O crime de aborto e a questão da ilicitude da prova decorrente da quebra de sigilo profissional

O crime de aborto e a questão da ilicitude da prova decorrente da quebra de sigilo profissional

Introdução

Em 14 de março de 2023, a 6ª Turma do STJ trancou uma ação penal contra uma gestante acusada de aborto, declarando a nulidade das provas obtidas ilegalmente.

O médico que atendeu a paciente, violando o sigilo profissional, forneceu informações e documentos à polícia, configurando assim prova ilícita.

O relator, ministro Sebastião Reis Júnior, destacou que o médico, como confidente necessário, não poderia depor ou revelar segredos profissionais.

A defesa alegou então quebra de sigilo e incompatibilidade constitucional da criminalização do aborto.

O STJ concedeu habeas corpus, trancou a ação penal e encaminhou os autos às Autoridades Públicas para as medidas pertinentes. Os ministros criticaram erros do Ministério Público e do Judiciário no caso.

Pois bem, antes de entrarmos no estudo do julgado em si sobre a obtenção das provas nesse caso específico, é válida uma análise acerca dos artigos 124 do Código Penal e 207 do Código de Processo Penal.

Análise do art. 124 do Código Penal: provocação de aborto

Rege o artigo 124 do Código Penal:

"Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem o provoque: Pena - reclusão, de três a seis anos."

Doutrina – art. 124 do Código Penal

O crime tipificado no art. 124 do Código Penal refere-se ao aborto provocado pela própria gestante ou com seu consentimento.

A doutrina penal brasileira, em especial os ensinamentos de Nucci (2017), destaca a proteção da vida intrauterina como bem jurídico tutelado pela norma penal.

Prova

Nucci enfatiza que a legislação brasileira adota uma postura rigorosa em relação ao aborto, refletindo um compromisso com a preservação da vida desde a concepção, salvo nas hipóteses excepcionais previstas em lei (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017).

Ademais, o saudoso Professor Damásio de Jesus (2016) complementa essa visão ao afirmar que a criminalização do aborto pela gestante tem como objetivo desestimular a prática, considerando-se a vida do nascituro como bem maior a ser protegido.

Ele argumenta que o legislador buscou equilibrar a autonomia da mulher com a proteção do feto, impondo penas mais severas em casos de abortos provocados (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: Parte Especial. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016).

Jurisprudência – art. 124 do Código Penal

Em seguida, a jurisprudência dos tribunais brasileiros também reflete o rigor na aplicação do art. 124 do Código Penal.

No julgamento do Habeas Corpus nº 124.306/SP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou a constitucionalidade da criminalização do aborto autoinduzido, destacando que a proteção à vida intrauterina é um dever do Estado, conforme preceitos constitucionais e legais.

A decisão enfatizou que, embora se reconheça a complexidade do tema, a legislação atual reflete uma escolha política legítima do legislador, pautada na defesa da vida (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 124.306/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 28 jun. 2016).

Outro exemplo significativo é o Acórdão no Recurso em Sentido Estrito nº 70083788951 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que se manteve a condenação de uma mulher que consentiu que outrem provocasse seu aborto.

Em síntese, o tribunal destacou a importância de se coibir práticas abortivas ilegais, reafirmando a necessidade de proteger a vida intrauterina como bem jurídico de alta relevância (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso em Sentido Estrito nº 70083788951, Rel. Des. Manuel José Martinez Lucas, 2ª Câmara Criminal, julgado em 26 mar. 2020).

Análise do art. 207 do Código de Processo Penal

O artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro estabelece uma importante exceção ao dever de testemunhar em processos judiciais, protegendo aqueles que, em razão de sua função, ministério, ofício ou profissão, estão obrigados a guardar segredo.

Esta análise visa explorar as nuances desse dispositivo, discutindo sua aplicação prática e fundamentação jurídica com base em doutrina e jurisprudência. Assim, rege o art. 207 do Código de Processo Penal:

Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.

Interpretação doutrinária – art. 207 do Código de Processo Penal

Segundo Tourinho Filho (2010), a norma prevista no art. 207 do Código de Processo Penal busca equilibrar o direito à obtenção de provas no processo penal com o respeito ao sigilo profissional.

Essa proteção é essencial para preservar a confiança inerente às relações profissionais, como entre advogados e clientes, médicos e pacientes, jornalistas e suas fontes, dentre outros.

Nucci (2019) argumenta que a dispensa do sigilo só pode ser feita pela parte interessada, o que implica uma manifestação expressa e inequívoca de quem detém o direito à confidencialidade. Essa disposição evita, portanto, que a violação do sigilo ocorra contra a vontade de quem está protegido pela confidencialidade.

Jurisprudência sobre o art. 207 do Código de Processo Penal

A jurisprudência brasileira tem reiterado a importância do sigilo profissional como um baluarte das relações de confiança.

De fato, no julgamento do Habeas Corpus 91.952/SP, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou que a quebra do sigilo profissional somente pode ser autorizada pelo próprio titular do direito, reforçando a autonomia individual e a inviolabilidade das relações profissionais.

Em outro caso, o Recurso Especial 1.183.211/RS, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que a violação do sigilo profissional configura abuso de poder e pode resultar na nulidade da prova obtida, caso (esta prova) seja utilizada sem a devida autorização do detentor do segredo.

Aplicação prática do art. 207 do Código de Processo Penal

Nesse sentido, a aplicação do art. 207 do Código de Processo Penal exige uma análise cuidadosa do contexto em que o sigilo se insere.

Em casos de profissionais como advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pode atuar como guardiã da ética profissional, assegurando que o sigilo seja mantido. No âmbito médico, o Conselho Federal de Medicina (CFM) desempenha papel semelhante, garantindo que os pacientes confiem na confidencialidade de suas informações.

Análise do Habeas Corpus nº 783927 – MG (2022/0358955-9)

No dia 14 de março de 2023, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, pelo trancamento de uma ação penal que investigava o crime de aborto provocado pela própria gestante.

O colegiado concluiu pela nulidade das provas obtidas, em virtude de violação de sigilo profissional, pois foram fornecidas pelo médico que atendeu a paciente, infringindo a proibição de revelar segredo em razão de sua profissão, conforme previsto no artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP).

Desenvolvimento do caso

Consta nos autos que a paciente, com aproximadamente 16 semanas de gestação, procurou atendimento médico devido a um mal-estar. O médico que a atendeu suspeitou de ingestão de medicamento abortivo e, por isso, acionou a Polícia Militar.

Posteriormente, o prontuário médico da paciente foi encaminhado à autoridade policial para comprovação das suspeitas, e o médico foi arrolado como testemunha.

O Ministério Público, com base nas informações fornecidas pelo médico, propôs ação penal contra a gestante, culminando na sua pronúncia pelo crime previsto no artigo 124 do Código Penal.

Pedido de “Habeas Corpus”

Dessa forma, a defesa da paciente impetrou habeas corpus, sustentando a tese de quebra de sigilo profissional e apontando a incompatibilidade entre a criminalização do aborto e os princípios constitucionais, requerendo a declaração de não recepção do artigo 124 do Código Penal pela Constituição Federal de 1988.

A decisão da 6ª Turma do STJ

Ao relatar o caso, o ministro Sebastião Reis Júnior destacou que, conforme o artigo 207 do CPP, pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo estão proibidas de depor, salvo se desobrigadas pela parte interessada.

O relator ressaltou que o médico se enquadra nesta proibição, sendo confidente necessário, e, portanto, impedido de revelar segredo profissional e de atuar como testemunha no caso.

Concluiu que a instauração do inquérito policial foi indevidamente provocada pelo médico, que, além de ter sido arrolado como testemunha de forma irregular, encaminhou o prontuário médico da paciente, contaminando assim a ação penal com provas obtidas ilicitamente.

Finalmente, o relator votou pela concessão do habeas corpus, determinando o trancamento da ação penal. Ademais, ordenou que os autos fossem encaminhados ao Conselho Regional de Medicina e ao Ministério Público local para as medidas cabíveis quanto à conduta do médico.

Por conseguinte, o colegiado acompanhou, por unanimidade, o voto do relator.

Conclusão acerca do Julgado do STJ

A análise do art. 124 do Código Penal, à luz da doutrina e da jurisprudência, revela então uma interpretação consistente com a proteção à vida desde a concepção, valorizando o bem jurídico vida intrauterina.

A legislação brasileira, embora ocorram críticas e debates acalorados, mantém uma postura restritiva em relação ao aborto auto-induzido ou consentido, refletindo um compromisso histórico e cultural com a defesa da vida.

Com efeito, a doutrina penal majoritária e as decisões dos tribunais superiores reforçam essa orientação, destacando a necessidade de se equilibrar a autonomia da mulher com a proteção do nascituro.

Por outro lado, o art. 207 do CPP é uma norma de extrema relevância para a preservação do sigilo profissional, protegendo a confiança depositada em certas relações e garantindo a integridade das informações confidenciais.

Então, a dispensa do sigilo, quando ocorre, deve ser expressa e inequívoca, assegurando que o direito à confidencialidade seja respeitado conforme previsto pela legislação e pela jurisprudência.

Ao final do julgamento, os ministros criticaram a condução do caso pelo Judiciário. O ministro Rogerio Schietti destacou que todos os envolvidos erraram, incluindo o Ministério Público e o juiz que permitiram o depoimento do médico.

Posteriormente, Sebastião Reis Júnior endossou as críticas, apontando que o Judiciário, ao reclamar da quantidade de processos, perpetua erros que alimentam essa situação.

Por fim, diante da violação do sigilo profissional e da contaminação da ação penal com provas ilícitas, o STJ concedeu o habeas corpus e determinou o trancamento da ação penal, encaminhando os autos às autoridades competentes para as providências cabíveis.

Referências acerca da análise do art. 124 do Código Penal

  1. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: Parte Especial. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
  2. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
  3. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 124.306/SP. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 28 jun. 2016.
  4. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Recurso em Sentido Estrito nº 70083788951. Rel. Des. Manuel José Martinez Lucas, 2ª Câmara Criminal, julgado em 26 mar. 2020.

Referências sobre o art. 207 do Código de Processo Penal

  1. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.
  2. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
  3. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.183.211/RS. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 13 abr. 2010.
  4. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 91.952/SP. Relator: Min. Celso de Mello. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 15 set. 2009.

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