Flávio Dino suspende eliminação de candidata a delegada casada com condenado por tráfico de drogas
Foto: Gustavo Moreno/STF

Flávio Dino suspende eliminação de candidata a delegada casada com condenado por tráfico de drogas

Prof. Gustavo Cordeiro

A investigação social é uma das fases mais temidas dos concursos para carreiras policiais. O que poucos candidatos sabem é que ela não pode servir de instrumento para punir pessoas por condutas de terceiros. Foi exatamente isso que o Ministro Flávio Dino deixou claro ao deferir liminar na Reclamação 86.085/SC, suspendendo a eliminação de uma candidata a Delegada de Polícia que havia sido excluída do certame por ser casada com um homem condenado por tráfico de drogas.

A decisão reacende um debate crucial para quem se prepara para concursos de segurança pública: até onde vai a análise da vida pregressa do candidato? É possível eliminar alguém por condutas de familiares? E quando o crime sequer existia no momento em que o relacionamento começou?

Se você está se preparando para concursos de Delegado, Promotor ou qualquer carreira que exija investigação social, este artigo é leitura obrigatória. Vamos analisar o caso, os fundamentos constitucionais e o que você precisa saber para sua prova.

O caso concreto: eliminação por relacionamento com condenado

A candidata foi aprovada nas fases anteriores do concurso para Delegado de Polícia Substituto de Santa Catarina e convocada para a 5ª fase: a investigação social. No resultado preliminar, foi considerada NÃO HABILITADA.

O motivo? Seu cônjuge havia sido condenado pela prática do delito tipificado no art. 33 da Lei nº 11.343/2006 (tráfico de drogas). Segundo o ato administrativo, a candidata mantinha relacionamento com pessoa cuja sentença “destacava compartilhamento de lucros oriundos do tráfico de drogas”.

Contudo, há elementos cruciais que a banca não havia considerado: à época dos fatos criminosos (2016), a candidata sequer conhecia aquele que viria a ser seu marido. Além disso, a sentença penal declarou extinta a punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva, nos termos do art. 109, V, do Código Penal.

Outro ponto relevante: desde 2016, o cônjuge trabalha regularmente na mesma empresa, primeiro como representante comercial e, a partir de 2024, como gerente de vendas e serviços. A própria candidata prestou espontaneamente as informações sobre os antecedentes do marido no formulário de investigação social, evidenciando sua boa-fé.

O caminho processual até o STF

Inconformada, a candidata impetrou Mandado de Segurança perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O Relator chegou a deferir a liminar, suspendendo os efeitos da inabilitação e garantindo a permanência da candidata no certame.

Todavia, a 2ª Câmara de Direito Público do TJSC, ao julgar o mérito, denegou a segurança e revogou a liminar. O fundamento central foi que o edital previa expressamente a análise dos “relacionamentos interpessoais” dos candidatos, e que a opção livre e consciente de manter relacionamento com pessoa condenada por tráfico seria incompatível com o cargo de Delegada de Polícia.

O TJSC entendeu que não se tratava de violação à pessoalidade da pena, mas de avaliação de risco institucional. O tribunal destacou as prerrogativas da carreira policial (porte de arma, acesso a investigações sigilosas, combate ao tráfico) e concluiu que a administração não agiu de forma ilegal ou abusiva.

A candidata interpôs Recurso Extraordinário, ao qual foi negado seguimento com base no Tema 485 da Repercussão Geral, que veda ao Judiciário substituir a banca examinadora. Após agravo interno desprovido, restou à candidata ajuizar Reclamação Constitucional diretamente ao STF, sob o argumento de que a decisão aplicou incorretamente o paradigma.

A decisão do Ministro Flávio Dino: intranscendência da pena

O Ministro Flávio Dino, ao analisar o pedido liminar na Reclamação 86.085/SC, identificou a presença dos requisitos necessários para a concessão da medida: fumus boni iuris e periculum in mora.

Quanto ao fumus boni iuris, Dino reconheceu plausibilidade na tese de que a decisão do TJSC pode estar em desacordo com princípios constitucionais fundamentais: a presunção de inocência (art. 5º, LVII), a individualização da pena e, principalmente, a intranscendência da sanção penal (art. 5º, XLV).

Investigação social:

Nas palavras do Ministro: “não sendo legítimo impor à candidata restrições decorrentes de fato que não lhe é imputável“. Em outras palavras, a candidata não pode ser penalizada por uma conduta praticada por terceiro, sobre a qual ela não tem qualquer responsabilidade e que ocorreu antes mesmo de existir qualquer vínculo entre eles.

O periculum in mora foi caracterizado pela possibilidade de perda definitiva do direito de prosseguir no concurso, o que representaria “frustração de legítima expectativa decorrente de anos de preparação e estudo“.

Com base nesses fundamentos, o Ministro deferiu a liminar para suspender a tramitação do processo de origem e assegurar o regular prosseguimento da candidata no concurso até ulterior deliberação do STF. Determinou ainda a apresentação de documentos complementares sobre a situação do cônjuge, incluindo certidão criminal atualizada e comprovação de vínculos laborais nos últimos dez anos.

Os fundamentos constitucionais em jogo

Princípio da intranscendência da pena

O art. 5º, XLV, da Constituição Federal estabelece que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado“. Trata-se do princípio da intranscendência, pessoalidade ou responsabilidade pessoal da pena, que impede que sanções de natureza penal atinjam terceiros.

Embora a eliminação em concurso público não seja tecnicamente uma “pena” no sentido do Direito Penal, a doutrina constitucional reconhece que o princípio tem aplicação mais ampla, vedando qualquer forma de responsabilização de uma pessoa por fato exclusivamente imputável a outra. A eliminação da candidata por conduta criminosa de seu cônjuge representa, em essência, uma extensão indevida dos efeitos da condenação penal para pessoa que não integrou a relação jurídico-processual.

Presunção de inocência e reabilitação

Há ainda outro aspecto relevante: a punibilidade do cônjuge foi extinta pela prescrição. Embora a prescrição não apague os efeitos civis da sentença condenatória, ela representa o reconhecimento estatal de que o direito de punir se exauriu. Permitir que uma condenação prescrita sirva de fundamento para eliminar a cônjuge do condenado seria atribuir a essa decisão efeitos perpétuos que nem mesmo o próprio condenado suporta.

Além disso, o fato de o cônjuge estar empregado regularmente desde 2016 demonstra sua reintegração social, um dos objetivos da execução penal (art. 1º da LEP). Penalizar a candidata por um relacionamento com pessoa que já cumpriu sua dívida com a sociedade contraria a própria lógica do sistema penal.

O Tema 485 da Repercussão Geral e seus limites

O TJSC fundamentou sua decisão no Tema 485 do STF (RE 632.853), segundo o qual: “Não compete ao Poder Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a elas atribuídas, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade“.

O problema é que o próprio paradigma contém uma ressalva expressa: o controle judicial é cabível quando há ilegalidade ou inconstitucionalidade. É exatamente essa a hipótese alegada pela candidata: a eliminação com base em conduta de terceiro viola frontalmente o art. 5º, XLV, da Constituição.

O Ministro Dino reconheceu que a situação “aparenta enquadrar-se no entendimento firmado por esta Suprema Corte no paradigma invocado“, justamente porque configura afronta a preceitos constitucionais. A aplicação automática do Tema 485 para blindar qualquer decisão de banca examinadora, sem considerar a existência de vícios de constitucionalidade, representa distorção do precedente.

Conexão com concursos públicos

O tema é de altíssima relevância para candidatos às carreiras de segurança pública. A investigação social está prevista em praticamente todos os editais de concursos para Delegado, Agente, Escrivão, Perito e outras carreiras policiais. Conhecer os limites dessa fase é essencial.

Pontos de atenção para provas:

A investigação social pode analisar a vida pregressa do candidato, mas encontra limites nos direitos fundamentais. O princípio da intranscendência da pena veda a responsabilização por fatos de terceiros, mesmo que sejam familiares. A prescrição extingue a punibilidade e seus efeitos não podem ser perpetuados para prejudicar terceiros. O Tema 485 do STF não blinda decisões de banca que violem a Constituição, pois a própria tese ressalva casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade.

Como o tema pode aparecer: Questões sobre limites do controle judicial de concursos, aplicação do princípio da intranscendência, e alcance da investigação social. Também pode surgir em provas discursivas sobre direitos fundamentais e controle de atos administrativos.

Questão comentada

(Questão inédita – Estilo CESPE/CEBRASPE) Maria foi aprovada em todas as fases anteriores do concurso para Delegada de Polícia. Na fase de investigação social, foi eliminada pelo fato de seu irmão ter sido condenado criminalmente por estelionato há 15 anos, com pena já cumprida. Maria impetrou mandado de segurança, alegando violação ao princípio da intranscendência da pena. A respeito dessa situação hipotética, assinale a alternativa correta:

A) A eliminação é válida, pois a investigação social pode analisar livremente todos os aspectos da vida do candidato, incluindo a conduta de familiares, sem qualquer limitação constitucional.

B) O Poder Judiciário não pode analisar a decisão da banca examinadora, conforme o Tema 485 da Repercussão Geral do STF, que veda qualquer controle judicial sobre atos de concurso público.

C) A eliminação viola o princípio da intranscendência da pena, pois Maria não pode ser responsabilizada por conduta exclusivamente imputável a terceiro, cabendo controle judicial por inconstitucionalidade.

D) A situação seria diferente se a condenação do irmão ainda estivesse vigente, pois somente a prescrição ou cumprimento da pena afastam a possibilidade de eliminação do familiar.

E) O mandado de segurança é via inadequada, pois a candidata deveria ajuizar reclamação constitucional diretamente ao STF.

Gabarito: C

Comentário:

A alternativa C está correta porque o princípio da intranscendência da pena (art. 5º, XLV, CF) impede que alguém seja penalizado por conduta de terceiro. A eliminação de Maria por crime cometido pelo irmão viola esse preceito constitucional, autorizando o controle judicial mesmo diante do Tema 485, que ressalva expressamente os casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade.

A alternativa A está errada porque a investigação social, embora ampla, encontra limites nos direitos fundamentais.

A alternativa B está incorreta porque distorce o Tema 485, que admite controle judicial em casos de inconstitucionalidade.

Já a alternativa D está errada porque o problema não é a vigência da condenação, mas o fato de se responsabilizar terceiro por conduta alheia.

A alternativa E está incorreta porque o mandado de segurança é via adequada contra ato administrativo ilegal, sendo a reclamação cabível apenas após esgotamento de instâncias com aplicação indevida de precedente vinculante.

Fechamento estratégico: o que você precisa memorizar

A decisão do Ministro Flávio Dino na Reclamação 86.085/SC representa importante marco na definição dos limites da investigação social em concursos públicos. Para sua prova, guarde os seguintes pontos:

O princípio da intranscendência da pena (art. 5º, XLV, CF) impede a responsabilização de candidato por conduta criminosa de terceiros, ainda que sejam familiares ou cônjuges. A investigação social tem limites constitucionais e não pode servir como instrumento de punição indireta. O Tema 485 do STF não blinda atos de banca que violem a Constituição, pois a própria tese ressalva casos de ilegalidade ou inconstitucionalidade. A prescrição extingue a punibilidade e não pode ter seus efeitos perpetuados para prejudicar terceiros inocentes.

Fique atento: este caso ainda será julgado no mérito pelo STF, mas a concessão da liminar já sinaliza a tendência da Corte em proteger candidatos contra eliminações baseadas em responsabilidade objetiva por atos de terceiros. Para carreiras policiais, conhecer esses limites pode ser a diferença entre a aprovação e uma eliminação indevida.


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