Defensoria Pública e ação de improbidade: por que o STJ fechou a porta que parecia aberta?

Defensoria Pública e ação de improbidade: por que o STJ fechou a porta que parecia aberta?

Prof. Gustavo Cordeiro

Imagine que você está estudando e se depara com duas informações aparentemente contraditórias: a Defensoria Pública pode ajuizar ação civil pública desde 2007, mas não pode processar agentes ímprobos. Como isso é possível? A resposta está em uma distinção sutil, mas fundamental, que o STJ acabou de esclarecer e que promete ser um dos temas mais cobrados nos próximos concursos.

Por onde começou a confusão

Para entender a decisão recente do STJ, precisamos voltar ao ano de 2007, quando tudo parecia ter se resolvido a favor da Defensoria Pública.

O marco histórico: Lei 11.448/2007

Naquele ano, a Lei 11.448 alterou o artigo 5º da Lei 7.347/85, incluindo definitivamente a Defensoria Pública no rol dos legitimados para ação civil pública. Parecia que a questão estava encerrada: se a Defensoria pode propor ação civil pública, automaticamente poderia processar por improbidade administrativa, certo?

Errado. E é exatamente aqui que começa nossa história.

A partir desse marco legal, a Defensoria passou a ajuizar milhares de ações coletivas pelo país inteiro – desde casos de consumidor até questões ambientais. Mas uma modalidade específica sempre gerou controvérsia: a ação de improbidade administrativa.

A descoberta da diferença: nem toda ACP é igual

Aqui está o primeiro ponto crucial que todo concurseiro precisa assimilar: quando falamos de “ação civil pública”, estamos tratando de um gênero que abriga duas espécies completamente diferentes.

Espécie 1: Ação Civil Pública Geral (Lei 7.347/85)

Esta é a ação “tradicional”, aquela que conhecemos desde a faculdade:

Objetivo: Proteger direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos
Legitimados: Rol amplo (MP, Defensoria, associações, entes públicos)
Natureza: Reparatória/preventiva
Sanções: Indenização, obrigações de fazer/não fazer

Exemplo prático: A Defensoria processa uma empresa de telefonia que cobra taxas abusivas de consumidores carentes. Resultado: a empresa deve cessar a cobrança e devolver valores pagos indevidamente.

Espécie 2: Ação Civil Pública de Improbidade (Lei 8.429/92)

Esta é a ação “especial”, com características únicas:

Objetivo: Punir agentes públicos ímprobos e proteger a moralidade administrativa
Legitimados: Rol restrito (apenas MP e pessoa jurídica lesada)
Natureza: Sancionatória/punitiva
Sanções: Suspensão de direitos políticos, perda da função pública, multa civil

Exemplo prático: O prefeito superfatura obra pública. Resultado possível: perda do cargo, suspensão dos direitos políticos por 8 anos, multa de até 3 vezes o valor do dano.

Percebe a diferença? Na primeira, você “conserta” um problema. Na segunda, você “pune exemplarmente” alguém. São naturezas jurídicas completamente distintas.

A decisão que mudou tudo: STJ Informativo 859/2025

Chegamos então ao momento atual. Em agosto de 2025, a Primeira Turma do STJ foi chamada para resolver definitivamente a questão: a Defensoria Pública pode ou não propor ação de improbidade administrativa?

O raciocínio do Tribunal: O “silêncio eloquente”

O STJ construiu um raciocínio juridicamente elegante, baseado em um conceito que todo estudante de Direito deveria conhecer: o “silêncio eloquente do legislador”.

Defensoria Pública pode

Vamos pensar juntos: Quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.448/2007, os deputados e senadores sabiam da existência da Lei de Improbidade (8.429/92). Se quisessem incluir a Defensoria como legitimada para ações de improbidade, teriam alterado também a Lei 8.429/92.

Mas não fizeram. Alteraram apenas a Lei 7.347/85.

Esse silêncio não foi por acaso – foi uma escolha política consciente. O legislador quis manter o regime especial e restritivo da ação de improbidade, reservando-a a legitimados específicos.

Os três pilares da decisão

O STJ baseou sua conclusão em três argumentos interligados:

1º pilar: diferença ontológica (natureza das ações)

“Ontológico” significa “relativo à essência das coisas”. O que o tribunal quis dizer é que as duas ações têm essências diferentes:

  • ACP Geral: Natureza civil reparatória
  • ACP Improbidade: Natureza quasi-penal sancionatória

É como comparar um “tratamento médico” com uma “cirurgia”: ambos cuidam da saúde, mas são procedimentos de naturezas distintas.

2º pilar: regimes jurídicos distintos

Embora ambas as ações integrem o “microssistema da tutela coletiva”, cada uma tem suas próprias regras:

  • Lei 7.347/85: Regime geral, legitimação ampla
  • Lei 8.429/92: Regime especial, legitimação restrita

Princípio aplicado: Lei especial prevalece sobre lei geral (lex specialis derogat legi generali).

3º pilar: opção legislativa consciente

O legislador deliberadamente concentrou no Ministério Público a legitimidade para ações punitivas contra agentes públicos. Por quê?

Porque o MP tem características institucionais específicas:

  • Independência funcional
  • Formação técnica especializada em direito público
  • Tradição histórica como fiscal da lei
  • Estrutura organizada para investigação

O impacto da ADI 7042 do STF: mudou alguma coisa?

Atenção redobrada aqui, porque este ponto tem gerado muito erro em provas recentes.

Em momento anterior, o STF julgou a ADI 7042 e declarou inconstitucional a exclusividade do Ministério Público para ações de improbidade. Resultado: restabeleceu a legitimidade concorrente entre MP e pessoa jurídica lesada.

Mas aqui vem o detalhe fundamental: essa decisão do STF NÃO mencionou nem incluiu a Defensoria Pública. O STF apenas disse que não pode ser só o MP – pode ser o MP ou o ente lesado (União, Estado, Município, etc.).

Situação atual dos legitimados

PODEM propor ação de improbidade:

  • Ministério Público (sempre pôde)
  • Pessoa jurídica lesada (voltou a poder após ADI 7042)

NÃO PODEM propor ação de improbidade:

  • Defensoria Pública
  • Associações civis
  • Cidadão individualmente

Consequências práticas: o que muda na vida real

Agora vamos ao que realmente importa: como essa decisão afeta o trabalho jurídico e as provas de concurso?

Para a Defensoria Pública

A instituição precisará adequar sua estratégia processual:

Pode fazer:

  • ACP para ressarcimento ao erário (Lei 7.347/85)
  • ACP para anulação de atos administrativos lesivos
  • Representação ao MP para que este ajuíze ação de improbidade
  • Intervenção como amicus curiae em ações de improbidade que beneficiem hipossuficientes

Não pode fazer:

  • Ação de improbidade diretamente
  • Pedidos de suspensão de direitos políticos
  • Aplicação de sanções políticas a agentes públicos

Para os concursos públicos

Esta distinção será cobrada nos próximos certames. As bancas adoram este tipo de sutileza jurisprudencial.

Questão de concurso comentada

O Núcleo de Combate à Corrupção da Defensoria Pública Estadual identificou esquema de direcionamento de licitações municipais que resultou em sobrepreço de R$ 2 milhões em obras destinadas à construção de creches em bairros carentes. Os documentos revelam participação direta do prefeito e de dois secretários municipais. Considerando a jurisprudência recente do STJ, assinale a alternativa CORRETA:

A) A Defensoria pode propor ação de improbidade, pois o resultado beneficiará diretamente a população hipossuficiente atendida pelas creches.

B) A Defensoria pode propor ação civil pública para ressarcimento ao erário e anulação dos contratos, mas não ação de improbidade administrativa.

C) A Defensoria não possui legitimidade para qualquer ação relacionada a atos de gestão pública, devendo representar ao Ministério Público.

D) A legitimidade da Defensoria para ação de improbidade ficou restabelecida após a ADI 7042 do STF.

E) A Defensoria pode propor ação de improbidade apenas se comprovar previamente a hipossuficiência dos beneficiários das obras.

Gabarito: B.

Análise das Alternativas:

A) INCORRETA – O simples fato de beneficiar hipossuficientes não confere à Defensoria legitimidade para ação de improbidade. A decisão do STJ (Informativo 859/2025) foi clara: a Defensoria não possui legitimidade para este tipo de ação, independentemente do público beneficiado.

B) CORRETA – Perfeita distinção entre as modalidades de ação. A Defensoria pode usar a Lei 7.347/85 para buscar ressarcimento e anulação de atos lesivos (desde que beneficiem seu público-alvo), mas não pode usar a Lei 8.429/92 para aplicar sanções por improbidade.

C) INCORRETA – Generalização excessiva. A Defensoria possui ampla legitimidade para ações relacionadas à gestão pública, desde que pela via da ACP geral (Lei 7.347/85).

D) INCORRETA – A ADI 7042 não incluiu a Defensoria. Apenas restabeleceu a legitimidade concorrente entre MP e pessoa jurídica lesada.

E) INCORRETA – Mesmo comprovando hipossuficiência, a Defensoria não adquire legitimidade para ação de improbidade. A vedação é absoluta.

Considerações finais: a lição mais importante

Esta decisão do STJ nos ensina algo fundamental sobre o estudo jurídico: nem sempre as coisas são o que parecem. O fato de a Defensoria poder ajuizar “ação civil pública” não significa que pode ajuizar toda e qualquer ação civil pública.

Para o concurseiro: Desenvolva o hábito de sempre perguntar “qual lei regula esta situação específica?” antes de aplicar uma regra geral.

A porta da ação civil pública continua aberta para a Defensoria – mas agora sabemos que algumas salas específicas permanecem com acesso restrito. E é exatamente essa sofisticação que faz do Direito uma ciência fascinante e dos concursos jurídicos um desafio intelectual permanente.


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