Governo regulamenta aborto em crianças
Imagem: Cris Faga/Dragonfly Press/Folhapress

Governo regulamenta aborto em crianças

* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.

Entenda o que aconteceu

O Governo Federal publicou, no Diário Oficial da União, a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, com orientações para o aborto legal em crianças e adolescentes (Resolução CONANDA nº 258/2024).

O curioso é que o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do governo Lula, divulgou nota à imprensa informando que os representantes do governo votaram contra a resolução, o que não impediu sua aprovação pela maioria dos conselheiros.

A aprovação da resolução aconteceu em 23 de dezembro de 2024. Entretanto, ela foi suspensa por ordem do juiz federal Leonardo Tocchetto Pauperio, que atendeu a um pedido da senadora Damares Alves, ex-ministra no governo Bolsonaro.

Mas o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em decisão do desembargador Ney Bello, decidiu por autorizar a publicação no DOU com as orientações para a interrupção da gestação em crianças e adolescentes.

O desembargador ressaltou que a resolução “limita-se a cumprir e organizar um direito que já está previsto em lei”.

Ainda segundo Ney Bello:

A resolução tem “o potencial de proteger milhares de meninas, vítimas de violência sexual todos os anos, que sofrem novas violências ao buscar amparo do Estado para proteger seus direitos... Uma sociedade em que suas instituições privilegiam o embate ideológico e suas verdades pré-concebidas, sobre a sanidade, a liberdade e proteção de menores vítimas de violência está fadada ao fracasso enquanto aventura da modernidade racional”.

A senadora Damares Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, já se pronunciou, afirmando que irá recorrer da decisão na Justiça. Ela disse também que deve propor um projeto de decreto legislativo para derrubar o ato do executivo.

Disparou a senadora:

“Eu vou continuar essa luta, eu vou recorrer. Eu me sinto legítima pra fazer isso. Eu tenho legitimidade para recorrer e para continuar a luta. Eu entendo mais de criança que a CUT (Central Única dos Trabalhadores), que faz parte do Conanda. Eu tenho uma trajetória que me legitima a continuar essa luta”.

Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, por 35 votos a favor a 15 votos contrários, uma proposta de Emenda à Constituição que proíbe o aborto no Brasil, mesmo nas situações já autorizadas em lei ou por decisão do Supremo Tribunal Federal (PEC nº 164/2012).

A redação do artigo 5º, em caso de aprovação da PEC, ficaria dessa forma:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. 

Importante ressaltar que a PEC ainda tramita no Congresso Nacional, e encontra muita resistência para ser aprovada.

Efeitos na prática

Mas, na prática, em que consiste a Resolução CONANDA nº 258/2024, que regulamenta o aborto em crianças?

De forma objetiva, podemos dizer que a resolução viabiliza o processo de interrupção da gravidez em crianças e adolescentes que relatarem gestação “resultante de abuso sexual ou em caso de risco de vida da gestante ou anencefalia do feto”.

Entre as diretrizes está a prioridade ao desejo da criança ou adolescente em casos de divergência com os responsáveis legais, com suporte da Defensoria Pública ou Ministério Público.

A norma reafirma a interrupção legal da gestação como um direito humano em casos previstos na legislação, como gestação decorrente de violência sexual, risco de vida para a gestante ou fetos anencéfalos.

Análise jurídica

Atualmente, no Brasil, o aborto é permitido em três hipóteses:

Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessária a comprovação da causa de justificação. Tal comprovação poderá ser através de um laudo médico, ou um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia.

E para o caso de estupro não há necessidade de apresentação de Boletim de Ocorrência ou algum exame que comprove o crime. O relato da vítima à equipe médica é suficiente.

O código penal trata do aborto nos artigos 124 a 128. Vejamos.

CP

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena - detenção, de um a três anos.

...

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Portanto, o direito positivado prevê duas hipóteses permitidas de aborto: risco para a mãe e gravidez resultante de estupro. A terceira hipótese permissiva do aborto decorre de construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, na ADPF 54, declarou inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Em geral, a anencefalia impede a vida extrauterina do bebê, tornando a vida inviável.

O cerne da discussão na ADPF 54 foi sopesar o aparente conflito entre os interesses daqueles que desejam proteger todos os seres humanos, desde a concepção, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência, e aqueles que desejam proteger os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade, sua liberdade, sua autodeterminação, sua saúde e seus direitos sexuais e reprodutivos.

No final, ficou decidido que “A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”.

O debate acerca do direito à vida x dignidade da mulher é sempre acalorado. Geralmente passa-se por questões religiosas, já que um dos dogmas do cristianismo é exatamente a proteção do direito a vida, o que, para muitos, começa com a concepção, e não com o nascimento, motivo pelo qual a ementa da ADPF 54 começa dessa forma:

ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.

A resolução CONANDA nº 258/2024 traz alguns conceitos importantes. Vejamos os principais:

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A resolução dá especial destaque a medidas de acolhimento, como escuta especializada e depoimento especial, evitando sempre a revitimização, proibindo qualquer tipo de violência institucional.

Revitimização: termo utilizado para definir o fenômeno de sistematização da violência, no qual a vítima experimenta um sofrimento continuado e repetitivo, mesmo após cessada a violência originalmente sofrida.

Além disso, a resolução ainda apresenta protocolos, no atendimento à saúde reprodutiva da criança e do adolescente. Eles asseguram acesso rápido e seguro aos serviços, com capacitação obrigatória de profissionais para atender casos de violência sexual de forma humanizada e respeitosa.

A resolução garante a autonomia da criança e do adolescente no processo de decisão sobre interrupção legal da gestação, assegurando privacidade e confidencialidade, vedando a transmissão de informações pautadas em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais.

Portanto, havendo divergência entre a vontade da criança e a dos responsáveis, a resolução determina que a prioridade seja o interesse da criança, com possibilidade de intervenção do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Resolução 258/2024

Art. 26. Nos casos de divergência entre a vontade da criança e a dos genitores e/ou responsáveis, os profissionais do SGDCA devem proporcionar um ambiente acolhedor e apropriado para ouvir os pais ou responsáveis legais, sempre priorizando o apoio e o respeito à vontade expressa pela criança ou adolescente.

Parágrafo Único. Persistindo a divergência, os profissionais devem acionar a Defensoria Pública e o Ministério Público para a promoção de orientações legais sobre os direitos da criança ou adolescente e os procedimentos a serem seguidos, adotando as medidas legais cabíveis, caso o conflito seja insuperável.

A resolução finaliza proibindo a imposição de obstáculos de acesso à interrupção legal da gestação, já que a interrupção não dependerá:

  • I – Da lavratura de boletim de ocorrência relativo à situação de violência sexual;
  • II – De decisão judicial autorizativa do procedimento;
  • III- Da comunicação ao Conselho Tutelar ou a outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente;
  • IV – Da comunicação aos responsáveis legais quando isto puder ocasionar danos à criança ou adolescente, nos casos em que houver suspeita de violência sexual ocorrida na família.

O tema é extremamente polêmico, mas com alta probabilidade de ser cobrado em prova de direito da criança e do adolescente e direito constitucional, o que requer atenção especial.


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