Limites dos poderes de polícia e de investigação de um ministro do STF ou do TSE

Limites dos poderes de polícia e de investigação de um ministro do STF ou do TSE

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Acusação

O ministro Alexandre de Moraes está sendo acusado de ter usado o setor de combate à desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para produzir relatórios que embasassem decisões contra aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante e após as eleições de 2022.

O jornal Folha de São Paulo conta ter tido acesso a mais de 6 gigabytes de arquivos e diálogos por mensagens, trocadas de forma não oficial, que revelariam um fluxo fora do rito tradicional envolvendo o STF e o TSE, tendo este último sido utilizado para abastecer o chamado inquérito das fake news, que corre no Supremo.

O juiz instrutor Airton Vieira, apontado como assessor mais próximo do ministro, pedia informalmente, via Whatsapp, a Eduardo Tagliaferro, à época chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, relatórios específicos contra aliados de Bolsonaro.

Esses relatórios, pedidos informalmente, e fora do rito adequado (segundo a reportagem), teriam sido utilizados para embasar medidas criminais, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimentos à Polícia Federal.

Resposta do ministro

O gabinete do ministro Alexandre de Moraes disse que o TSE tem poder de polícia, não havendo irregularidade nos pedidos feitos pelo ministro aos órgãos do tribunal. Segundo o ministro, todos os procedimentos foram oficiais, regulares e documentados.

Ainda segundo o gabinete, o tribunal tem competência para elaborar relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discurso de ódio eleitoral, tentativas de golpe de Estado e atentados à democracia.

A nota prossegue, aduzindo que os relatórios feitos pelo TSE, no exercício do poder de polícia, descreviam de maneira objetiva as postagens ilícitas nas redes sociais relacionadas às investigações das milícias digitais.

Moraes arrematou: “Seria esquizofrênico, como presidente do TSE, me auto-oficiar. Como presidente, tenho poder de polícia e posso, pela lei, determinar a feitura dos relatórios”.

Íntegra da nota emitida pelo gabinete do ministro Moraes:

“O gabinete do Ministro Alexandre de Moraes esclarece que, no curso das investigações do Inq 4781 (Fake News) e do Inq 4878 (milícias digitais), nos termos regimentais, diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao Tribunal Superior Eleitoral, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições. Os relatórios simplesmente descreviam as postagens ilícitas realizadas nas redes sociais, de maneira objetiva, em virtude de estarem diretamente ligadas às investigações de milícias digitais. Vários desses relatórios foram juntados nessas investigações e em outras conexas e enviadas à Polícia Federal para a continuidade das diligências necessárias, sempre com ciência à Procuradoria Geral da República. Todos os procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria Geral da República.”

STF e governo saem em defesa de Alexandre de Moraes

Alguns ministros do STF teriam apontado para a normalidade sobre a troca de mensagens com funcionários. Destacaram ainda que não se compara com a chamada Vaza Jato, que revelou contato do ex-juiz Sérgio Moro com membros do Ministério Público Federal.

Além disso, segundo integrantes da Corte Suprema, as acusações podem ser enquadradas como uma “tentativa de criminalizar” os métodos utilizados pelo ministro Moraes.

O vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, defendeu o ministro, ressaltando que “Por lei, o ministro do TSE é ministro do Supremo. Isso é lei… [Moraes] tem absoluto rigor ético, compromisso, e o Brasil deve muito ao Alexandre de Moraes, a sua firmeza na condução do processo eleitoral.

O advogado-geral da União, Jorge Messias, também defendeu o ministro: “O ministro Alexandre de Moraes sempre se destacou por seu compromisso com a justiça e a democracia. Do mesmo modo, tem atuado com absoluta integridade no exercício de suas atribuições na Suprema Corte. Suas decisões contaram com a fundamentação e regularidade próprias de uma conduta honesta, ética e colaborativa que merece nossa admiração e apoio”.

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, também se pronunciou. Ele chamou a apuração de “sensacionalista” e que “tem o efeito de alimentar o movimento de tentar desacreditar o STF“.

Análise jurídica

Podemos perceber, portanto, que há uma enorme polarização e politização da discussão em torno de duas correntes ideológicas bem definidas: lulismo x bolsonarismo.

Por isso, um grande desafio é realizar uma análise técnico-jurídica da situação, sem se deixar levar por paixões ou pré-disposições.

Poder de polícia

O cerne da discussão é saber até onde vão os poderes de polícia/investigação de um ministro do STF ou do TSE.

Segundo o artigo 78 do Código Tributário Nacional temos o seguinte conceito de poder de polícia:

Art. 78 - Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Na Justiça Eleitoral, regra geral o poder de polícia é uma prerrogativa do magistrado para inibir práticas ilegais no âmbito da propaganda política. Trata-se de atividade essencialmente administrativa.

Dessa forma, os procedimentos adotados na apuração de denúncias se diferem dos procedimentos adotados em ações judiciais, sobretudo no que diz respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

Tais princípios serão observados apenas se da apuração da denúncia resultar o oferecimento de representação, pelos legitimados ativos (partidos políticos, coligações, candidatos ou Ministério Público).

É o que diz o artigo 41, §1º e §2º, da Lei 9.504/97:

Art. 41. A propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40.

§ 1° O poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais.

§ 2° O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.

A Resolução nº 23.610/2019, do TSE, dispõe sobre a propaganda eleitoral. O seu artigo 8º aduz que, para assegurar a unidade e a isonomia no exercício do poder de polícia na internet, este deverá ser exercido:

  • I – nas eleições gerais, por uma(um) ou mais juízas ou juízes designadas(os) pelo tribunal eleitoral competente para o exame do registro da candidata ou do candidato alcançado pela propaganda;
  • II – nas eleições municipais, pela juíza ou pelo juiz que exerce a jurisdição eleitoral no município e, naqueles com mais de uma zona eleitoral, pelas juízas eleitorais e pelos juízes eleitorais designadas(os) pelos respectivos tribunais regionais eleitorais.

Sem irregularidades

O professor de direito eleitoral da FGV/SP, Fernando Neisser, defende que não houve qualquer irregularidade por parte de Moraes. Para ele, “Não há uso informal da estrutura de um tribunal, pois não há formalidade prevista para o exercício do poder de polícia de que dispõe o juiz (ou ministro) na função eleitoral”. Ele prossegue:

Trata-se de função prevista na lei, no art. 41 da Lei 9.504/97, que não depende de acionamento por terceiros, tampouco de formalidades, como a remessa de ofícios, tema tratado na reportagem.

O juiz eleitoral que se depara com ilegalidade eleitoral tem o direito e o dever de tomar as devidas providências para fazer cessar as ilegalidades e levantar os dados necessários para tanto…

Nada há de ilegal nessa suposta informalidade. O que se quer é evitar que a propaganda irregular permaneça disponível.

Nada impede que essas informações, produzidas de forma legal, sejam encaminhadas à relatoria de outros expedientes, como no caso de inquéritos policiais. Isso porque, para uso futuro em ações penais, os elementos indiciários serão submetidos ao crivo do contraditório.
Poder de polícia

A questão, de fato, é de extrema complexidade. Se de um lado há a necessidade de combate à desinformação, à propagação de fake news, ao discurso de ódio, o que poderia justificar uma atuação mais ativa do magistrado no exercício do poder de polícia, de outro há o desafio de não transformar esses inquéritos em instrumentos de perseguição, com fragilização do contraditório, da ampla defesa, da imparcialidade do julgador, enfim, a afronta ao próprio devido processo legal, consagrado em nossa Carta Magna.

Dessa forma, exatamente para evitar alegações de excesso, de parcialidade e de informalidade, é que o julgador deve redobrar o zelo na observância dos procedimentos legais e processuais aplicáveis ao caso concreto.

Para isso, o Ministério Público tem um papel fundamental. Isso porque a ele também incumbe o poder-dever de atuar para a garantia da observância do ordenamento jurídico.

Questão polêmica, e que pode surgir em provas de direito constitucional, eleitoral ou processual. Muita atenção!


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