* Thiago de Paula Leite é procurador do Estado de São Paulo e professor de direito ambiental e agrário do Estratégia.
Entenda o caso
A Polícia Federal deflagrou a operação “Ultima Ratio”. O objetivo é investigar possíveis crimes de corrupção nas vendas de decisões judiciais, lavagem de dinheiro, organização criminosa, extorsão e falsificação de escrituras públicas no Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul.
A operação deflagrada apreendeu cerca de R$ 4 milhões de reais em espécie e 40 armas, computadores, celulares, anotações, documentos, mídias.
De acordo com fontes da Polícia Federal, somente na casa do desembargador aposentado Júlio Roberto Siqueira Cardoso, houve apreensão de 2,7 milhões em dinheiro vivo.
A Polícia Federal cumpriu 44 mandados de busca e apreensão expedidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra desembargadores do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MS) suspeitos de vendas de decisões judiciais.
A operação da PF teve cinco desembargadores como principais alvos. São eles:
- Sérgio Fernandes Martins; presidente do TJ-MS
- Sideni Soncini Pimentel; futuro presidente do TJ-MS
- Vladimir Abreu Da Silva; futuro vice-presidente do TJ-MS
- Marcos José de Brito Rodrigues
- Alexandre Aguiar Bastos
Assim, com base na investigação da Polícia Federal, o STJ determinou o afastamento do exercício das funções públicas dos servidores, a proibição de acesso às dependências de órgão público, a vedação de comunicação com pessoas investigadas e a colocação de equipamento de monitoramento eletrônico (tornozeleira eletrônica).
Ademais, o TJ-MS, por meio de nota, afirmou que:
“Até o presente momento não teve acesso aos autos e ao inteiro teor da decisão que motivou a ação…Em virtude disso, não dispomos de subsídios suficientes para emitir qualquer declaração ou posicionamento sobre os fatos. Reiteramos nosso compromisso com a transparência e a legalidade, e assim que tivermos mais informações, estaremos à disposição para atualizações”.
Como tudo começou
Como a PF chegou aos desembargadores do TJ-MS?
Tudo começou com a deflagração da Operação Lama Asfáltica, em 2017, que investigava organização criminosa suspeita de desviar recursos, fraudar licitações e superfaturar obras em Mato Grosso do Sul. O prejuízo causado teria sido em torno de R$ 235 milhões. A investigação feita, à época, interceptou telefonemas cujo conteúdo teve de ser encaminhado ao STJ.
O encaminhamento ocorreu em razão das ligações sugerirem suposta participação de conselheiros do Tribunal de Contas de Mato Grosso do Sul (TCE-MS) na organização criminosa. Logo depois, ao analisar as interceptações, o STJ autorizou a instauração do inquérito para investigar os conselheiros, e isso resultou na Operação Mineração de Ouro, deflagrada em junho de 2021.
Os materiais apreendidos em 2021 sugeriam a venda de decisões não só por parte de conselheiros do TCE, mas também de desembargadores do TJMS. A partir disso, a PF deu início à investigação que desencadeou na Operação Ultima Ratio, cujo nome refere-se ao termo do direito segundo o qual a Justiça é o último recurso do poder público para parar a criminalidade.
Análise jurídica
Importante pontuar que, especificamente em relação aos desembargadores, a competência para julgamento dos supostos crimes é do Superior Tribunal de Justiça.
O STJ julga crimes comuns praticados por algumas autoridades, como governadores, desembargadores estaduais, federais, eleitorais e trabalhistas, conselheiros de tribunais de contas e procuradores da República. Nesses casos, um ministro do STJ preside o inquérito, conduzido pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. É do ministro relator a competência para autorizar ou determinar diligências e prisões nessa fase preliminar.
Vejamos o que diz a Constituição Federal, em seu artigo 105, I, a:
CF/88 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente: a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
Foro especial por prerrogativa de função
O foro especial por prerrogativa de função, que não deve ser visto como privilégio pessoal, é destinado a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções. Significa que o titular desses cargos se submete a investigação, processo e julgamento por órgão judicial previamente designado, que não é o mesmo para as pessoas em geral.
A prerrogativa de foro tem por finalidade também resguardar a imparcialidade necessária ao julgamento. Isso evita o conflito de interesses entre magistrados vinculados ao mesmo tribunal.
Em 2018, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em questão de ordem na Ação Penal 937, restringiu o foro por prerrogativa de função às hipóteses de crimes praticados no exercício da função ou em razão dela e durante o exercício do cargo.
Competência
A Suprema Corte estabeleceu ainda que, após o fim da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Com base nesse entendimento, ainda em 2018, a Corte Especial do STJ decidiu, na questão de ordem na APn 857, que o foro no caso de governadores e conselheiros de tribunais de contas ficaria restrito a fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Essa orientação levou a Corte Especial, em maio de 2019, a acolher questão de ordem para determinar que uma ação penal (APn 874) contra governador fosse encaminhada para a primeira instância.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que o foro especial exige contemporaneidade e pertinência temática entre os fatos em apuração e o exercício da função pública. Ela lembrou que o término do mandato acarreta, por si só, “a cessação do foro por prerrogativa de função em relação ao ato praticado nesse intervalo“.
Mas atenção!!!
Por outro lado, a Corte Especial do STJ entendeu que o precedente do STF não se aplica a todos os casos. Ou seja, aplica-se apenas àqueles em que o juiz (julgador) e o desembargador (julgado) não estejam vinculados ao mesmo tribunal.
A prerrogativa de foro estabelecida no inciso I do artigo 105 da Constituição Federal será mantida sempre que um desembargador acusado da prática de crime sem relação com o cargo tivesse de ser julgado por juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal que ele, pois a prerrogativa de foro visa, também, proteger a independência no exercício da função judicante.
Conclusão
Temos, em resumo:
Regra:
- O foro por prerrogativa de função fica restrito a fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Exceção:
- Sempre que um desembargador acusado da prática de crime sem relação com o cargo tiver que ser julgado por juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal que ele.
Então, vamos acompanhar o desenrolar dos fatos e das investigações, sem realizar qualquer pré-julgamento. Ótimo tema para prova de direito constitucional, penal e processo penal.
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