Premeditação e dosimetria da pena: o novo entendimento do STJ em recurso repetitivo

Premeditação e dosimetria da pena: o novo entendimento do STJ em recurso repetitivo

Prof. Gustavo Cordeiro

Em maio de 2025, o Superior Tribunal de Justiça fixou importante tese em recurso repetitivo sobre um tema que há tempos divide a doutrina e jurisprudência: pode a premeditação ser valorada negativamente na dosimetria da pena? A resposta, agora vinculante para todos os tribunais do país, é sim – mas com importantes ressalvas que merecem análise detida.

O caso paradigma: quando a confiança facilita o crime

O caso que originou o Tema 1318 ilustra perfeitamente a relevância da questão. Carlos, amigo próximo da família, aproveitou-se da confiança depositada nele para praticar estupro de vulnerável contra Beatriz, filha de 12 anos de seu amigo Roberto. O crime não foi fruto do impulso, mas de meticuloso planejamento: Carlos estudou a rotina familiar, identificou o melhor momento para agir, obteve cópia da chave da residência e executou o plano quando sabia que a criança estaria sozinha.

Na sentença condenatória, o magistrado valorou negativamente a culpabilidade, aumentando a pena-base justamente pela premeditação demonstrada. A defesa recorreu argumentando bis in idem – afinal, o Código Penal não prevê expressamente a premeditação como circunstância judicial ou agravante. A controvérsia chegou ao STJ, que decidiu pacificar o entendimento.

A tese fixada: premeditação como circunstância judicial

A Terceira Seção do STJ, nos REsp 2.174.028-AL e REsp 2.174.008-AL, relatados pelo Ministro Otávio de Almeida Toledo, estabeleceu duas premissas fundamentais:

Primeira: a premeditação autoriza a valoração negativa da culpabilidade prevista no artigo 59 do Código Penal, desde que não constitua elementar do tipo, não seja ínsita ao crime nem pressuposto para incidência de agravante ou qualificadora.

Segunda: a exasperação da pena-base pela premeditação não é automática, exigindo fundamentação específica sobre a maior reprovabilidade da conduta no caso concreto.

O fundamento teórico: culpabilidade como juízo de reprovação

A culpabilidade, na dosimetria da pena, não se confunde com a culpabilidade como elemento do crime. Enquanto esta verifica se o agente é imputável e tinha consciência da ilicitude, aquela mensura o grau de reprovabilidade da conduta.

É nesse contexto que a premeditação ganha relevância. O crime premeditado revela maior determinação criminosa, reflexão sobre a prática delitiva e frieza na execução. O agente que planeja detalhadamente seu crime demonstra maior desprezo pelos valores protegidos pelo ordenamento jurídico do que aquele que age por impulso.

Como explicou o relator, “a premeditação evidencia que o agente teve tempo para refletir sobre a prática criminosa e, ainda assim, optou por executá-la, revelando maior grau de censurabilidade em sua conduta”.

Os limites da aplicação: quando não cabe a valoração

A decisão estabeleceu importantes limitações para evitar bis in idem. A premeditação não pode ser valorada negativamente quando:

1 – Constitui elementar do tipo penal. No homicídio qualificado por emboscada (art. 121, §2º, IV), por exemplo, a premeditação já está abarcada pela qualificadora, não podendo ser novamente considerada na pena-base.

2 – É ínsita ao crime. Delitos como estelionato ou falsificação pressupõem, por sua natureza, algum grau de planejamento. Valorar negativamente a premeditação nesses casos seria punir duplamente o mesmo fato.

3 – Configura pressuposto de agravante ou qualificadora. Se a premeditação já fundamenta o reconhecimento de uma agravante genérica ou qualificadora, não pode ser utilizada também na primeira fase da dosimetria.

A fundamentação concreta: o ônus argumentativo do julgador

O STJ foi categórico: não basta afirmar genericamente que houve premeditação. O magistrado deve demonstrar, com base em elementos concretos dos autos, como o planejamento do crime revela maior reprovabilidade da conduta.

Premeditação

No caso paradigma, o juiz apontou especificamente: o aproveitamento calculado da relação de confiança, o estudo prévio da rotina familiar, a obtenção fraudulenta da chave e a escolha deliberada do momento de maior vulnerabilidade da vítima. Essa fundamentação concreta atende à exigência estabelecida pelo STJ.

Outros exemplos de fundamentação adequada incluem: no homicídio, a compra antecipada da arma, o estudo dos hábitos da vítima, a escolha do local ermo; no roubo, o monitoramento prévio do estabelecimento, o recrutamento de comparsas, a divisão prévia de tarefas; no estelionato excepcional, a criação de documentos falsos sofisticados, o aluguel de imóvel para dar aparência de legitimidade, a construção de persona fictícia por meses.

A mera referência a “crime premeditado” ou “conduta planejada”, sem indicar os elementos fáticos que demonstram esse planejamento e sua relevância para maior censurabilidade, torna nula a valoração negativa por ausência de fundamentação idônea.

Harmonização com precedentes: STF e STJ convergentes

A decisão em recurso repetitivo consolida entendimento que já vinha sendo adotado tanto pelo STJ quanto pelo STF. A Quinta e Sexta Turmas do STJ há anos reconhecem que “a premeditação do crime justifica a majoração da pena pela culpabilidade” (AgRg no HC 598.140/PA) e que “a premeditação do delito é motivo apto a negativar a culpabilidade” (AgRg no AREsp 1.775.377/PB).

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, já havia afirmado no HC 126.292/SP que “a premeditação pode ser analisada na fixação da pena-base”. A convergência entre as Cortes superiores confere segurança jurídica à aplicação do instituto.

Implicações práticas: o que muda na dosimetria

Para a prática forense, a decisão traz importantes consequências. Promotores devem, já na denúncia, apontar elementos que demonstrem eventual premeditação, preparando o terreno para futura valoração na dosimetria. Não basta narrar o crime; é preciso destacar as circunstâncias que revelam planejamento.

Magistrados, por sua vez, precisam fundamentar concretamente por que a premeditação, naquele caso específico, revela maior reprovabilidade. Assim, a referência genérica ao planejamento não atende à exigência do STJ.

Advogados devem atentar para as hipóteses de exclusão. Se o crime naturalmente pressupõe planejamento ou se a premeditação já fundamenta qualificadora ou agravante, há espaço para arguir nulidade da valoração negativa na pena-base.

A política criminal subjacente

A decisão reflete clara opção de política criminal. Ao permitir que a premeditação majore a pena-base, o STJ reconhece que crimes planejados merecem resposta penal mais severa que delitos impulsivos. É mensagem do sistema de justiça: quanto maior a reflexão antes do crime, maior será a reprovação estatal.

Essa orientação se alinha com as teorias da pena que enfatizam a prevenção geral negativa. A punição mais severa do crime premeditado visa dissuadir potenciais infratores que cogitem planejar delitos. Afinal, se o custo-benefício do crime inclui pena maior pela premeditação, a equação se torna menos favorável ao criminoso.

Questões ainda em aberto

Apesar da clareza da tese fixada, algumas questões permanecem abertas. Como distinguir, na prática, quando a premeditação é ínsita ao crime? Todo estelionato pressupõe planejamento, mas haverá casos de planejamento excepcional que justifiquem a valoração negativa?

Outra questão: qual o grau de planejamento necessário? Basta demonstrar que o crime não foi impulsivo ou é preciso comprovar preparação elaborada? O STJ não estabeleceu critérios objetivos, deixando margem para construção jurisprudencial caso a caso.

Como o tema pode ser cobrado em concursos

A fixação da tese em recurso repetitivo torna o tema obrigatório para concursos públicos. Dessa forma, as bancas podem explorar a questão de diversas formas:

📖 Questões objetivas de aplicação direta: A banca pode apresentar situação em que o juiz valorou negativamente a premeditação e perguntar se a decisão está correta. Por exemplo: "Marcos planejou durante semanas um roubo a banco, estudando o sistema de segurança e os horários de movimento. Na dosimetria, o juiz valorou negativamente a culpabilidade pela premeditação. A decisão está correta?" A resposta seria não, pois crimes patrimoniais complexos como roubo a banco pressupõem planejamento.
‼️ Casos de bis in idem: Questões podem testar se o candidato identifica quando há dupla valoração. Exemplo clássico: homicídio qualificado por emboscada com premeditação valorada também na pena-base. O candidato deve reconhecer a nulidade.
⚖️ Fundamentação na sentença: Em provas discursivas ou orais, pode-se exigir que o candidato redija trecho de sentença valorando a premeditação. Será avaliado se indica elementos concretos (estudou a rotina da vítima, preparou instrumentos, escolheu local) e não apenas afirmações genéricas.
📚 Questões interdisciplinares: A premeditação pode aparecer conectada com outros institutos. Por exemplo: "A premeditação pode configurar circunstância agravante genérica?" Resposta: não, pois não está prevista no rol taxativo do art. 61 do CP. "Pode majorar a pena-base?" Sim, pela culpabilidade.
👓 Análise de casos complexos: Imagine questão sobre tráfico de drogas em que o agente alugou imóvel, instalou laboratório e produziu entorpecentes por meses. Pode valorar a premeditação? A resposta exige análise: o tráfico em si pressupõe certa organização, mas a sofisticação excepcional do esquema pode justificar a valoração negativa.
👀 Pegadinhas sobre a fase de aplicação: Questões podem confundir candidatos perguntando se a premeditação se aplica na segunda fase (agravantes) ou terceira fase (causas de aumento). A resposta correta é sempre primeira fase, nas circunstâncias judiciais do art. 59.

Para se preparar adequadamente, o candidato deve dominar não apenas a tese fixada, mas seus fundamentos e limites de aplicação. Decorar que “premeditação majora a pena-base” é insuficiente – é preciso saber quando, como e por quê.

Conclusão: segurança jurídica com flexibilidade

Por fim, o julgamento do Tema 1318 representa importante avanço na uniformização da jurisprudência sobre dosimetria da pena. Ao reconhecer a premeditação como circunstância judicial apta a negativar a culpabilidade, mas exigir fundamentação concreta e estabelecer hipóteses de exclusão, o STJ equilibra segurança jurídica com flexibilidade judicial.

Para os operadores do direito, a mensagem é clara: a premeditação importa e pode aumentar a pena, mas sua valoração exige cuidado e fundamentação. Não é carta branca para majoração automática, mas ferramenta que, bem utilizada, permite dosimetria mais justa e proporcional à gravidade concreta do crime.

O caso de Carlos e Beatriz, que originou a controvérsia, ilustra perfeitamente quando a premeditação deve ser valorada. O aproveitamento calculado da vulnerabilidade alheia, precedido de meticuloso planejamento, merece maior reprovação penal. É essa maior censurabilidade, demonstrada concretamente, que justifica pena-base acima do mínimo legal – agora com respaldo vinculante do Superior Tribunal de Justiça.


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