Homem que mutilou amigo avança na prova para Delegado

Homem que mutilou amigo avança na prova para Delegado

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

Um ex-promotor de eventos, condenado a 15 anos de prisão por atacar três pessoas com um saca-rolhas durante uma festa na zona sul do Rio de Janeiro, foi aprovado na etapa de análise de vida pregressa do concurso para delegado da Polícia Civil de São Paulo.

Mas não é só. Ele também aparece entre os aprovados para a etapa discursiva do concurso para promotor substituto do Ministério Público de São Paulo.

Em 2015, José Phillippe, que era promotor de eventos, atacou três jovens durante uma festa realizada na casa da família, na zona sul do Rio. Segundo a denúncia, ele agrediu um homem com um saca-rolhas por estar urinando no jardim. Esse homem acabou com a orelha decepada.

Ao tentar defender o namorado, que teve a orelha decepada, a namorada foi esfaqueada, sofrendo perfurações no fígado e no diafragma, ficando com cicatrizes permanentes. Um terceiro jovem também foi ferido ao tentar conter o agressor.

Em 2017, o 4º Tribunal do Júri do Rio condenou José Philippe a uma pena de 15 anos de reclusão:

  • Crime de lesão gravíssima contra Ana Carolina Romeiro e Gabriel Cunha da Silva; e
  • Crime de lesão corporal culposa, contra Lourenço Albuquerque Mayer Brenha.

O juiz, Gustavo Gomes Kalil, destacou:

“...o crime de lesões corporais é de natureza gravíssima (...), atestando que houve deformidade incurável/vício estético. Aliás, em Juízo, foi nítido que a vítima perdeu metade de sua orelha, foi literalmente mutilado. Se isto não é lesão gravíssima, o que será?”...

“houve risco de vida e deformidade permanente relacionada às cicatrizes com impacto estético, secundárias às cirurgias de urgência em tórax e abdome. Como se não bastasse, a vítima passou por uma cirurgia de quatro horas e meia, conforme informação médica”.

Desde abril de 2018, José Phillipe conseguiu o benefício da prisão domiciliar.

Histórico criminal

Segundo informações, o condenado faz parte de uma família que é dona de uma usina de açúcar, faz negócios no ramo da pecuária e atua no mercado financeiro, e seu histórico com a polícia começou logo aos 16 anos.

Ele já foi acusado de crimes como lesão corporal, violência doméstica, violação de domicílio e constrangimento ilegal. Portanto, sua ficha criminal revela um padrão agressivo.

A Justiça considerou seu perfil como o de um jovem “instável e agressivo”, com comportamento reiterado de violência, especialmente contra mulheres.

Mesmo diante de todo esse histórico, Philippe ficou apto na etapa de investigação social do concurso para delegado da Polícia Civil de São Paulo.

A Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo disse, em anota, que a análise levou em conta certidões cíveis e criminais, cartas de referência e a reabilitação criminal apresentada pelo candidato:

“Após a avaliação, não foram identificados impedimentos legais à sua participação no certame. A aprovação nesta etapa não garante automaticamente o ingresso na carreira...O candidato ainda passará por outra fase e, caso seja nomeado, permanecerá sob avaliação durante o estágio probatório de três anos. Se, nesse período, surgirem elementos que comprometam os requisitos de conduta ilibada, ele poderá ser excluído da carreira.”

Análise jurídica

Investigação social

A Investigação Social, justificada pela indisponibilidade do interesse público, tem por objetivo avaliar aspectos da vida dos candidatos em sociedade que permitam concluir que seus hábitos e comportamentos adequam-se à investidura no cargo e ao exercício de suas prerrogativas, em cumprimento da exigência de conduta social ilibada dos pretendentes ao cargo de delegado.

Na fase de investigação social os candidatos passam por uma apuração que busca identificar condutas inadequadas e reprováveis do candidato nos mais diversos aspectos da vida em sociedade, incompatíveis com o exercício da função de Delegado de Polícia.

Entre os aspectos a se investigar sobre a vida dos candidatos em sociedade, incluem-se suas relações interpessoais e eventuais transgressões à ordem jurídica vigente, que não se limitam à busca por inquéritos, processos e sentenças.

A fase de investigação social pode levar em consideração:

  • Antecedentes profissionais e ocupacionais;
  • Relações sociais incompatíveis com o exercício da função;
  • Inadimplemento de obrigações contratuais;
  • Uso de drogas ilícitas.

A investigação social em concursos públicos é uma fase do certame que, além de servir à apuração de infrações criminais, presta-se a avaliar idoneidade moral e lisura daqueles que desejam ingressar nos quadros da administração pública.

Eliminação de candidato

Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça entendem que não se pode eliminar o candidato do concurso público, na fase de investigação social, em virtude da existência de termo circunstanciado, inquérito policial ou ação penal sem trânsito em julgado ou extinta pela prescrição da pretensão punitiva.

O Supremo consolidou a questão no julgamento do TEMA 22:

Tese fixada no TEMA 22, do STF: “Sem previsão constitucionalmente adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal”.

A eliminação do candidato do concurso na fase de investigação social, nessa hipótese, pressupõe:

  • I – Condenação definitiva; e
  • II – Relação de incompatibilidade entre a natureza do crime em questão e as atribuições do cargo concretamente pretendido, a ser demonstrada de forma motivada por decisão da autoridade competente”.

Mas o Supremo não parou por aí, já que, posteriormente, consolidou um entendimento mais abrangente sobre o tema.

Suspensão dos direitos políticos

O artigo 15, III, da Constituição Federal, determina que em caso de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, os direitos políticos são suspensos.

A interpretação predominante na doutrina e jurisprudência é no sentido de que, enquanto estiver sendo cumprida a pena imposta, o condenado criminalmente permanece com os direitos políticos suspensos.

Daí surge a pergunta: pode-se invocar a suspensão dos direitos políticos para impedir a nomeação e posse do condenado aprovado em concurso público? Muitos editais trazem esse requisito, tentando impedir a nomeação daquele que está cumprindo pena.

Em âmbito federal, a Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, exige como requisito básico para investidura em cargo público, dentre outros, o gozo dos direitos políticos.

Mas o STF tem entendimento pacificado sobre a questão em sentido contrário. E essa pacificação se deu no julgamento do TEMA 1.190, onde fixou-se a seguinte tese:

TEMA 1.190: É inconstitucional, por violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (CF, artigo 1º, III e IV), a vedação a que candidato aprovado em concurso público venha a tomar posse no cargo, por não preencher os requisitos de gozo dos direitos políticos e quitação eleitoral, em razão de condenação criminal transitada em julgado (CF, artigo 15, III), quando este for o único fundamento para sua eliminação no certame, uma vez que é obrigatoriedade do Estado e da sociedade fornecer meios para que o egresso se reintegre à sociedade. O início do efetivo exercício do cargo ficará condicionado ao regime da pena ou à decisão judicial do juízo de execuções, que analisará a compatibilidade de horários.

Portanto, o STF decidiu que condenados aprovados em concursos públicos podem ser nomeados e empossados, desde que não haja incompatibilidade entre o cargo a ser exercido e o crime cometido nem conflito de horários entre a jornada de trabalho e o regime de cumprimento da pena.

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes explicou que a suspensão dos direitos políticos em caso de condenação criminal não alcança direitos civis e sociais. “O que a Constituição Federal estabelece é a suspensão do direito de votar e de ser votado, e não do direito a trabalhar”, assinalou, ressaltando que a ressocialização dos presos no Brasil é um desafio que só pode ser enfrentado com estudo e trabalho.

Constou no acórdão que gerou o TEMA 1.190 que:

“o direito ao trabalho é um direito social (art. 6º da CF/1988) que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III e IV, da CF/1988), sendo meio para se construir uma sociedade livre, justa e solidária; para se garantir o desenvolvimento nacional; bem como para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, I, II, e III, da CF/1988); não se confundindo com os direitos políticos...

Não é razoável que o Poder Público, principal responsável pela reintegração do condenado ao meio social, obstaculize tal finalidade, impossibilitando a posse em cargo público de candidato que, a despeito de toda a dificuldade enfrentada pelo encarceramento, foi aprovado em diversos concursos, por mérito próprio.”

Requisitos rigorosos

As carreiras de segurança pública são atividades típica de Estado, com autoridade sobre a vida e a liberdade de toda a coletividade, em razão do que é imperativo que os ocupantes desses cargos estejam submetidos a critérios mais severos de controle.

A lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determinados cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas. Esse é o caso, por exemplo, das carreiras da magistratura, das funções essenciais à justiça e da segurança pública (CRFB/1988, art. 144), sendo vedada, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade.

Portanto, a exigência de idoneidade moral para o ingresso em carreiras de segurança pública é plenamente legítima e coerente com o texto constitucional. Isso justificaria a exclusão do candidato em decorrência do histórico criminal.

Intranscendência da pena

A doutrina e a jurisprudência se dividem em relação à possibilidade de exclusão de candidato em decorrência da existência de um parente preso ou condenado.

Aqui entra em discussão a aplicação do princípio da intranscendência da pena (ou princípio da pessoalidade). O fundamento vem do artigo 5º, XLV, da Constituição Federal, pelo qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado.

Investigação social:

Portanto, muitos operadores do direito veem a exclusão de candidato a cargo público pelo simples fato de uma condenação de um parente ou cônjuge na seara criminal como uma afronta ao princípio da intranscendência da pena. O candidato estaria sendo punido por uma condenação criminal de outra pessoa.

No caso ora analisado, importante pontuar que o cargo pretendido pelo candidato é o de delegado de polícia, que exige, de fato, uma avaliação mais rigorosa na fase de investigação social. Isso porque, dentre as atribuições do cargo, estão a de presidir inquéritos policiais, chefiar investigações criminais, comandar operações policiais, efetuar prisões.

Podemos concluir que, em regra, não se admite a exclusão de candidato em concurso público pelo simples fato de ter um parente ou cônjuge preso ou condenado criminalmente, sob pena de afronta ao princípio da intranscendência da pena, salvo quando se tratar de cargos específicos, como os da área de segurança pública (policiais, delegados, investigador de polícia, guarda municipal), que exigem uma avaliação mais rigorosa do candidato.

Além do mais, um histórico criminal extenso e desabonador também pode servir de justificativa razoável para a exclusão do candidato do certame.  

Ótimo tema para provas de direito constitucional, direito administrativo e direito penal. Importante acompanhar o desenrolar desse caso.


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