Um recente projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados, trará uma alteração relevantíssima.
Trata-se do Projeto de Lei (PL) 917/24 que altera o Código de Processo Civil (CPC) para prever o direito à gratuidade da justiça aos pacientes em tratamento de câncer, pessoas com deficiência física ou com transtorno do espectro autista (TEA).
Bom, vamos entender de perto, o que seria essa mudança e também sobre o instituto da gratuidade da justiça.
Qual é a alteração legal proposta?
Pois bem, a proposta prevê uma inclusão no CPC do seguinte dispositivo:
“Art. 98. [...]
Da Gratuidade da Justiça
§ 9º Terá direito à gratuidade da justiça os pacientes em tratamento do câncer, deficientes físicos ou pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) [...]”
Qual é o fundamento disso?
“Ao enfrentar condições de saúde desafiadoras, tais como o câncer, ou viver com uma deficiência física ou transtorno do espectro autista, essas pessoas já lidam diariamente com obstáculos significativos”, afirma o deputado Luciano Galego (PL-MA) que é o relator do projeto.
“A necessidade de arcar com custas judiciais pode representar mais um entrave injusto em suas vidas, dificultando o acesso à justiça e à proteção de seus direitos”, acrescenta.
Como funciona a gratuidade da justiça hoje?
Primeiramente, é importante fazer uma distinção relevante.
Isto porque, a CF/88 prevê a garantia da assistência jurídica integral e gratuita em seu art. 5º, LXXIV: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Entretanto, esse dispositivo constitucional consagra, na verdade, duas garantias:
I – Assistência jurídica integral e gratuita | II – Gratuidade da justiça (Assistência Judiciária Gratuita – AJG) |
Fornecimento pelo Estado de orientação e defesa jurídica, de forma integral e gratuita, a ser prestada pela Defensoria Pública, em todos os graus, aos necessitados (art. 134 da CF). Regulada pela Lei Complementar 80/94. | Isenção das despesas que forem necessárias para que a pessoa necessitada possa defender seus interesses em um processo judicial. Era regulada pela Lei nº 1.060/50, mas o CPC/2015 passou a tratar sobre o tema, revogando quase toda essa lei. |
Quem tem direito à gratuidade da justiça?
Tem direito à gratuidade da justiça a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios (art. 98 do CPC/2015).
Quem está abrangido por ela?
• pessoas físicas (brasileiras ou estrangeiras);
• pessoas jurídicas (brasileiras ou estrangeiras).
Nesse sentido, veja algumas questões de concurso sobre o tema:
(Procurador Jurídico - Câmara de Nova Benécia/ES - 2018 - Gualimp) Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida por pessoa natural. (Correta)
(Analista Judiciário - TRF2R - 2017 - Consulplan) A gratuidade de justiça poderá ser concedida à pessoa natural ou jurídica, nacional ou estrangeira, que comprove insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios, na forma da lei. (Correta)
(Defensor Público - DPE/AC - 2017 - Cespe) O benefício da gratuidade da justiça é destinado somente às pessoas naturais. (Incorreta)
(Promotor de Justiça - MPE/PI - 2019 - Cespe) O benefício da gratuidade de justiça não poderá ser concedido a estrangeiro não residente no Brasil. (Incorreta)
A pessoa beneficiada pela justiça gratuita está dispensada do pagamento de quais verbas?
A gratuidade da justiça compreende, vide art. 98 do CPC:
I - as taxas ou as custas judiciais; II - os selos postais; III - as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; IV - a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; V - as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais; VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; VII - o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; VIII - os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.
Cuidado, pois esse rol acima é muito explorado nas provas:
(Promotor de Justiça - MPE/SP - 2017) Abrange os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência de ato necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade do processo no qual o benefício tenha sido concedido. (Correta)
(Procurador do Estado - PGE/SE - 2017 - Cespe) Os emolumentos devidos a notário ou registrador em decorrência da prática de registro de ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial são alcançados pelo benefício da gratuidade de justiça que tenha sido concedido. (Correta)
(Técnico Médio da Defensoria Pública - DPE/RJ - 2019 - FGV) A gratuidade da justiça compreende, dentre outras, as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais. (Correta)
(Analista - TJ/MS - 2018 - PUC/PR) A gratuidade da justiça compreende as despesas com publicação na imprensa oficial, mas não dispensa a publicação em outros meios. (Incorreta)
É possível a dispensa parcial?
Sim! A gratuidade da justiça poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou pode consistir apenas na redução percentual das despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento (§ 5º do art. 98 do CPC/2015).
(Juiz Federal - TRF4R - 2016) O benefício da gratuidade da justiça pode ser concedido apenas parcialmente ou consistir na redução percentual das despesas processuais iniciais ou ainda no parcelamento dessas despesas e não afasta o dever de o beneficiário pagar as multas processuais que lhe sejam impostas. (Correta)
(Técnico Judiciário - TJM/SP - 2017 - Vunesp) A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais. (Correta)
É possível fazer o parcelamento do pagamento?
Sim!
A depender do caso concreto, o juiz poderá conceder ao requerente o direito de parcelar as despesas processuais que tiver de adiantar no curso do procedimento, conforme o § 6º do art. 98 do CPC/2015.
(Analista Judiciário - TJ/AL - 2018 - FGV) A gratuidade de justiça pode abarcar um, alguns ou todos os atos, ou consistir na redução percentual das despesas a cargo do beneficiário. (Correta)
Se eu tiver a gratuidade significa que eu não pago as despesas processuais e honorários advocatícios de sucumbência?
Não é bem assim. Mesmo sendo beneficiária da justiça gratuita, a pessoa terá que pagar as despesas processuais e os honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência (§ 2º do art. 98 do CPC/2015).
No entanto, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade.
Em outras palavras, em até 5 anos, o credor deverá demonstrar que o devedor passou a ter condições de custear tais despesas.
Passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário são consideradas extintas (§ 3º do art. 98 do CPC/2015).
Cuidado! É extremamente alta a incidência desse ponto específico nas provas de concurso:
(Juiz Federal - TRF2R - 2018) A gratuidade da justiça não compreende as obrigações decorrentes da sucumbência, que ficarão sob condição suspensiva. (Correta)
(Procurador Municipal - João Pessoa/PB - 2018 - Cespe) O pedido de gratuidade da justiça pode ser feito na inicial ou na contestação, porém, mesmo que deferido, não afastará das partes a responsabilidade pelos honorários advocatícios decorrentes da sucumbência. (Correta)
(Defensor Público - DPE/MG - 2019 - Fundep) A concessão de gratuidade, amparada em ampla prova de insuficiência de recursos, não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência. (Correta)
(Técnico da Defensoria Pública - DPE/RJ - 2019 - FGV) As obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade. (Correta)
(Analista - TCE/PR - 2016 - Cespe) Proposta a ação, o réu inadimplente, quando for eventualmente citado, poderá requerer gratuidade de justiça, mas a concessão dessa gratuidade não afastará definitivamente a responsabilidade do requerente quanto a despesas processuais e honorários advocatícios no processo. (Correta)
(Juiz Federal - TRF3R - 2018) Relativamente à gratuidade no processo civil, ela compreende, dentre outros, as taxas judiciais, os depósitos exigidos para interposição de recurso ou propositura de ação e, ainda, os honorários de perito e advocatícios, inclusive aqueles decorrentes da sucumbência. (Incorreta)
(Juiz do Trabalho - TST - 2017 - FCC) A concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes de sua sucumbência, que ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executados se, nos cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário. (Correta)
Multas processuais podem ser impostas ao beneficiário da justiça gratuita?
Sim!
Mesmo sendo beneficiária da justiça gratuita, a pessoa terá o dever de pagar, ao final, as multas processuais que lhe foram impostas (§ 4º do art. 98 do CPC/2015). Ex.: multa por litigância de má-fé. Nesse sentido:
(Procurador Legislativo - Câmara de Aracruz/ES - 2016 - Idecan) A gratuidade da justiça NÃO compreende multas processuais que lhe sejam impostas. (Correta)
Por fim, o juiz poderá conceder de ofício o benefício da assistência judiciária gratuita?
NÃO.
É vedada a concessão “ex officio” do benefício de assistência judiciária gratuita pelo magistrado. Assim, é indispensável que haja pedido expresso da parte (STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1740075/RJ, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 18/09/2018).
"A concessão de assistência judiciária gratuita está condicionada à afirmação de que a parte não possui meios de arcar com as custas do processo, podendo o magistrado determinar a comprovação do estado de hipossuficiência para deferir o pedido." (AgInt no AREsp 1815775/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJe 01/02/2022)
Qual é o momento em que se deve formular o pedido de justiça gratuita?
Normalmente, o pedido de justiça gratuita se faz na própria petição inicial (no caso do autor) ou na contestação (no caso do réu). No entanto, o certo é que o pedido de justiça gratuita pode ser formulado a qualquer tempo.
Assim, veja o que diz o § 1º do art. 99 do CPC/2015:
Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. § 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso. (...)
(Defensor Público Federal - DPU - 2017 - Cespe) Segundo a jurisprudência do STJ, o benefício da assistência judiciária gratuita gera efeitos ex nunc e, uma vez concedido, afasta a necessidade de renovação do pedido em cada instância. (Correta)
Quais as principais mudanças propostas pelo PL 917/2024?
O projeto então acrescenta o § 9º ao artigo 98 do CPC, estabelecendo três grupos com direito automático à gratuidade:
- Pacientes em tratamento de câncer;
- Pessoas com deficiência física;
- Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
No fim, podemos dizer que essa proposta reconhece as vulnerabilidades específicas destes grupos, considerando:
- Os custos elevados do tratamento oncológico;
- As barreiras sociais e econômicas enfrentadas por pessoas com deficiência;
- As necessidades especiais das pessoas com TEA no acesso à justiça.
Inclusive, o Tribunal de Justiça de São Paulo já possui entendimento favorável à concessão da gratuidade em casos similares:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. Gratuidade processual. Pessoa com câncer em tratamento. Demonstração dos gastos com medicamentos e tratamento. Benefício concedido. Decisão reformada. Recurso provido." (TJSP, AI 2016699-74.2021.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Dias Motta, 19ª Câmara de Direito Privado, DJe 18/03/2021)
Ufa, foi uma boa revisão!
Espero que você tenha entendido.
Referência bibliográfica
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É inadmissível o indeferimento automático do pedido de gratuidade da justiça apenas por figurar a parte no polo passivo em processo de execução. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/b6af2c9703f203a2794be03d443af2e3>. Acesso em: 19 jan 2025.
GALEGO, Luciano. PL 917/2024. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2398257&filename=PL%20917/2024>.
HAJE, Lara. Projeto concede gratuidade na justiça para pacientes em tratamento de câncer e pessoas com deficiência. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/1051701-projeto-concede-gratuidade-na-justica-para-pacientes-em-tratamento-do-cancer-e-pessoas-com-deficiencia>.
SOUZA, Murilo. Comissão aprova projeto que concede gratuidade na justiça para pacientes com câncer e pessoas com deficiência. Direito News. Disponível em: <https://www.direitonews.com.br/2025/01/comissao-aprova-projeto-concede-gratuidade-justica-pacientes-cancer-pessoas-deficiencia.html?m=1>.
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