STF decide que chamar Erika Hilton de homem não tipifica crime
Foto: Eugenio Novaes

STF decide que chamar Erika Hilton de homem não tipifica crime

*João Paulo Lawall Valle é Advogado da União (AGU) e professor de direito administrativo, financeiro e econômico do Estratégia carreira jurídica.

Entenda o caso

Uma recente decisão do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de rejeitar a ação movida pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) contra a ativista feminista Isabella Cêpa, trouxe à tona importantes discussões sobre os limites da liberdade de expressão e a aplicação da jurisprudência do STF em casos de transfobia. Este caso, que se originou em uma publicação nas redes sociais em 2020, levanta questões complexas sobre a interpretação legal e o papel dos tribunais superiores.

O processo teve início após uma publicação de Isabella Cêpa nas redes sociais. Na ocasião, Erika Hilton havia conquistado seu primeiro cargo eletivo. Ela foi eleita vereadora pelo PSOL em São Paulo com 50.508 votos, tornando-se a vereadora mais votada. Comentando os resultados das eleições municipais daquele ano na plataforma X (então Twitter), Isabella Cêpa escreveu: “Decepcionada. Com as eleições dos vereadores, óbvio. Quer dizer, candidatas verdadeiramente feministas não foram eleitas. A mulher mais votada é homem”, em clara referência a Erika Hilton.

Erika Hilton
Erika Hilton argumentou que tais palavras revelavam "inconformismo com a representatividade de pessoas transexuais no parlamento" e que a denunciada, por meio de um uso ilegítimo da liberdade de manifestação do pensamento, depreciou mulheres transgênero e travestis, grupo social tutelado pela Lei 7.716/1989 após o julgamento da ADO 26 e do MI 4.733 pelo STF.

Caso arquivado

A publicação de Isabella Cêpa resultou em uma denúncia inicial do Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Posteriormente, o caso foi remetido à Justiça Federal. A Procuradoria da República em São Paulo (MPF), ao receber os autos, decidiu pelo arquivamento da investigação. Para o procurador responsável, a postagem de Cêpa não constituiria crime. Hilton recorreu dessa decisão do MPF, mas a Justiça Federal concordou com o arquivamento.

Diante do arquivamento, a deputada Erika Hilton recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma Reclamação Constitucional. Em sua petição, ela sustentava que o arquivamento afrontava a jurisprudência do STF, que em 2019, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26/DF e no Mandado de Injunção (MI) 4.733/DF, equiparou a transfobia ao crime de racismo.

Análise Jurídica

Reclamação

A Reclamação é um instrumento processual do STF que serve para preservar a competência do tribunal ou garantir a autoridade de suas decisões, bem como assegurar a observância de enunciados de súmula vinculante e acórdãos proferidos em demandas repetitivas.

É crucial entender que a Reclamação não se presta à reavaliação de provas ou à reapreciação dos fundamentos de mérito da decisão judicial reclamada. A atuação do STF, neste contexto, limita-se a verificar se houve uma “aderência estrita” entre o ato questionado e o conteúdo vinculante dos precedentes apontados.

Em 2019, o Plenário do STF, reconhecendo a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em legislar sobre a matéria, firmou a tese de que "as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989".

O STF estabeleceu que o conceito de racismo, em sua dimensão social, transcende aspectos biológicos e abrange a discriminação contra grupos vulneráveis como o LGBTI+.

Argumentos

O Ministro Gilmar Mendes, em sua decisão, destacou uma distinção fundamental entre a argumentação do Ministério Público Federal (MPF) e os fundamentos utilizados pelo Juízo da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo.

Argumento do MPFFundamentação do Juízo da 7ª Vara Criminal Federal
A Procuradoria da República em São Paulo, ao promover o arquivamento, fundamentou-se na “inexistência de lei em sentido estrito que tipifique a transfobia como crime“, argumentando ser a construção jurisprudencial do STF inconstitucional por violar o princípio da reserva legal. O ministro Gilmar Mendes considerou essa argumentação “equivocada e infeliz” e que “não encontra ressonância na jurisdição constitucional exercida pela Suprema Corte”, pois desconsidera o conteúdo vinculante das decisões da ADO 26/DF e do MI 4.733/DF.Apesar de ter homologado o arquivamento, a decisão judicial reclamada não utilizou os mesmos fundamentos do MPF. O juízo federal expressamente reconheceu o entendimento do STF de que a homofobia e a transfobia se enquadram nos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89. Contudo, ao analisar os elementos concretos do caso, o magistrado concluiu que as declarações de Isabella Cêpa “não se investem de caráter discriminatório, vez que desprovidas de finalidade de repressão, dominação, supressão, eliminação ou cerceamento de direitos de um grupo vulnerável“.

A decisão da 7ª Vara entendeu que as declarações “não ultrapassam os limites da liberdade de expressão e do direito, dela decorrente, de o indivíduo propagar suas opiniões, desde que não se consubstanciem em discursos de ódio”. A juíza também considerou que o caso envolvia opiniões sobre temas complexos e debatidos, como a distinção entre sexo e identidade de gênero e o limite etário para a autodeterminação de gênero.

Liberdade de expressão

O ministro Gilmar Mendes concluiu que não houve “afronta direta e objetiva à autoridade das decisões desta Suprema Corte” por parte da Justiça Federal.

Ele reiterou que o juízo reclamado não negou a validade do entendimento fixado na ADO 26/DF nem sustentou que condutas transfóbicas não são puníveis. Em vez disso, a decisão se limitou a concluir, a partir de sua apreciação dos elementos dos autos, que a conduta imputada à investigada não ultrapassaria os limites da liberdade de expressão, não se amoldando, portanto, ao tipo penal.

Conclusão

Em suma, o STF, através do ministro Gilmar Mendes, reforçou que a transfobia é crime no Brasil, conforme sua jurisprudência vinculante.

No entanto, a rejeição da Reclamação de Erika Hilton se deu porque a decisão de arquivamento da instância inferior, embora tenha chegado ao mesmo resultado (o arquivamento), o fez por fundamentos diversos dos que afrontariam diretamente o entendimento do STF, focando na atipicidade da conduta em relação aos limites da liberdade de expressão, e não na inexistência de previsão legal para a criminalização da transfobia.

Assim, a Reclamação, por sua natureza processual restrita, não permitia ao STF reavaliar o mérito da decisão sobre a tipicidade da conduta de Isabella Cêpa.


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