Reforma do Código Civil – Animais como seres sencientes

Reforma do Código Civil – Animais como seres sencientes

Atualização da Lei 10.406/2002

O Código Civil, como se sabe, fez 20 anos de vigência em 2023. Junto com o aniversário da Lei 10.406/2002, veio a instituição, por parte do Senado Federal, de uma comissão de juristas para revisar e efetuar uma reforma da referida lei.

Dentre as diversas atualizações pretendidas, destacamos a tratativa dos animais como seres sencientes.

O que são seres sencientes?

senciente

O conceito de senciência poderia ser definido como a capacidade de ter estados de sentimentos e de sofrer, ou seja, seria a aptidão para sentir. Diferencia-se dos atos reflexos ou da mera intuição, sendo, na verdade, um estado de consciência.

Indo além do direito e chegando à Filosofia, a visão cartesiana-kantiana procura definir quem poderia ser considerado sujeito da senciência. Isso se explica porque a capacidade de raciocínio ou de razão é que, a princípio, diferenciaria os seres humanos dos outros animais.

Opinião interessante sobre  o tema pode ser retirado das palavras  do autor Jeremy Bentham, que entendia que a definição de ser humano e sua garantia de direitos iguais não se encontrava apenas na  “mera capacidade de racionar”, mas também na  de sentir, de sofrer e de ser feliz. Veja-se:

Se os filósofos não fizerem a inclusão de todos os seres sencientes no âmbito da comunidade moral, jamais conseguirão refinar-se moralmente, pois, embora os princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade só possam ser concebidos e seguidos por quem é capaz de fazer um raciocínio abstrato, a moralidade que fundamentam não visa atender apenas aos interesses egoístas de sujeitos racionais .

(BENTHAM, 1979)

Dignidade animal

Alguns autores resistem em reconhecer a senciência e até mesmo a dignidade dos animais. Seus argumentos  baseiam-se na opinião de que os animais não possuiriam autoconsciência e nem liberdade. Entendem ainda,  que o animal, embora capaz de se posicionar de acordo com o meio ao seu redor, não teria capacidade de enxergar a si mesmo como indivíduo singular e livre.

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso preleciona sobre o tema:

O que poderia ter sido suscitado, isso sim, seria o reconhecimento de dignidade aos animais. Uma dignidade que, naturalmente, não é humana nem deve ser aferida por seu reflexo sobre as pessoas humanas, mas pelo fato de os animais, como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria .

(BARROSO, 2016, p. 118)

No mesmo sentido, Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó em seu livro procura expandir a ideia kantiana de respeito, buscando englobar os animais. Segundo sua visão, seria possível atribuir  dignidade aos animais, na medida em que os enxergarmos como partícipes da biosfera, merecedores de proteção, pelo papel que desempenham no sistema global da natureza (FEIJO, 2008, p. 142).

Como se vê, o tema já é matéria de discussão há um bom tempo.

Animais como seres sencientes

Apesar da contemporaneidade do tema, já existe ampla pesquisa científica sobre o tema. Tais trabalhos embasam e comprovam que os animais possuem uma maior capacidade de compreensão e entendimento do mundo do que percebemos à primeira vista.

A revista Galileu apresentou uma entrevista de Carl Safina, professor da Universidade de Stony Brook, nos Estados Unidos, e autor do livro “Beyond Words: What Animals Think and Feel”, lançado em julho de 2015. A matéria apresenta vários pontos esclarecedores sobre a questão. Em primeiro lugar, o professor acredita que o debate acerca da existência ou não de sentimentos em animais nem sequer deveria existir. O autor diz de forma expressa:

Se você observar mamíferos ou até mesmo aves, verá como eles respondem ao mundo. Eles brincam. Eles ficam com medo quando estão em perigo, relaxam quando as coisas estão bem”
(…)
“Não parece lógico pensar que os animais não estejam experenciando emoções como o medo e a o amor.

(MOREIRA, 2016)

A reportagem cita um processo que acontece quando os elefantes asiáticos veem outro animal da espécie bem agitado: eles tendem a tocar seu semelhante até deixá-lo tranquilo. O cientista Joseph Plotnik explica que isso seria um ato parecido com o que os humanos fazem com seus bebês quando estão agitados (MOREIRA, 2016).

Poderíamos nos estender aqui com diversos exemplos e argumentos de autoridades sobre o tema.

Tratamento dos animais no direito brasileiro

A Constituição colocou o “meio ambiente” como um direito fundamental de terceira geração e dispôs um capítulo próprio para a regulação deste tema (Capítulo VI).

Visando dar concretude aos preceitos constitucionais, em especial o art. 255 da CRFB, o legislador criou diversas leis e dispositivos para regulamentar essa matéria. Como exemplos citamos a lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), a lei 9.985/00 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza) ou até mesmo a lei 12.651/12 (Código Florestal).

Apesar da criação desse sistema legal e suas reformas acerca da proteção ambiental, os animais ainda não se encontram em uma posição jurídica que os garanta um verdadeiro amparo. O art. 82 do Código Civil (CC), por exemplo, trata os animais como semoventes, ou seja, coisas com movimento próprio:

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

Jurisprudência

A jurisprudência brasileira, por sua vez, de forma geral, tem negado a personalidade dos animais e conferido a eles  proteção insuficiente. É o caso, por exemplo, do Habeas Corpus nº 0002637-70.2010.8.19.0000, impetrado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 

O referido processo tratou do pedido de “Habeas Corpus” impetrado a favor do chimpanzé chamado Jimmy. Segundo os autores do pedido, o animal vivia isolado em  jaula do Zoológico de Niterói/RJ e deveria ser transferido para um santuário de primatas do Estado de São Paulo, sob o argumento de que aí teria mais  espaço e convivência com membros de sua própria espécie. O remédio constitucional contou com 29 (vinte e nove) impetrantes, entre pessoas naturais e pessoas jurídicas, inclusive Organizações Não-Governamentais e associações de defesa dos animais.

O relator do HC no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,  disse estar sensibilizado com o caso, porém votou pelo não conhecimento do “habeas corpus”, alegando que o remédio constitucional só seria cabível para seres humanos.

O Desembargador, mesmo afirmando o chimpanzé teria 99,4% de DNA idêntico ao do ser humano, sustentou que o animal não poderia ser sujeito de direitos.

Luís Fernando Sgarbossa, Doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ressaltou sobre o caso:

Logo, o macaco não é ninguém na opinião do Poder Judiciário fluminense, e, por não ser pessoa, não é nem pode ser sujeito de direitos, apenas objeto de direitos, da abusos de direito e de ilegalidades (aliás, vivemos em um mundo no qual os animais podem ser objeto das mais variadas atrocidades, então isso não deveria surpreender – touradas, rodeios, caça com meios cruéis, envenenamento de cães em cidades, crueldade contra animais, abandono nas ruas, abate impiedoso e cruento, utilização de animais para pesquisas científicas, privação de água e alimentação, rinhas, etc.).

(SGARBOSSA, 2011)

Esse padrão de decisão do judiciário brasileiro não é incomum e demonstra claramente que ainda possuímos visão antropocêntrica do Direito Ambiental, que não confere proteção jurídica eficiente aos animais e muito menos os considera seres sencientes.

Reforma do Código Civil

A mencionada comissão de juristas pretende, na reforma do Código Civil, a inclusão do artigo 82-A, que terá a seguinte redação:

Dos Bens Móveis e Animais

(…)

Art. 82-A Os animais, que são objeto de direito, são considerados seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica, em virtude da sua natureza especial.

§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento ético adequado aos animais;

§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza e sejam aplicadas considerando a sua sensibilidade;

§ 3º Da relação afetiva entre humanos e animais pode derivar legitimidade para a tutela correspondente de interesses, bem como pretensão indenizatória por perdas e danos sofridos.

A inserção do referido artigo possui a seguinte justificativa:

O atual texto do artigo 82 do CC dispensa aos animais o tratamento de bens móveis semoventes, o que, no entanto, não é o mais escorreito. Afinal, os animais são seres vivos e, por isso, devem contar com proteção jurídica e tratamento diferenciados.

Ocorre que a proteção dos animais, até mesmo diante da complexidade da matéria e impossibilidade de esgotamento no presente livro, deve ser trabalhada em legislação específica, não cabendo ser objeto exaustivo do Código Civil.

Assim, com inspiração no Código Civil português, a presente proposta busca incluir o artigo 82-A. e seus parágrafos no Código Civil brasileiro, dispondo sobre a diferenciação do tratamento jurídico dos animais e estimulando a elaboração de lei específica sobre o tema.

Cristalino está que a nova reforma do Código Civil intenta conceder no furturo diverso tratamento aos animais, no sentido de ampliar sua proteção jurídica, não mais os considerando apenas “coisas”.

O tema não resta exaurido na pretensa reforma, mas se trata do início de uma discussão importante e relevante para o momento atual, em que urge uma discussão  maior sobre o direito dos animais.

Conclusão

O Brasil, oficialmente, ainda segue uma linha de pensamento antropocêntrica. Isso significa dizer que o meio ambiente é analisado de acordo com a utilidade que possui para o ser humano.

No entanto, o nosso país começa a refletir acerca do que vem sendo discutido a nível mundial e, aos poucos, vem mudando sua forma de pensar o meio ambiente.

A nova proposta de reforma do Código Civil, com a inserção do art. 82-A, torna-se um bom exemplo de mudança de paradigma do Brasil quanto a questões do ecossistema nacional,  representando, assim, um grande avanço no reconhecimento dos animais como seres sencientes e na sua proteção jurídica.

Confiamos que o nosso ordenamento jurídico passará a adotar  uma postura com tendência ecocêntrica, ou seja, que considere a necessidade de proteção do meio ambiente, pela sua importância intrínseca, e não como meio de utilidade para a sobrevivência humana.

Esperamos que este artigo auxilie os estudantes na compreensão do tema abordado, o qual será tão relevante para as discussões das futuras mudanças legislativas.

Grande abraço!

Para acompanhar a reforma do Código Civil: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630

Concursos Abertos: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/concursos-abertos/

Concursos 2024: https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/concursos-2024/

Leia outros artigos deste autor: https://cj.estrategia.com/portal/enam-fgv-que-faco-agora/

Referências bibliográficas:

  • BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 4ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
  • BENTHAM, Jeremy, MILL, John Stuart. Princípios da Moral e da Legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
  • MOREIRA, Isabela. Os animais podem ter sentimentos mais complexos que os humanos, diz pesquisador. Disponível em: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2016/02/os-animais-podem-ter-sentimentos-mais-complexos-que-os-humanos-diz-pesquisador.html> Acesso em: 03/03/2024.
  • SGARBOSSA, Luis Fernando. Macacos me mordam! <https://jus.com.br/artigos/19183/macacos-me-mordam> Acesso em: 03/03/2024.
0 Shares:
Você pode gostar também