* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Decisão do STJ
O Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua 3ª Turma, decidiu que a Igreja Universal do Reino de Deus não deverá devolver a uma fiel doação de R$ 101 mil feita em espécie, sem instrumento particular (REsp 2.216.962).
Para a Corte, a doação movida pela fé à instituição religiosa não está sujeita à forma exigida para a doação civil típica, reconhecendo a validade e afastando a devolução do valor.
A parte autora passou a frequentar a Igreja Universal em 2006, ao lado do marido, movida por promessas de prosperidade espiritual e financeira.
Inicialmente, contribuía com o dízimo de 10% do salário do companheiro, mas, após o casal ser contemplado com prêmio superior a R$ 1,8 milhão na Loto Fácil, foram repassados à igreja valores expressivos:
- R$ 182 mil de dízimo;
- Diversas contribuições menores;
- Doação de um automóvel HB20; e
- Mais uma doação de R$ 101 mil (sem qualquer instrumento escrito).
O juízo de 1º grau (1ª vara Cível de Samambaia/DF) reconheceu a nulidade apenas da doação em dinheiro, determinando a restituição do valor por entender que se tratava de doação de alto valor e, portanto, sujeita à forma escrita exigida pelo art. 541 do CC.
CC
Art. 541. A doação far-se-á por escritura pública ou instrumento particular.
Parágrafo único. A doação verbal será válida, se, versando sobre bens móveis e de pequeno valor, se lhe seguir incontinenti a tradição.
O TJ/DF confirmou a sentença, ressaltando que a liberdade religiosa não afasta o cumprimento das normas civis e que nulidades absolutas não se convalidam pelo tempo.
Voto vencido (relator)
No STJ, o relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, votou pela manutenção da nulidade, argumentando que a doação é um negócio jurídico solene e formal.
Afirmou que o cheque, embora apto a transferir numerário, não supre a exigência de instrumento particular ou escritura para doações de alto valor.
Alertou, ainda, que flexibilizar as regras formais geraria insegurança jurídica para fiéis e instituições religiosas.
Voto vencedor (divergência)
Prevaleceu o voto divergente do Ministro Moura Ribeiro, que foi acompanhado pelas ministras Nancy Andrighi e Daniela Teixeira, além do ministro Humberto Martins.
Moura Ribeiro realizou uma análise doutrinária, concluindo que nem toda liberalidade está enquadrada no conceito jurídico de doação (Art. 538 do CC).
De acordo com a doutrina citada pelo Ministro, as transferências motivadas por dever de consciência religiosa, como dízimos, esmolas e donativos, carecem do animus donandi estritamente civil.
“O negócio jurídico não pode ser desfeito porque o ato de voluntariedade fundado no dever de consciência religiosa e demonstração de gratidão e fé não se enquadra na definição da de doação”.
Animus donandi (intenção de doar) é o elemento subjetivo essencial do contrato de doação, significando a vontade livre e espontânea de transferir um bem ou vantagem para outra pessoa sem esperar nada em troca, sendo um requisito fundamental para a validade jurídica da doação.
Essa intenção de liberalidade deve ser atual, ou seja, persistir no momento da formalização do contrato, distinguindo-se de outras intenções como o animus domini (intenção de ser dono) ou animus furandi (intenção de roubar).
Doação x coação

O Código Civil conceitua a doação em seu art. 538 como o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.
Importante ressaltar que, se a doação se der através de coação, o negócio pode ser anulado, já que coação configura um vício de consentimento que retira a liberdade de vontade do doador, tornando o ato anulável judicialmente, dentro de um prazo decadencial de quatro anos, contados do dia em que a coação cessou, exigindo prova robusta da ameaça ou pressão.
CC
Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.
Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.
...
Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado:
I - no caso de coação, do dia em que ela cessar;
A análise da coação deverá levar em consideração o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela, não se configurando a coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial.
Outro ponto relevante que causa a nulidade da doação é a chamada “doação universal”, prevista no artigo 548, do Código Civil.
CC
Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.
Doação universal é a transferência de todo o patrimônio de uma pessoa para outra em vida, sendo nula (art. 548 do Código Civil) se o doador não reservar bens ou renda suficientes para sua subsistência, visando protegê-lo da miséria e resguardar os direitos de credores, exigindo-se reserva de parte ou usufruto vitalício para ser válida.
Voltando ao caso ora analisado, o ministro Moura Ribeiro entendeu que o cheque usado pela fiel poderia funcionar como instrumento particular, validando a formalização da doação.
Ressaltou, também, a importância de prestigiar a boa-fé, uma vez que o ato foi voluntário e contestado somente após quatro anos.
A decisão final deu provimento ao recurso especial da Igreja Universal e afastou a restituição dos R$ 101 mil.
Como o tema pode cair em prava?
“Candidato, uma fiel, após frequentar uma igreja por um período, acabou doando quantia vultosa do seu patrimônio para a instituição religiosa, acreditando que era seu dever de cristã. Tal doação não foi suficiente para lhe retirar o sustento digno e não foi feita através de um instrumento particular ou escritura pública, mas apenas por meio de um cheque. Segundo decisão recente do STJ, essa doação pode ser anulada por não observar os requisitos formais do Código Civil? Responda de forma fundamentada.”
Quer saber quais serão os próximos concursos?
Confira nossos artigos para Carreiras Jurídicas!