* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Justiça ambiental
O Brasil está sediando a COP-30, em plena Amazônia (Belém), e o tema da justiça climática e do racismo ambiental não poderia estar mais em evidência.
A justiça climática é uma abordagem essencial que expõe e busca corrigir as desigualdades sociais, econômicas e políticas no contexto da crise climática.
Mas você sabe o que é justiça climática? Vamos lá então.

O conceito é sustentado por dimensões distributiva, de reconhecimento e procedimental, que ajudam a orientar a identificação de riscos e benefícios no contexto climático.
A luta pela justiça climática deve se incorporar na agenda da sociedade civil como uma demanda central por direitos.
Podemos citar como principais objetivos da justiça climática:
- Trazer justiça, equidade e representatividade para aqueles que estão excluídos, marginalizados, discriminados, sub-representados e mantidos fora dos espaços de diálogo, poder e tomada de decisão;
- Analisar como a mudança climática afeta as pessoas de maneira diferente, desigual e desproporcional.
- Conectar direitos humanos, equidade e sustentabilidade, lutando pelo reconhecimento de diversos direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à água potável e a viver em um ambiente saudável.
| A justiça climática deve ser encarada como um marco de justiça social e racial, que reconhece desigualdades históricas e busca superá-las. |
Desigualdades
Embora as mudanças climáticas afetem a todos, os impactos e a capacidade de lidar com eventos extremos são desiguais. Os grupos vulneráveis sentem as consequências da injustiça climática de forma desproporcional, sendo que a exposição aos impactos se dá por meio de desigualdades pré-existentes de raça, cor e classe.
Podemos analisar os impactos desiguais sob três perspectivas:
- Exposição: pessoas são mais afetadas devido à exposição a riscos, vivendo em lugares inadequados (sujeitos a deslizamentos e alagamentos), como visto nas comunidades socioeconomicamente vulneráveis no Brasil.
- Vulnerabilidade: pessoas desfavorecidas são mais vulneráveis; por exemplo, em uma onda de calor, quem não tem ar-condicionado sofre mais os efeitos.
- Capacidade de enfrentamento: pessoas pobres ou marginalizadas têm uma capacidade mínima de se recuperar dos danos sofridos após um evento climático extremo.
O grande desafio do combate à injustiça climática consiste na falha do sistema internacional em garantir a equidade:
- Crise de credibilidade: a falha na implementação do Acordo de Paris gerou uma “crise de credibilidade”, com líderes internacionais não levando a sério a necessidade de ações ambiciosas.
- Domínio do Norte Global: Países do Norte Global dominaram historicamente as negociações, e os grandes poluidores (empresas e corporações) muitas vezes não são responsabilizados.
- Financiamento insuficiente: os países desenvolvidos recusaram-se a providenciar recursos suficientes para mecanismos como o Fundo Verde para o Clima. Isso frustrou o objetivo de angariar fundos para mitigação e adaptação.
- Risco de agravamento da injustiça em políticas: políticas de mitigação, como a expansão de energias renováveis ou a precificação de carbono, podem, se não estiverem bem planejadas, deslocar comunidades vulneráveis ou onerar famílias de baixa renda.
- Negacionismo: o negacionismo das mudanças climáticas, muitas vezes impulsionado por grandes corporações (carvão, petróleo e gás), impede ações urgentes e eficazes.
Ações
As implicações da justiça climática se traduzem em demandas por ação e equidade global.
Dívida ecológica e financiamento: a justiça climática implica o reconhecimento da dívida ecológica e climática que os países do Norte Global (que historicamente lucraram com modelos de desenvolvimento carbonífero) têm para com o Sul Global. O Norte Global (responsável por 92% do excesso de emissões globais de CO2 em 2015) deve arcar moralmente com os custos de mitigação, adaptação e compensação nos países pobres.
Responsabilidades comuns, mas diferenciadas: este princípio basilar guia as negociações, prevendo que todos devem proteger o planeta. Contudo, os maiores emissores históricos (que também possuem maior capacidade financeira e tecnológica) devem assumir maiores responsabilidades e liderar os esforços de mitigação. A responsabilidade do Norte Global inclui o reconhecimento da dívida climática e seu pagamento imediato.
Transição justa: a justiça climática serve como a lente ética e política para guiar a Transição Justa. Este conceito, formalizado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), implica tornar a economia mais ecológica de forma justa e inclusiva, garantindo que ninguém ficasse para trás, protegendo trabalhadores e distribuindo custos e benefícios de forma equitativa durante a transição para uma economia de baixo carbono.
Participação e inclusão: a justiça climática implica permitir a diversidade e inclusão nas Conferências das Partes (COPs), garantindo que categorias marginalizadas (mulheres, crianças, indígenas, quilombolas, camponeses) tenham voz e influência nas tomadas de decisão.
| A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), que reúne anualmente os países Parte em conferências mundiais. Suas decisões, coletivas e consensuais, só podem ser tomadas se forem aceitas unanimemente pelas Partes, sendo soberanas e valendo para todos os países signatários.1 |
Racismo ambiental
A justiça climática está intimamente ligada à ideia de racismo ambiental.
Você sabe o que é racismo ambiental? Será que há, de fato, relação entre os desastres climáticos e essa espécie de racismo? É isso que veremos a partir de agora.
A expressão “racismo ambiental” foi forjada na década de 1980 pelo pesquisador e ativista Benjamin Franklin Chavis Jr. (em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, no estado da Carolina do Norte (EUA), onde a maioria da população era negra) para explicar o processo de degradação das condições socioambientais que afeta, principalmente, populações marginalizadas, como pretos, pardos, indígenas, pobres e favelados.
O termo foi criado para descrever a forma como as populações mais pobres e marginalizadas são afetadas de forma desproporcional pelos impactos ambientais negativos, como a poluição do ar, a contaminação da água, as enchentes e o desmatamento. Isso acontece porque essas populações muitas vezes têm menos poder político e econômico para evitar ou remediar esses impactos.
Populações que precisam viver em favelas e áreas construídas em encostas íngremes, sujeitas a deslizamentos de terra e enchentes são as mais afetadas, como ocorreu no Litoral Norte de São Paulo.
Vulnerabilidade
O racismo ambiental é, portanto, uma forma de discriminação ambiental. Ele acontece quando as políticas ambientais e os projetos de desenvolvimento são implementados de forma a prejudicar deliberadamente as populações mais vulneráveis.
Segundo a pensadora Tania Pacheco, o racismo ambiental é constituído por injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis.
O racismo ambiental se materializa não apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto racial.
Podemos entender que o racismo ambiental se materializa como o processo de discriminação e injustiças sociais que afeta a parte mais vulnerável da população, decorrente da deterioração das condições do meio ambiente, como, por exemplo, a construção irregular de moradias em áreas de risco, o despejo ilegal de esgotos em rios e lagos, o desmatamento de vegetação nativa, a poluição do ar por indústrias e o descarte indevido e sem tratamento do lixo.
Quem mais sofre, portanto, são as pessoas mais pobres, forçadas a viver em locais com maior grau de degradação ambiental.
Discriminação seletiva
Essa espécie de racismo tem um grande impacto nas cidades e centros urbanos, em especial na população das favelas e periferias, já que essas áreas, por sua própria formação histórica e falta de políticas públicas, são as mais propensas a sofrerem com deslizamentos, contaminação do solo, contaminação do ar, insalubridade das condições de habitação etc.
Portanto, uma condição ambiental adversa, como uma área desmatada, um rio poluído, um esgoto à céu aberto, que poderia atingir qualquer pessoa, acaba, na prática, atingindo de forma direta aquela parte da população mais vulnerável (pobres, pretos, favelados, periféricos). É nesse sentido que o racismo ambiental mostra sua face mais cruel.
Deslizamentos, enchentes, poluição, e infestações de insetos e roedores causam mortes, perdas financeiras, doenças e desvalorização dos bens, afetando principalmente a população mais vulnerável.
Essa discriminação seletiva caracteriza o racismo ambiental como sendo uma prática, consciente ou não, intencional ou não, presente atualmente e que pode sim relacionar-se como uma das causas das agruras socioambientais sofridas por uma parte numerosa da população.
Políticas públicas
Assim, delimitada a ideia do racismo ambiental e identificada como sendo uma das causas das tragédias que povoam o noticiário diário é preciso que o poder público atue através da adoção de políticas públicas efetivas e direcionadas ao combate à desigualdade
Isso passa por uma política urbana voltada a garantir dignidade àqueles que moram em áreas esquecidas pelo Poder Público, o que inclui a execução de um amplo programa de saneamento básico, contenção de encostas, recuperação de mananciais, rios e lagos, disposição adequada do lixo gerado e um ordenamento territorial que permita à essas pessoas morarem em casas seguras e salubres.
| Podemos concluir, a seu turno, que o combate ao racismo ambiental passa pela luta e pela defesa dos direitos humanos e ambientais, com a valorização e utilização do conhecimento e experiências das próprias comunidades afetadas. |
Combater o racismo ambiental é combater a pobreza, a desigualdade, a falta de oportunidades, o crescimento desenfreado, a poluição dos córregos, o desmatamento irregular, o garimpo ilegal, e é dever de todos, não apenas do Estado, como prescreve a Constituição Federal de 1988, em especial em seu artigo 3º, in verbis:
CF/88
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Questão de concurso
O tema ganha relevância a cada dia, inclusive sendo cobrado na prova para promotor de SC de 2023 e defensor de SC de 2025, razão pela qual merece um estudo e acompanhamento mais aprofundado.
FUNDATEC – 2025 – DEFENSOR DE SC Sobre racismo ambiental, assinale a alternativa correta. a) Anúncio de emprego para motoboy em jornal de grande circulação que contenha como item desejável “pele clara e boa aparência” é considerado uma manifestação de racismo ambiental. b) O racismo ambiental pode ser definido como as injustiças ambientais, como no caso das catástrofes climáticas que afetam de forma mais incisiva populações vulneráveis, como negras, indígenas e ribeirinhas. c) A expressão “racismo ambiental” foi criada no século passado nos Estados Unidos, mas só passou a ser conhecida no Brasil mais recentemente, já no século XXI. d) O conceito foi criado pelos movimentos sociais africanos vinculados às comunidades negras, cujos estudos e reflexões foram incorporados às pesquisas de acadêmicos do mundo inteiro. e) O racismo ambiental ocorre em locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público. Gabarito: B.
- MINISTÉRIO do Meio Ambiente. Conferência das Partes. Disponível em: <https://antigo.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/conferencia-das-partes.html#:~:text=A%20Confer%C3%AAncia%20das%20Partes%20(COP,pa%C3%ADses%20Parte%20em%20confer%C3%AAncias%20mundiais>. ↩︎
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