* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Maioria apertada
Em 2007, chegou ao Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3901, ajuizada contra as Leis 6.140/98 e 6.468/2002, do estado do Pará, que tratam de horários permitidos para a realização de provas de concursos e exames vestibulares nas redes de ensino pública e privada.
Para o Procurador-Geral da República, ao permitir a realização de provas e exames das 18 horas de sábado até as 18 horas da sexta-feira seguinte, as leis paraenses teriam o claro objetivo de respeitar os adeptos da denominada guarda sabática, “período que se estende do crepúsculo da sexta-feira ao crepúsculo do sábado, professada por seguidores de determinadas denominações religiosas”.
Guarda sabática é a prática religiosa de reservar o sábado como um dia de descanso e culto, do pôr do sol de sexta-feira ao pôr do sol de sábado. Adotada por fiéis de religiões como o Judaísmo e o Adventismo do Sétimo Dia, a guarda sabática implica a abstenção de trabalho e atividades seculares durante esse período, e busca respeitar a liberdade de consciência e crença.
Conforme a ação, as leis questionadas, de iniciativa parlamentar, ao estabelecerem período para a aplicação de provas de concursos públicos, teriam contrariado a Constituição Federal, que afirma, em seu art. 61, ser de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo a proposição de leis que disponham sobre provimento de cargos públicos.
CF Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: ... II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração; b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios; c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria...
A ação alega, ainda, que as normas questionadas também não poderiam dispor sobre organização e funcionamento da administração estadual, conforme disposto no art. 84 da Constituição. E quanto aos estabelecimentos de ensino particulares, haveria afronta ao art. 22 da Carta Magna, já que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional.
Também se discute a autonomia universitária.
Normas
Mas o que diz, de fato, as normas impugnadas? Vejamos:
Ausência em aulas
Lei estadual nº 6.140/1998, com redação conferida pela Lei nº 6.468/2002.
Determina o período para a realização das provas de concursos públicos e exames vestibulares no Estado do Pará e dá outras providências.
Art. 1º. As provas de concursos públicos e exames vestibulares no Estado do Pará serão realizadas no período compreendido entre às 18:00 horas de sábado e às 18:00 horas da sexta-feira seguinte.
Parágrafo único - Esta Lei incidirá sobre todas as instituições de ensino, tanto da rede pública quanto as instituições da rede privada.
Art. 2º - As instituições de ensino, tanto da rede pública quanto da rede privada, em todo o Estado, abonarão as faltas de alunos que, por motivo religioso comprovado, não possam freqüentar aulas e atividades acadêmicas no período compreendido entre às 18:00 horas das sextas-feiras e 18:00 horas de sábados.
§ 1° - Os alunos cujas crenças religiosas incidirem no previsto neste artigo comprovarão, no ato da matrícula, essa condição através de declaração da congregação religiosa a qual pertençam.
§ 2° - Caberá à instituição de ensino distribuir o aluno para reposição da carga horária.
O Governador do Estado do Pará peticionou na ADI, alegando que a norma impugnada encontra amparo na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que, alterada pela Lei 13.796, de 3 de janeiro de 2019, passou a prever que,
Ao aluno regularmente matriculado em instituição de ensino pública ou privada, de qualquer nível, é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de crença, o direito de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de prova ou de aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades, devendo-se-lhe atribuir, a critério da instituição.
Liberdade religiosa
A Constituição Federal garante a liberdade religiosa como um direito fundamental, que todos devem respeitar (artigo 5º, VI).
CF/88
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Ou seja, a Carta Magna indica a República Federativa do Brasil como um país laico, em que existe uma separação entre Estado e Religião, permitindo uma ampla liberdade religiosa.
Laicidade
A laicidade ganha força a partir do Iluminismo, que reforçou a necessidade da separação entre o Poder Público e a Igreja. Essa mistura entre fé e estado foi muito comum no absolutismo, e não trouxe bons frutos para a humanidade.
Benefícios trazidos pela laicidade:
- Assegura liberdade religiosa;
- Assegura tratamento igualitário entre as pessoas;
- Assegura autonomia individual;
- Assegura a pluralidade de pensamento e crença.
Mas a laicidade não significa que o Estado não possa dialogar ou firmar parcerias com a igreja. O que é vedado pela Constituição é a adoção de uma religião oficial, o favorecimento a uma igreja específica, a dependência e a vinculação a uma religião.
Importante não confundir laicidade com laicismo!
LAICIDADE | LAICISMO |
Não há uma relação de dependência ou favorecimento entre o Estado e uma religião específica, mas há garantia à liberdade religiosa, e há possibilidade de fomenta às diversas religiões. | Pensamento ideológico em que a religião é vista de forma negativa, pejorativa, devendo ser totalmente desconsiderada pelo Estado. É marcado pela intolerância religiosa e por medidas autoritárias. |
De acordo com o relator da ADI 3.901, ministro Edson Fachin, a liberdade religiosa apresenta uma dupla dimensão, tanto subjetiva quanto objetiva.
- Na esfera subjetiva, conecta-se ao desenvolvimento e à construção da personalidade.
- Na dimensão objetiva, por sua vez, dá base à neutralidade do Estado na perspectiva de sua não confessionalidade e do pluralismo democrático que o caracteriza.
Quanto à alegação de que a norma violaria a competência do Chefe do Executivo para tratar sobre provimento de cargos, Fachin asseverou que não se pode admitir uma interpretação extensiva que abarque a matéria relativa ao período de realização de concurso público, que é etapa anterior ao efetivo provimento.
Portanto, a norma impugnada não cuida de requisitos da carreira, mas de acesso e abertura dos cargos públicos, concretização evidente não apenas do direito à igualdade, mas também do direito à participação pública por meio do acesso aos cargos públicos.
Competência

Utilizou-se o mesmo entendimento para afastar a alegação de ofensa ao art. 84, VI, a, da CF/88 (usurpação da competência privativa do Governador do Estado para dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração estadual).
A norma impugnada trata de matérias que regem situação específica e pontual de determinada instituição de ensino, não interferindo diretamente na organização, funcionamento e atribuições da Administração Estadual e seus órgãos, não restando evidente, portanto, tratar-se de norma a ser confiada à especial atenção do Chefe do Poder Executivo.
Quanto à alegação de ofensa ao art. 22, XXIV, da CF/88 (competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional), o relator destacou o caráter específico da norma, que, em momento algum, buscou regulamentar e detalhar, de forma expressa, questões como a reposição de aulas.
Autonomia universitária
Também foi afastada a alegação de ofensa à autonomia universitária, já que a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira de que gozam as universidades não é irrestrita, na medida em que tal autonomia realiza-se com a observância da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional.
A determinação do período de realização dos exames de vestibulares pela norma paraense impugnada não ofende a autonomia administrativa que gozam as universidades, na medida em que tais entidades de ensino devem se submeter às normas vigentes.
Conclusão
O direito garantido no art. 5º, VI, da CF (liberdade religiosa e de crença) é integrado pelo disposto no art. 12 do Pacto de São José da Costa Rica, segundo o qual o direito à liberdade de consciência e de religião “implica a liberdade de conservar sua religião ou crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado”.
Por fim, considerando que o pluralismo democrático não prescinde de convicções religiosas particulares, o Supremo, por maioria apertada (6 x 5) julgou constitucional a norma estadual, validando o horário especial da guarda sabática para provas de concursos e vestibulares.
Ótimo tema para provas de direito constitucional.
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