
Imagine a seguinte situação: João é abordado em uma blitz policial e, sabendo que possui antecedentes criminais, se identifica como “Pedro Silva” para evitar problemas. Minutos depois, a polícia descobre a mentira e João confessa sua verdadeira identidade. Houve crime mesmo sem nenhum prejuízo efetivo?
A resposta é sim, e agora o Superior Tribunal de Justiça deixou isso cristalino. No dia 14 de maio, a Terceira Seção julgou o Tema 1255 e estabeleceu de forma definitiva que o crime de falsa identidade é formal, consumando-se no exato momento da declaração falsa, independentemente de qualquer resultado prático.
A decisão foi unânime, relatada pelo Ministro Joel Ilan Paciornik, e resolve uma controvérsia que vinha gerando divergências nos tribunais brasileiros há anos.
O crime de falsa identidade na prática
Antes de entendermos a decisão, é importante compreender exatamente o que configura o crime de falsa identidade. O artigo 307 do Código Penal é claro:
"Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem".
Na prática, isso acontece quando alguém:
- Se identifica com nome diferente do verdadeiro;
- Fornece dados pessoais incorretos (data de nascimento, naturalidade, etc.);
- Atribui identidade falsa a outra pessoa;
- Tudo isso com a finalidade específica de obter vantagem ou causar dano.
Perceba, o bem jurídico protegido é a fé pública.
Mais especificamente, a confiança que temos nas relações sociais quanto à identidade das pessoas.
É diferente do uso de documento falso (artigo 304), pois aqui não há necessariamente um documento envolvido – basta a declaração verbal falsa.
A controvérsia que dividia os tribunais
Até a decisão do STJ, existia uma divergência fundamental sobre quando exatamente o crime se consumava. Assim, havia duas correntes principais:
Primeira corrente: o crime só se consumaria quando houvesse efetivo prejuízo ou vantagem obtida. Ou seja, se a polícia descobrisse imediatamente a mentira, não haveria crime consumado.
Segunda corrente: o crime se consuma no momento da declaração falsa, independentemente de qualquer resultado posterior.
No entanto, essa divergência criava situações estranhas.
Isto porque, em alguns tribunais, réus eram absolvidos porque a polícia havia descoberto rapidamente a mentira. Em outros, pessoas eram condenadas mesmo sem qualquer prejuízo efetivo. A insegurança jurídica era evidente.
A solução do STJ
O Ministro Joel Ilan Paciornik construiu fundamentação sólida para resolver definitivamente a questão. A análise partiu da própria estrutura do tipo penal e da natureza jurídica do crime.
Crime formal vs. crime material
Para entender a decisão, é essencial compreender a diferença entre crimes formais e materiais:
Crimes materiais: exigem um resultado naturalístico para a consumação. Por exemplo: no homicídio, é preciso que a vítima efetivamente morra.
Crimes formais: consumam-se com a simples prática da conduta descrita no tipo, independentemente de resultado naturalístico. Exemplo: na extorsão, o crime se consuma com a ameaça, mesmo que a vítima não pague.
O STJ analisou cuidadosamente a redação do artigo 307 e concluiu que se trata de crime formal.
A razão é técnica: embora o tipo mencione finalidades específicas (“obter vantagem” ou “causar dano”), essas são elementos subjetivos do injusto – ou seja, devem estar presentes na intenção do agente, mas não precisam ser efetivamente alcançadas.
Elementos essenciais do crime
Conforme a decisão do STJ, para a configuração do crime de falsa identidade são necessários:
Elemento objetivo: conduta comissiva de atribuir dados inexatos sobre identidade (própria ou alheia). O verbo “atribuir” exige uma ação positiva – não há falsa identidade por omissão.
Elemento subjetivo: consciência e voluntariedade na atribuição da identidade falsa, além da finalidade específica de obter vantagem ou causar dano.
Momento da consumação: exato instante em que o agente fornece os dados inexatos, sendo irrelevante se:
- O destinatário acredita ou não na informação;
- Há efetivo prejuízo a terceiros;
- O agente obtém a vantagem pretendida;
- A mentira é descoberta posteriormente.
Relação com a Súmula 522 do STJ
A decisão do Tema 1255 se harmoniza perfeitamente com a Súmula 522 do STJ, aprovada em 2015: “A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa”.
Ora, a Súmula já havia resolvido a questão da autodefesa, deixando claro que o direito constitucional de não se autoincriminar não autoriza fornecer identidade falsa. Como explicam os tribunais superiores, a autodefesa permite:
- Permanecer em silêncio;
- Mentir sobre os fatos (sem imputá-los a terceiros inocentes);
- Não colaborar com as investigações.
Mas não permite usar documentos falsos ou atribuir identidade falsa. Esses são crimes autônomos que ofendem a fé pública e não se confundem com o exercício da autodefesa.
Casos práticos ilustrativos
Para tornar a decisão mais clara, vejamos então alguns exemplos práticos:
Caso 1 – Crime consumado:
Maria é abordada em uma operação policial e se identifica como “Ana Santos”, fornecendo dados pessoais falsos. Segundos depois, um policial que a conhece revela sua verdadeira identidade.
Resultado: Crime consumado no momento da declaração falsa.
Caso 2 – Crime consumado:
Carlos apresenta-se como “José Silva” em uma delegacia, mas esquece de trazer documentos. O delegado desconfia e pede para ele voltar no dia seguinte com documentos. Carlos não retorna.
Resultado: Crime consumado, mesmo sem documentos e sem vantagem obtida.
Caso 3 – Crime consumado:
Durante uma blitz, Roberto diz chamar-se “Paulo” e fornece outros dados falsos. A operação termina sem que a polícia descubra a mentira, e Roberto segue viagem normalmente.
Resultado: Crime consumado, independentemente de a mentira ter sido descoberta
Impactos na jurisprudência
Com a definição do Tema 1255, espera-se significativa uniformização da jurisprudência nacional. Tribunais que vinham absolvendo réus pela ausência de resultado naturalístico deverão revisar sua orientação.
A decisão também pode influenciar a análise de outros crimes formais contra a fé pública, reforçando a interpretação de que a consumação independe de resultados práticos quando a própria estrutura do tipo assim indica.
Diferenciação com crimes conexos
Inclusive, é importante não confundir a falsa identidade com outros crimes similares:
Crime | Diferença principal | Exemplo |
Uso de documento falso (art. 304) | Exige documento material falsificado | Apresentar RG falso |
Falsidade ideológica (art. 299) | Falsidade em documento verdadeiro | Declarar renda falsa em formulário |
Denunciação caluniosa (art. 339) | Imputação de crime a inocente | Acusar falsamente alguém de roubo |
Na falsa identidade, basta a declaração verbal de dados incorretos sobre identidade, sem necessidade de documentos ou imputação de crimes.
A tese aprovada – “O delito de falsa identidade é crime formal, que se consuma quando o agente fornece, consciente e voluntariamente, dados inexatos sobre sua real identidade, e, portanto, independe da ocorrência de resultado naturalístico”.
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