Prof. Gustavo Cordeiro
Introdução: o significado da condenação histórica
A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pela Primeira Turma do STF na Ação Penal 2668 foi um dos mais relevantes acontecimentos da história recente do direito penal brasileiro. Com pena total de 27 anos, 3 meses e 124 dias-multa, o caso oferece material didático excepcional para concurseiros das carreiras jurídicas compreenderem na prática a aplicação das três fases da dosimetria penal.
Este artigo apresenta análise técnica detalhada de como o Ministro Alexandre de Moraes aplicou o sistema trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal, demonstrando a mecânica da dosimetria em cada um dos cinco crimes pelos quais Bolsonaro foi condenado.
O sistema trifásico de dosimetria da pena
Fundamento legal e estrutura
O artigo 68 do Código Penal estabeleceu o critério trifásico de aplicação da pena:
Art. 68 – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.
Para penas privativas de liberdade, o Brasil adota o sistema trifásico:
- 1ª fase: Circunstâncias judiciais (art. 59, CP)
- 2ª fase: Agravantes e atenuantes (arts. 61/62 e 65/66, CP)
- 3ª fase: Majorantes e minorantes (causas de aumento e diminuição)
Para penas de multa, adota-se o sistema bifásico (art. 49, CP).
Limitações por fase
Regra fundamental: Apenas na terceira fase o magistrado pode exceder os limites mínimos e máximos previstos no tipo penal. Na primeira e segunda fases, deve navegar exclusivamente dentro dos parâmetros legais.
Exemplo prático: Se um crime prevê pena de 1 a 4 anos, mesmo com todas as circunstâncias judiciais favoráveis, a pena-base não pode ser inferior a 1 ano. Contudo, na terceira fase, uma minorante pode reduzir a pena definitiva para abaixo do mínimo legal.
1ª fase: circunstâncias judiciais (art. 59, CP)
As oito circunstâncias analisadas pelo STF
O artigo 59 do Código Penal estabelece oito circunstâncias que o juiz deve analisar para fixar a pena-base:
Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Análise do Ministro Alexandre de Moraes
Das oito circunstâncias judiciais, cinco foram consideradas negativas para Bolsonaro:
1. Culpabilidade (NEGATIVA)
Fundamentação do STF: Maior reprovabilidade da conduta. Como ex-Presidente da República, esperava-se atuação conforme a legislação, mas instrumentalizou o aparato estatal (ABIN paralela) e empenhou agentes públicos e recursos para propagar desinformação, gerar instabilidade social e perpetuar-se no poder. Induziu a população em erro sobre urnas eletrônicas e inflamou contra o Poder Judiciário.
2. Antecedentes (NEUTROS)
Análise: Bolsonaro não possui condenações criminais anteriores transitadas em julgado.
3. Conduta social (NEGATIVA)
Fundamentação do STF: Reuniu-se com embaixadores de diversos países para divulgar informações mentirosas sobre o Brasil, comprometendo a imagem internacional do país.
4. Personalidade do agente (NEUTROS)
Análise: Não foram identificados elementos específicos de personalidade que justificassem agravamento.
5. Motivos (NEGATIVOS)
Fundamentação do STF: Perpetuação no poder de seu grupo político, demonstrando motivação egoística e antidemocrática.
6. Circunstâncias (NEGATIVAS)
Fundamentação do STF: Bolsonaro planejou, estruturou e liderou organização criminosa que praticou atos golpistas, demonstrando sofisticação e premeditação na execução.
7. Consequências (NEGATIVAS)
Fundamentação do STF: A consequência mais grave seria o retorno a uma ditadura, aniquilando os pilares essenciais do Estado Democrático de Direito mediante ataques sistemáticos ao Poder Judiciário.
8. Comportamento da vítima (NEUTRO)
Análise: Não se aplica aos crimes contra a segurança nacional.
2ª fase: agravantes e atenuantes
Aplicação da atenuante da senilidade
Para todos os crimes, o STF reconheceu a atenuante da senilidade prevista no artigo 65, inciso I, do Código Penal:
Art. 65, I – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: ser o agente maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença.
Fundamentação: Bolsonaro possui mais de 70 anos na data da sentença, aplicando-se obrigatoriamente esta atenuante genérica.
Técnica mnemônica: “Setenta” rima com “sentença” – a idade é considerada na data da sentença, não do fato.
Ausência de agravantes
Não foram reconhecidas circunstâncias agravantes genéricas aplicáveis ao caso, embora o STF tenha considerado a gravidade especial das condutas na primeira fase (circunstâncias judiciais).
3ª fase: majorantes e minorantes
Aplicação exclusiva ao crime de organização criminosa
Somente para o crime de organização criminosa foram aplicadas majorantes na terceira fase:
Majorantes aplicadas (art. 2º, Lei 12.850/2013):
§ 2º (Emprego de arma de fogo): Aumento de metade da pena
- Fundamentação: Potencial armamentício da organização pela tentativa de envolvimento das Forças Armadas
§ 3º (Liderança da organização): Sem fração específica
- Fundamentação: Bolsonaro exerceu inequívoca liderança da organização criminosa
§ 4º (Concurso de funcionário público): 1/6 a 2/3
- Fundamentação: Participação de agentes públicos (ministros, generais, dirigentes de órgãos)
Dosimetria detalhada por crime
Crime 1: organização criminosa armada (art. 2º, Lei 12.850/2013)
Pena legal: 3 a 8 anos de reclusão + multa
Dosimetria aplicada:
- Pena-base: 5 anos e 6 meses (aumento pelas circunstâncias negativas)
- 2ª fase: 4 anos e 7 meses (redução pela atenuante da senilidade)
- 3ª fase: 7 anos e 7 meses (aumento em 2/3 pelas majorantes dos §§ 2º, 3º e 4º)
Resultado: 7 anos e 7 meses de reclusão
Crime 2: abolição do Estado Democrático de Direito (art. 359-L, CP)
Pena legal: 4 a 8 anos de reclusão
Dosimetria aplicada:
- Pena-base: 7 anos e 6 meses (aumento pelas circunstâncias negativas)
- 2ª fase: 6 anos e 6 meses (redução pela atenuante da senilidade)
- 3ª fase: Não aplicável
Resultado: 6 anos e 6 meses de reclusão
Crime 3: golpe de Estado (art. 359-M, CP)
Pena legal: 4 a 12 anos de reclusão
Dosimetria aplicada:
- Pena-base: 10 anos (aumento pelas circunstâncias negativas)
- 2ª fase: 8 anos e 2 meses (redução pela atenuante da senilidade)
- 3ª fase: Não aplicável
Resultado: 8 anos e 2 meses de reclusão
Crime 4: dano qualificado (art. 163, parágrafo único, CP)
Pena legal: 6 meses a 3 anos de detenção + multa
Dosimetria aplicada:
- Pena-base: 3 anos de detenção + 74 dias-multa (no máximo legal)
- 2ª fase: 2 anos e 6 meses + 62 dias-multa (redução pela atenuante)
- 3ª fase: Não aplicável
Resultado: 2 anos e 6 meses de detenção + 62 dias-multa
Crime 5: deterioração de patrimônio tombado (art. 62, I, Lei 9.605/98)
Pena legal: 1 a 3 anos de reclusão + multa
Dosimetria aplicada:
- Pena-base: 3 anos de reclusão + 75 dias-multa (no máximo legal)
- 2ª fase: 2 anos e 6 meses + 62 dias-multa (redução pela atenuante)
- 3ª fase: Não aplicável
Resultado: 2 anos e 6 meses de reclusão + 62 dias-multa
Pena final unificada
Concurso material de crimes

Por se tratar de concurso material (crimes praticados mediante condutas distintas), as penas são somadas:
Penas privativas de liberdade:
- 7 anos e 7 meses (organização criminosa – reclusão)
- 6 anos e 6 meses (abolição do Estado Democrático – reclusão)
- 8 anos e 2 meses (golpe de Estado – reclusão)
- 2 anos e 6 meses (dano qualificado – detenção)
- 2 anos e 6 meses (deterioração patrimônio – reclusão)
Total: 24 anos e 9 meses de reclusão + 2 anos e 6 meses de detenção
Penas de multa: 124 dias-multa (62 + 62), fixados em 2 salários-mínimos cada
Regime inicial de cumprimento
Considerando a pena total superior a 8 anos, o regime inicial será fechado, conforme artigo 33, § 2º, “a”, do Código Penal.
Sanções complementares aplicadas
Inelegibilidade
- Prazo: 8 anos, nos termos da Lei da Ficha Limpa
- Fundamento: Condenação por crimes contra o Estado Democrático de Direito
Indenização por danos morais coletivos
- Valor: R$ 30 milhões
- Forma: Solidária entre todos os réus condenados
Perda de cargos específicos
- Alexandre Ramagem: Perda do mandato de deputado federal e cargo de delegado da Polícia Federal
- Anderson Torres: Perda da função de delegado da Polícia Federal
Conclusão: lições técnicas do precedente
A dosimetria aplicada pelo STF no caso Bolsonaro demonstra a aplicação técnica rigorosa do sistema trifásico, oferecendo aos concurseiros exemplo prático de como cada fase opera independentemente, com fundamentação específica e respeito aos limites legais.
A pena final de 27 anos, 3 meses e 124 dias-multa resulta da soma matemática precisa de cinco condenações distintas, aplicando-se corretamente o instituto do concurso material de crimes.
Para candidatos às carreiras jurídicas, o precedente oferece material didático excepcional sobre a mecânica da dosimetria penal, demonstrando que mesmo em casos de alta complexidade política, a técnica jurídica deve prevalecer na aplicação da lei penal.
Atenção: Aguarda-se o julgamento dos embargos infringentes ou eventual recurso para confirmação definitiva das penas aplicadas. Acompanhem as atualizações para conhecimento integral deste precedente histórico.
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