* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) ajuizaram, no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1207), a fim de reconhecer a possibilidade de outros profissionais de saúde, como enfermeiros, realizarem o procedimento de aborto legal.
A ADPF foi distribuída ao ministro Edson Fachin, que já relata outra ação pedindo que o STF garanta possibilidade de aborto nas hipóteses previstas em lei (ADPF 989).
O pedido da ação é pela derrubada da interpretação que limita o procedimento a profissionais de medicina.
Segundo os autores da ADPF, a interpretação literal do Código Penal de que só o médico pode fazer o aborto legal leva a uma situação de violação de direitos. O partido e a Associação defendem que essa restrição exclui outros profissionais de saúde que também são habilitados a realizar o procedimento, como os enfermeiros, conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Aborto
Mas o que diz o artigo 128 do código penal?
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A restrição do procedimento do aborto legal apenas aos médicos representa, segundo os autores, uma barreira ao acesso ao aborto legal, dificultando o atendimento a mulheres, meninas e pessoas gestantes, principalmente em regiões onde há escassez desses profissionais.
“Além de contrariar recomendações internacionais em saúde reprodutiva, a restrição a uma categoria profissional em saúde, a medicina, por constituir obstáculo ao acesso efetivo ao aborto legal, conflita com acordos e tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro, como a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e o Pacto de São José da Costa Rica, especialmente no que se refere à proteção dos direitos à saúde, à vida digna, ao projeto de vida e à vedação à tortura, a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”
Em resumo, a restrição do aborto apenas aos médicos violaria:
- O direito à saúde;
- O direito à dignidade humana; e
- O direito ao livre exercício da profissão.
Argumentos para a não restrição
Como fundamento para a extensão da realização do aborto por outros profissionais de saúde, o PSOL e a Aben argumentaram que se trata de um procedimento de baixa complexidade, possível de ser realizado nas unidades de atenção primária em saúde por profissionais capacitados e por métodos eficazes e seguros, ou mesmo pela própria mulher.
A ação também enfatiza que enfermeiros e obstetrizes já realizam procedimentos, como partos sem complicações e inserção de Dispositivo Intrauterino (DIU), que demonstrariam sua capacidade para garantir um aborto seguro dentro dos parâmetros legais.
Assim, a providência seria uma forma de eliminar um dos principais obstáculos à realização do aborto legal no país.
Hipóteses para realização do aborto
Para a OMS, em gestações até 12 semanas, seria recomendada a possibilidade de realização do aborto:
- Pela própria gestante (aborto autoadministrado);
- Agentes comunitários de saúde;
- Farmacêuticos;
- Profissionais de medicina tradicional e complementar;
- Enfermeiros;
- Parteiras; e
- Médicos.
Ainda segundo a OMS, em gestações acima de 12 semanas, seria recomendada/sugerida a possibilidade de realização do aborto:
- Médicos;
- Enfermeiros; e
- Parteiras.
Atualmente, no Brasil, permite-se o aborto em três hipóteses:
Portanto, o direito positivado prevê duas hipóteses permitidas de aborto: risco para a mãe e gravidez resultante de estupro. Em seguida, a terceira hipótese permissiva do aborto decorre de construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, na ADPF 54, declarou inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta que os artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, tipifica.
Os autores da ADPF 1207 ressaltaram que “a ampliação das possibilidades de cuidado ao aborto legal não significa a prescindibilidade da atenção médica. Pelo contrário: há casos em que o cuidado médico é insubstituível devido à complexidade, como nos casos de aborto de segundo ou terceiro trimestre para salvar a vida da pessoa gestante e de anencefalia ou outras malformações, por exemplo.”
Desatualização científica
Por todas as razões expostas, a restrição aos médicos da possibilidade de realização do aborto legal demonstraria uma desatualização científica do artigo 128, do código penal, que estaria em desconformidade com:
1º) As recomendações internacionais em saúde reprodutiva;
2º) A prática em saúde baseada em evidências; e
3º) Os compromissos assumidos pelo Brasil por meio de acordos e tratados internacionais ratificados pelo país limita o acesso à saúde e acarreta barreiras trágicas para a vida de meninas e mulheres que buscam o aborto legal, em particular as mais vulneráveis e aquelas que residem em regiões onde não há cobertura de saúde de média e alta complexidade.
O debate acerca do direito à vida x dignidade da mulher é sempre acalorado, e geralmente passa por questões religiosas, já que um dos dogmas do cristianismo é exatamente a proteção do direito à vida, o que, para muitos, começa com a concepção, e não com o nascimento.
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