* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão da justiça paulista
Um trisal de Bauru/SP havia apresentado, no Cartório de Registro de Títulos e Documentos, um Termo de União Estável Poliafetiva. O titular do cartório questionou o documento e solicitou a anulação do documento, citando falta de previsão legal e possíveis infrações administrativas.
O cartório acabou instaurando um procedimento administrativo interno que resultou na aplicação de uma advertência por escrito à funcionária que autenticou o contrato particular. Além disso, o Ministério Público de São Paulo opinou no caso, concordando com o cartório, ou seja, sugerindo a anulação do contrato.
Um trisal é um relacionamento íntimo e estável entre três pessoas, que pode ser considerado uma forma de poliamor. Não se confunde com um triângulo amoroso, onde há apenas uma pessoa com dois parceiros. Já o trisal envolve um relacionamento consensual e equilibrado entre os três indivíduos, com direitos e deveres iguais para todos.
O questionamento chegou ao Judiciário, e a juíza Rossana Teresa Curioni Mergulhão validou o contrato particular que formaliza o relacionamento de Charles Trevisan, Kaio Alexandre dos Santos e Diego Trevisan.
A magistrada foi incisiva:
“O ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio fundamental segundo o qual nas relações entre particulares é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente. Este princípio, que encontra assento no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Tal princípio reveste-se de especial importância no âmbito do direito privado, onde prevalece a autonomia da vontade como regra geral. As pessoas têm liberdade para celebrar os negócios jurídicos que melhor atendam aos seus interesses”.
A magistrada se baseou nos seguintes argumentos para reconhecer o contrato particular do trisal:
- Direito fundamental à liberdade;
- Direito fundamental à privacidade;
- Direito fundamental à autonomia existencial;
- Não contrariedade ao ordenamento jurídico; e
- Ausência danos a terceiros.
Importante ressaltar que, ao contrário dos documentos públicos registrados em cartórios de Registro Civil e de cartórios de Notas — que têm validade de provar uma relação perante todos, como casamento ou escritura pública de união estável —, um contrato particular vale somente entre quem o assina.
Ao final do procedimento, o Oficial do Cartório afirmou que a decisão judicial já foi cumprida, e que não irá recorrer. O MP-SP arquivou a procedimento no órgão, e a funcionária envolvida (escrevente) não recebeu sanções mais gravosas.
Análise jurídica
Em primeiro lugar, é fundamental ressaltar que a decisão da juíza não constitui um reconhecimento legal da união poliafetiva como uma entidade familiar com os mesmos direitos e deveres do casamento ou da união estável monogâmica no Brasil.
Mas a magistrada deixou claro que o ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio fundamental de que, nas relações entre particulares, permite-se fazer tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente.
Portanto, esse contrato envolvendo o trisal tem validade enquanto contrato particular firmado entre os integrantes do relacionamento, que no conteúdo deles estabeleceram ali obrigações e direitos.
Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça proibiu que cartórios lavrem escrituras públicas de união estável poliafetiva, ou seja, relações com mais de duas pessoas (pedido de providência 1459-08.2016.2.00.0000). Essa decisão, tomada pelo Plenário do CNJ, impede o registro de uniões poliafetivas em cartórios, embora não impeça a formação dessas relações ou seu reconhecimento pela Justiça em casos específicos.
Uma escritura ou contrato particular de união poliafetiva não tem o condão de transformá-la em união estável reconhecida pelo direito.
União estável
O reconhecimento da união estável é um grande avanço para assegurar os direitos daqueles que, embora não tenham se casado, mantém um relacionamento público, contínuo e duradouro, com intuito de constituir família.
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal já conferia certa proteção a essa situação fática relevante na sociedade brasileira, a exemplo das súmulas 380 e 382:
- Súmula 380 (1964): Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
- Súmula 382 (1964): A vida em comum sob o mesmo teto, “more uxorio”, não é indispensável à caracterização do concubinato.
A Constituição Federal de 88 consolida de vez essa proteção, ao reconhecer, em seu art. 226, §3º, a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A Constituição proclamou o status familae da união estável, convertendo-a de fato social em fato jurídico, como entidade familiar.
A Lei nº 9.278/96 vem regulamentar o art. 226, §3º, da CF, reconhecendo como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Referida norma trouxe, como direitos e deveres iguais dos conviventes:
I - respeito e consideração mútuos;
II - assistência moral e material recíproca;
III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns.
A lei ainda previu que toda a matéria relativa à união estável é de competência do juízo da Vara de Família, assegurado o segredo de justiça.
O código civil de 2002 também trata da matéria, em seus artigos 1.723 a 1.727, ressaltando que as relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Nos termos do CC, aplica-se às relações patrimoniais da união estável, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito entre os companheiros.
Requisitos
Podemos, de forma resumida, elencar 3 requisitos necessários para a configuração da união estável:
1º) Convivência pública, contínua e duradoura;
2º) Intuito de constituir família (intuitu familiae); e
3º) Comprometimento em ficar juntos por tempo indeterminado.
Ocorre que, mesmo com avanços, o código civil ainda não foi capaz de assimilar as mudanças sociais relacionadas aos relacionamentos homoafetivos, haja vista que previu a união estável com aplicação apenas para relacionamentos entre homem e mulher.
Esse papel de captar as mutações sociais e regular normativamente situações novas coube à doutrina e à jurisprudência.

Podemos citar, à título de exemplo, o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, ambas pela Suprema Corte, reconhecendo, por unanimidade, a união homoafetiva como entidade familiar, sujeita às mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva.
Inclusive, as decisões paradigmáticas do STF (ADPF 132 e ADI 4277) renderam o recebimento de um certificado, pela UNESCO. As decisões foram inscritas no Registro Nacional do Brasil como patrimônio documental.
A postura da Suprema Corte foi considerada como essencial para a consolidação dos direitos alcançados no país e o compromisso do Estado brasileiro de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outras formas de discriminação, como prevê o inciso IV do art. 3º da Constituição da República.
A jurisprudência deu mais um passo à frente, ao reconhecer a união estável virtual.
União estável virtual
Mas o que vem a ser essa modalidade de união estável virtual?
União estável virtual: relacionamento entre duas pessoas, desenvolvido por meios virtuais, como redes sociais, aplicativos de mensagens e videoconferências, que se expressa na convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Aliás, importante ressaltar que os requisitos da união estável virtual são os mesmos da união estável convencional: união pública, contínua, duradoura e com objetivo de constituir família.
E será imprescindível, para sua comprovação, um conjunto probatório farto, composto de trocas de mensagens, vídeos, fotos, documentos, prints.
Da mesma forma que na união tradicional, os direitos e deveres dos companheiros virtuais são os mesmos voltados à partilha de bens, à pensão alimentícia, ao direito de herança e a outros direitos previstos no Codex Civil.
E há uma justificativa plausível para o reconhecimento da união virtual, haja vista que ela pode gerar os mesmos efeitos emocionais e psicológicos de um relacionamento tradicional, o que atrai a aplicação do instituto.
Conclusão
Voltando ao caso do trisal, podemos resumir, dizendo que:
- O CNJ entendeu que não há amparo legal para o reconhecimento de uniões poliafetivas como entidades familiares, justificando a proibição do registro em cartório;
- O CNJ proibiu a lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas nos Tabelionatos de Notas, mas não o registro de contrato particular no cartório de Títulos e Documentos, porque as finalidades são diferentes;
- A decisão do CNJ não impede que casais poliafetivos busquem o reconhecimento de suas relações na Justiça;
- A decisão do CNJ não proíbe a existência de famílias poliafetivas, apenas a formalização pública nos Tabelionatos de Notas;
- Para o CNJ, a relação poliafetiva é uma mera relação de fato, não tendo sido, ainda, reconhecida pelo direito.
Ótimo tema para provas de Cartórios!
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!