Conforme noticiado pelo Conjur:
Tribunais restringem furto famélico a alimento que mate a fome imediatamente
Temos que o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando uma jurisprudência mais restritiva sobre o furto famélico, exigindo que o alimento subtraído seja consumível imediatamente e capaz de saciar a fome no momento da subtração.
Isto porque, a 5ª e 6ª Turmas da Corte Superior denegaram recentemente habeas corpus de réus condenados por furtar chocolates e carne crua, respectivamente, estabelecendo novos parâmetros para a aplicação do instituto.
Fundamentação jurídica das novas restrições
A decisão mais emblemática partiu da 5ª Turma, quando o ministro Messod Azulay, relator do HC 885.032, fundamentou que chocolate “não consubstancia alimento apto a saciar uma necessidade premente, que, aliás, sequer se mostrou comprovada durante a instrução, mas voltava-se a proporcionar mero deleite ao paciente”. O caso envolveu um homem condenado por furtar seis barras de chocolate avaliadas em R$ 30.
De forma similar, a 6ª Turma, no julgamento do AREsp 2.791.926, negou provimento ao recurso de um réu que furtou 3,5 quilos de carne crua avaliados em R$ 118,15.
Por outro lado, o ministro Rogerio Schietti Cruz acrescentou que o bem furtado “não é consumível imediatamente”, reforçando a tese de que apenas alimentos prontos para consumo podem caracterizar o estado de necessidade.
Evolução jurisprudencial
Ora, essa posição representa uma guinada significativa na jurisprudência do STJ, que tradicionalmente adotava critérios mais benevolentes.
A mesma 6ª Turma havia absolvido anteriormente um réu que furtou duas galinhas, aplicando o furto famélico sem questionar o aspecto do consumo imediato. A transformação fica ainda mais evidente quando se observa que em 2020, 25% dos furtos no Rio de Janeiro permitiriam a aplicação do princípio da insignificância.
Ademais, os ministros também têm incorporado análises sobre a “nobreza” dos alimentos.
Em 2022, a 6ª Turma considerou relevante o fato de um furto famélico envolver “alimentos nobres — camarão descascado e cozido”, demonstrando um refinamento na análise qualitativa dos bens subtraídos.
Aspectos procedimentais e critérios aplicados

Perceba, os tribunais vêm aplicando uma conjugação mais rigorosa dos quatro critérios do princípio da insignificância: mínima ofensividade da conduta, ausência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica.
Decisões monocráticas recentes ilustram essa tendência, como a da ministra Daniela Teixeira, que absolveu um réu por furtar carnes in natura, mas destacou que “não se prestavam ao consumo imediato”.
O critério da reincidência também tem sido relativizado quando conjugado com a necessidade alimentar comprovada, mas a análise da capacidade contributiva do agente ganhou peso. Casos envolvendo réus com carteira assinada têm encontrado maior resistência judicial para o reconhecimento do estado de necessidade.
O que é o princípio da insignificância?
Origem
Quem primeiro tratou sobre o princípio da insignificância no direito penal foi Claus Roxin, em 1964.
Esse princípio busca raízes no brocardo civil minimis non curat praetor (algo como “o pretor – magistrado à época – não cuida de coisas sem importância).
Terminologia
Também é chamado de “princípio da bagatela” ou “infração bagatelar própria”.
Previsão legal
O princípio da insignificância não tem previsão legal no direito brasileiro.
Trata-se de uma criação da doutrina e da jurisprudência.
Natureza jurídica
Para a posição majoritária, o princípio da insignificância é uma causa supralegal de exclusão da tipicidade material.
Tipicidade material
A tipicidade penal divide-se em:
a) Tipicidade formal (ou legal): é a adequação (conformidade) entre a conduta praticada pelo agente e a conduta descrita abstratamente na lei penal incriminadora.
b) Tipicidade material (ou substancial): é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo penal.
Verificar se há tipicidade formal significa examinar se a conduta praticada pelo agente amolda-se ao que está previsto como crime na lei penal.
Verificar se há tipicidade material consiste em examinar se essa conduta praticada pelo agente e prevista como crime produziu efetivamente lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo penal.
Primeiro se verifica se a conduta praticada pelo agente se enquadra em algum crime descrito pela lei penal.
- Se não se amoldar, o fato é formalmente atípico.
- Se houver essa correspondência, o fato é formalmente típico.
- Sendo formalmente típico, é analisado se a conduta produziu lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico que este tipo penal protege.
- Se houver lesão ou perigo de lesão, o fato é também materialmente típico.
- Se não houver lesão ou perigo de lesão, o fato é, então, materialmente atípico.
Princípio da insignificância e tipicidade material
Se o fato for penalmente insignificante, significa que não lesou nem causou perigo de lesão ao bem jurídico. Logo, aplica-se o princípio da insignificância e o réu é absolvido por atipicidade material, com fundamento no art. 386, III do CPP.
O princípio da insignificância atua, então, como um instrumento de interpretação restritiva do tipo penal.
Requisitos objetivos (vetores) para a aplicação do princípio
O Min. Celso de Mello (HC 84.412-0/SP) idealizou quatro requisitos objetivos para a aplicação do princípio da insignificância, sendo eles adotados pela jurisprudência do STF e do STJ.
Segundo a jurisprudência, somente se aplica o princípio da insignificância se estiverem presentes os seguintes requisitos cumulativos:
a) mínima ofensividade da conduta;
b) nenhuma periculosidade social da ação;
c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e
d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
É possível aplicar o princípio da insignificância em favor de um réu reincidente ou que já responda a outros inquéritos ou ações penais?
A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo (“conglobante”), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados.
A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto.
Na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, § 2º, “c”, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade.
STF. Plenário. HC 123108, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/08/2015 (Informativo 793).
E o que pensa o STF?
Enquanto o Superior Tribunal de Justiça consolida critérios mais restritivos para o reconhecimento do furto famélico, exigindo consumo imediato dos alimentos subtraídos, o Supremo Tribunal Federal mantém postura mais flexível na aplicação do princípio da insignificância, inclusive para réus com antecedentes criminais.
Veja o entendimento do STF:
Em regra, a habitualidade delitiva específica (ou seja, o fato de o réu já responder a outra ação penal pelo mesmo delito) é um parâmetro (critério) que afasta o princípio da insignificância mesmo em se tratando de bem de reduzido valor. Excepcionalmente, no entanto, as peculiaridades do caso concreto podem justificar o afastamento dessa regra e a aplicação do princípio, com base na ideia da proporcionalidade. É o caso, por exemplo, do furto de um galo, quatro galinhas caipiras, uma galinha garnizé e três quilos de feijão, bens avaliados em pouco mais de cem reais. O valor dos bens é inexpressivo e não houve emprego de violência. Enfim, é caso de mínima ofensividade, ausência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão jurídica. Mesmo que conste em desfavor do réu outra ação penal instaurada por igual conduta, ainda em trâmite, a hipótese é de típico crime famélico. A excepcionalidade também se justifica por se tratar de hipossuficiente. Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-polícia e do Estado-juiz movimente-se no sentido de atribuir relevância a estas situações. STF. 2ª Turma. HC 141440 AgR/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 14/8/2018 (Informativo 911).
É possível a aplicação do princípio da insignificância para o agente que praticou o furto de um carrinho de mão avaliado em R$ 20,00 (3% do salário-mínimo), mesmo ele possuindo antecedentes criminais por crimes patrimoniais.
STF. 1ª Turma. RHC 174784/MS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 11/2/2020 (Informativo 966).
Em outro precedente mais recente:
É possível a aplicação do princípio da insignificância em face de réu reincidente e realizado no período noturno. Na espécie, trata-se de furto de R$ 4,15 em moedas, uma garrafa pequena de refrigerante, duas garrafas de 600 ml de cerveja e uma de 1 litro de pinga, tudo avaliado em R$ 29,15.
STF. 2ª Turma. HC 181389/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/04/2020 (Informativo 973)
Logo, o STF mantém análise caso a caso, conforme demonstrado no HC 181389/SP, onde o ministro Gilmar Mendes aplicou o princípio da insignificância para réu reincidente que furtou “R$ 4,15 em moedas, uma garrafa pequena de refrigerante, duas garrafas de 600 ml de cerveja e uma de 1 litro de pinga, tudo avaliado em R$ 29,15”. Note-se que bebidas alcoólicas dificilmente se enquadrariam no conceito de necessidade alimentar básica adotado pelo STJ.
Como o tema já caiu em provas
NUCEPE - 2018 - PC-PI - Delegado de Polícia Civil
Da Antiguidade à Modernidade, o furto famélico (roubar para comer) nunca foi considerado crime. (Errado)
FGV - 2025 - DPE-PE - Defensor Público
Considerando o momento consumativo do crime de furto e a aplicação do princípio da insignificância, avalie as situações fáticas a seguir.
I. Em uma loja de departamento, Edna esconde roupas íntimas em sua bolsa e sai do local sem efetuar o pagamento. O segurança, alertado por um cliente, aborda Edna na frente do estabelecimento e todos os bens, avaliados em R$ 850,00, são restituídos. O Ministério Público denuncia Edna pelo crime de furto e, no curso do processo, verifica-se que ela responde a outros dois processos criminais, um por furto e outro por receptação.
II. Em um supermercado, Josué esconde peças de picanha na parte inferior do carrinho. Passa pela caixa, efetua o pagamento dos demais produtos e, em seguida, vai embora. Cientificada do fato, a gerência do estabelecimento alerta a Polícia Militar que realiza diligências e consegue localizar Josué, na porta de casa, descarregando os produtos. As peças de picanha são restituídas e avaliadas em R$ 520,00. Josué possui uma condenação definitiva pelo crime de estelionato e é reincidente.
Em relação às situações fáticas apresentadas, à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, assinale a afirmativa correta.
B) Em ambas as situações, o valor dos bens subtraídos, abaixo do salário-mínimo, justifica, por si só, a aplicação do princípio da insignificância. (Errado)
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