Prescrição intercorrente e art. 882 do CC: a irrepetibilidade dos valores pagos

Prescrição intercorrente e art. 882 do CC: a irrepetibilidade dos valores pagos

De início, vamos comentar o seguinte julgado:

Prescrição intercorrente

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça proferiu recentemente decisão que trata questão delicada e muitas vezes mal compreendida na prática forense: os efeitos da prescrição intercorrente sobre valores já levantados judicialmente pelo credor.

Ou seja, o que acontece quando o débito é alcançado pela prescrição intercorrente?!

O caso

No julgamento do REsp 2.081.015-SP, ocorrido em novembro de 2025, a Quarta Turma, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, negou provimento a recurso que pretendia a devolução de quantias levantadas pelo exequente após o posterior reconhecimento da prescrição intercorrente.

Ora, o caso concreto revela situação que se repete cotidianamente nos tribunais brasileiros. O exequente havia obtido autorização judicial para levantar valores decorrentes de depósito judicial vinculado a arresto em execução de título extrajudicial fundada em cheques. Posteriormente, sobreveio o reconhecimento da prescrição intercorrente da pretensão executória.

O executado, então, passou a pleitear a devolução dos valores já levantados, sustentando que o levantamento não configuraria pagamento de dívida prescrita, mas mera liberação de valor constrito, que deveria retornar aos autos após extinta a execução.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, contudo, afastou essa pretensão, fundamentando que a prescrição atinge apenas o direito de ação, sem eliminar a obrigação subjacente, que se converte em obrigação natural.

Destarte, a devolução dos valores violaria o artigo 882 do Código Civil, que expressamente veda a repetição do que se pagou para solver dívida prescrita ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

Perceba que a compreensão adequada dessa matéria exige que se distinga com clareza os efeitos da prescrição sobre a obrigação e sobre a pretensão. 

Prescrição

A prescrição, conforme construção doutrinária e jurisprudencial consolidada, não extingue a obrigação em si mesma, mas tão somente a possibilidade de exigi-la coativamente pela via judicial

Veja que a dívida continua existindo no plano material, apenas perdendo sua exigibilidade processual. Converte-se, assim, naquilo que a doutrina civilista classifica como obrigação natural.

Com efeito, as obrigações naturais constituem categoria peculiar do direito das obrigações, caracterizando-se por serem desprovidas de exigibilidade jurídica, mas dotadas de validade moral e social.

Logo, o credor não pode compelir judicialmente o devedor ao pagamento, mas se este pagar espontaneamente, o pagamento é plenamente válido e irrepetível.

Assim, essa é precisamente a lógica subjacente ao artigo 882 do Código Civil, que estabelece não ser possível repetir o que se pagou para solver dívida prescrita ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.

Nesse sentido, o acórdão recorrido foi categórico ao afirmar que “o reconhecimento da prescrição da ação originária não impede a cobrança da dívida, ou seu pagamento, por outros meios. Somente o direito de ação é atingido”.

Assim, essa assertiva reflete entendimento consolidado na doutrina civilista brasileira, que distingue rigorosamente os planos da existência, validade e eficácia da obrigação. A prescrição opera no plano da eficácia processual, não no plano da existência ou validade da relação obrigacional.

Natureza jurídica

Perceba, a questão nuclear enfrentada pelo STJ residia em definir se o levantamento de depósito judicial, mediante autorização jurisdicional, caracterizaria pagamento voluntário de obrigação natural ou mera liberação de valor constrito que deveria retornar após o reconhecimento da prescrição.

O Ministro Raul Araújo foi preciso ao concluir que “o levantamento autorizado judicialmente configura pagamento válido de obrigação natural, mesmo em cenário de prescrição intercorrente, sendo vedada a repetição do indébito, sob pena de violação ao art. 882 do Código Civil”.

Observe que essa conclusão não decorre de formalismo processual vazio, mas da própria natureza jurídica do pagamento e da obrigação natural.

Quando o juízo autoriza o levantamento dos valores pelo credor, há verdadeiro pagamento da obrigação, ainda que realizado mediante recursos depositados judicialmente. Não se trata de simples movimentação patrimonial processual, mas de efetiva satisfação do crédito.

Isto é, o fato de se ter reconhecido a prescrição posteriormente não desnatura esse pagamento, precisamente porque a obrigação prescrita continua sendo obrigação válida, apenas convertida em obrigação natural.

Precedentes

Inclusive, a fundamentação do acórdão encontra respaldo em precedentes da própria Corte Superior, como destacado pelo relator. No AgInt no REsp 1.705.750-RS, julgado pela Segunda Turma em maio de 2025, o Ministro Afrânio Vilela enfrentou situação análoga envolvendo pagamento espontâneo de multa administrativa cujo processo foi posteriormente atingido por prescrição intercorrente.

Naquela ocasião, o STJ foi taxativo: aquele que paga obrigação judicialmente inexigível não tem direito à repetição do indébito, aplicando-se diretamente o artigo 882 do Código Civil.

Outro precedente significativo mencionado na decisão envolve depósito efetuado pela executada com reconhecimento expresso de que se tratava de valor incontroverso.

O STJ assentou que, havendo manifestação da parte no sentido de que o depósito constituía pagamento, sua repetição violaria não apenas o artigo 882 do Código Civil, mas também o princípio da boa-fé objetiva, especialmente a vedação ao comportamento contraditório.

Coerência do sistema civil brasileiro

Do ponto de vista prático, essa orientação jurisprudencial estabelece diretriz fundamental para o processo executivo.

Quando o credor obtém autorização judicial para levantamento de valores depositados, ainda que pendente discussão sobre prescrição ou outras questões de mérito, assume o risco de que eventual reconhecimento posterior da prescrição não ensejará a devolução das quantias. Isso porque o levantamento configura pagamento válido de obrigação que, embora prescrita, persiste como obrigação natural.

Perceba, ademais, que essa solução jurídica resguarda a coerência do sistema civil brasileiro e evita situações de enriquecimento sem causa.

Se fosse possível ao devedor reaver valores já pagos para solver dívida prescrita, estar-se-ia permitindo que se beneficiasse duplamente: primeiro, da prescrição que extingue sua obrigação processual; segundo, da recuperação de valores efetivamente devidos no plano material.

Tal resultado violaria frontalmente os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento ilícito, além de contrariar expressamente o artigo 882 do Código Civil.

Vale ressaltar que a decisão não impede, evidentemente, que o devedor busque demonstrar vícios no próprio levantamento dos valores, como ausência de autorização judicial válida, fraude ou erro. O que se veda é simplesmente a pretensão de devolução fundada exclusivamente no reconhecimento posterior da prescrição intercorrente, quando o levantamento ocorreu de forma regular e com autorização jurisdicional.

Logo:

Mesmo diante do reconhecimento da prescrição intercorrente, o pagamento de obrigação judicialmente inexigível não confere direito à repetição do indébito.

REsp 2.081.015-SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 24/11/2025, DJEN 3/12/2025.

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