Pensão alimentícia para cachorro após divórcio – família multiespécie e decisão inédita em Minas Gerais

Pensão alimentícia para cachorro após divórcio – família multiespécie e decisão inédita em Minas Gerais

Em uma decisão paradigmática, o Judiciário mineiro reconheceu, pela primeira vez, o direito de um animal de estimação a receber pensão alimentícia após o divórcio de seus tutores.

O caso, julgado em 10/09/2024 na comarca de Conselheiro Lafaiete, não apenas desafia as noções tradicionais de família, mas também redefine os contornos do direito de família no Brasil aplicando conceitos de família multiespécie.

Primeiro, vejamos o conceito de “família multiespécie”:

A família multiespécie é uma configuração familiar que inclui humanos e animais de estimação, reconhecendo o papel afetivo e social dos animais como membros da família. Um exemplo comum é o relacionamento entre tutores e seus cães, que muitas vezes são tratados como filhos. Esse tipo de estrutura está se tornando mais comum na sociedade moderna. Pesquisas mostram que, após o término de relacionamentos, a questão da guarda dos animais de estimação tem levantado debates legais, visto que a legislação ainda os trata como "bens" e não como sujeitos com laços afetivos​.

O conceito de família multiespécie não se limita à presença física dos animais, mas envolve um reconhecimento mais profundo dos laços emocionais que os conectam com os humanos, impactando a dinâmica familiar, inclusive em questões como guarda compartilhada após divórcios.1

O caso decidido

No epicentro desta controvérsia judicial, encontra-se um cachorro que, adquirido durante o matrimônio, tornou-se objeto de disputa pós-divórcio.

A tutora pleiteou judicialmente uma “pensão”, argumentando que o animal necessitava de cuidados especiais devido a uma condição médica grave – insuficiência pancreática exócrina.

Pensão

O magistrado, Dr. Espagner Wallysen Vaz Leite, sensível à realidade fática e às nuances jurídicas do caso, determinou que o ex-cônjuge contribuísse com uma pensão alimentícia mensal equivalente a 30% do salário mínimo. Assim, o valor total de R$ 423,60 se destinará exclusivamente ao tratamento e bem-estar do animal.

Nessa linha, a decisão do juiz Vaz Leite fundamenta-se no conceito emergente de “família multiespécie”, uma noção que tem ganhado terreno no campo jurídico brasileiro.

Como vimos, o conceito defendido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), reconhece os animais de estimação como membros integrantes do núcleo familiar.

Neste contexto, é crucial mencionar o artigo 5º, §2º da Constituição Federal, que dispõe:

"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Assim, na visão do magistrado, este dispositivo abre as portas para a incorporação de direitos não expressamente mencionados na Carta Magna. Isso possibilita o reconhecimento dos animais como sujeitos de direito, ainda que de forma implícita.

Ademais, o Código Civil, em seu artigo 1.583, §2º, ao tratar da guarda compartilhada, estabelece:

"Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos."

Por analogia, este princípio pode ser estendido aos animais de estimação em casos de dissolução conjugal, considerando o melhor interesse do animal.

O que já decidiu o STJ?

Pode-se dizer que esta decisão é fruto de uma evolução gradual na jurisprudência brasileira.

Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 1.713.167-SP, já havia reconhecido a possibilidade de regulamentação de visitas a animais de estimação após a separação conjugal. Estabeleceu-se que:

Na dissolução de entidade familiar, é possível o reconhecimento do direito de visita a animal de estimação adquirido na constância da união, demonstrada a relação de afeto com o animal.

Na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal.


STJ. 4ª Turma REsp 1713167-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018 (Info 634).

Ou seja, a decisão do STJ no caso REsp 1.713.167-SP, julgado pela 4ª Turma, determinou que, na dissolução de entidades familiares, é possível reconhecer o direito de visita a animais de estimação, quando demonstrada a relação de afeto.

Embora o Código Civil ainda classifique os animais como “coisas“, o STJ reconheceu a relevância da relação afetiva entre humanos e animais de estimação, especialmente em casos de divórcio. Isto é, a decisão sugere que tratar esses casos apenas com base nas leis de propriedade não atende à complexidade do vínculo afetivo envolvido com os animais.

“Na dissolução da entidade familiar em que haja algum animal de estimação, o destino do animal, a depender do caso concreto, pode integrar o elenco de bens passíveis de partilha, cabendo ao juízo a análise sobre a viabilidade de eventual guarda compartilhada.”

Implicações e perspectivas

A decisão do juiz mineiro representa um marco significativo na jurisprudência nacional. Ela não apenas reconhece o valor afetivo dos animais de estimação, mas também impõe obrigações legais decorrentes desse reconhecimento.

É importante também registrar que a legislação de alguns países europeus já avançou na proteção dos animais de companhia retirando a natureza jurídica de “coisas”.

Nesse sentido2:

  • Áustria, Alemanha  e Suíça indicam expressamente que os animais não são coisas.
  • França, Nova Zelândia e Portugal vão além e preveem que os animais são seres sencientes (seres dotados de sensibilidade).

Logo, esta nova perspectiva jurídica suscita questionamentos importantes sobre a quantificação da pensão para animais, critérios para determinar a guarda em divórcios e a necessidade de legislação específica para regular essas situações. Inclusive, essa é aparentemente a linha de raciocínio abordada no projeto de reforma do Código Civil, como já abordamos:


  1. OLIVEIRA, M. N. Família multiespécie e a guarda compartilhada dos animais no término das relações familiares. 2023. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/276372&#8203;:contentReference[oaicite:0]{index=0}>. ↩︎
  2. CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Ao fim de um casamento ou união estável, é possível que o juiz reconheça o direito de visita a animal de estimação adquirido durante a constância do relacionamento. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/acc21473c4525b922286130ffbfe00b5>. Acesso em: 10/09/2024 ↩︎

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