradoura;
2º) Intuito de constituir família (intuitu familiae); e
3º) Comprometimento em ficar juntos por tempo indeterminado.
Mudanças sociais
Ocorre que, mesmo com avanços, o código civil ainda não foi capaz de assimilar as mudanças sociais relacionadas aos relacionamentos homoafetivos, haja vista que previu a união estável com aplicação apenas para relacionamentos entre homem e mulher.
Esse papel de captar as mutações sociais e regular normativamente situações novas coube à doutrina e à jurisprudência.

Podemos citar, à título de exemplo, o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, pela Suprema Corte. Em ambas, reconheceu-se, por unanimidade, a união homoafetiva como entidade familiar, sujeita às mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva.
Inclusive, as decisões paradigmáticas do STF (ADPF 132 e ADI 4277) renderam o recebimento de um certificado, pela UNESCO. As decisões foram inscritas no Registro Nacional do Brasil como patrimônio documental.
A postura da Suprema Corte foi considerada como essencial para a consolidação dos direitos alcançados no país e o compromisso do Estado brasileiro de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outras formas de discriminação, como prevê o inciso IV do art. 3º da Constituição da República.
A jurisprudência, comprovando seu caráter vanguardista, já reconheceu, inclusive, a união estável virtual.
Mas o que vem a ser essa modalidade de união estável virtual?
União estável virtual: relacionamento entre duas pessoas, desenvolvido por meios virtuais, como redes sociais, aplicativos de mensagens e videoconferências, que se expressa na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família
Importante ressaltar que os requisitos da união estável virtual são os mesmos da união estável convencional: união pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família.
E será imprescindível, para sua comprovação, um conjunto probatório farto, composto de trocas de mensagens, vídeos, fotos, documentos, prints.
Da mesma forma que na união tradicional, os direitos e deveres dos companheiros virtuais são os mesmos voltados à partilha de bens, à pensão alimentícia, ao direito de herança e a outros direitos previstos no Codex Civil.
União estável x contrato de namoro
Importante não confundir união estável com contrato de namoro. São institutos diferentes.
O Brasil tem experimentado, nos últimos anos, um aumento significativo na adoção do contrato de namoro. Isso aconteceu, principalmente, depois da revelação de sua utilização pelo casal Endrick, jogador da seleção brasileiro, e sua namorada, a influenciadora Gabriely Miranda.
O contrato de namoro tem servido, principalmente, para formalizar que a relação afetiva entre os namorados não tem por objetivo constituir família, não tem por objetivo a união estável. Por isso que a utilização desse instrumento tem sido uma alternativa ao contrato de união estável.
O ponto diferenciador do namoro para a união estável é o objetivo de constituir família através de uma convivência pública, contínua e duradoura.
Conclusão
Em resumo, o Superior Tribunal de Justiça acabou relativizando o requisito da publicidade na união estável homoafetiva, com o fim de adequar o instituto ao contexto de violência e preconceito que se observa em nosso país.
Ótimo tema para provas de direito civil.
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