Análise jurídica sobre o artigo 149 do Código Penal, abordando a inclusão de cantor na ‘lista suja do trabalho escravo’ devido às condições análogas à de escravo encontradas em sua fazenda. O texto explora as implicações legais e possíveis consequências jurídicas.
*João Paulo Lawall Valle é Advogado da União (AGU) e professor de direito administrativo, financeiro e econômico do Estratégia carreira jurídica.
Entenda o caso – Condição análoga a de escravo
O governo federal, através do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) atualizou a chamada “lista suja do trabalho escravo” e incluiu o cidadão Emival Eterno da Costa, mais conhecido como o cantor sertanejo Leonardo.
A inclusão do artista na “lista suja” se deu por conta de uma fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego realizada na fazenda Talismã, localizada na cidade de Jussara, região noroeste do Estado de Goiás.
Dessa forma, durante a fiscalização foram localizadas seis pessoas vivendo em condições degradantes, um dos elementos que configura escravidão contemporânea no Brasil. Além disso, dentre as pessoas resgatadas está um adolescente de 17 anos.
De acordo com o relato, os trabalhadores localizados na Fazenda Talismã viveriam em uma casa abandonada sem água potável, banheiro ou camas, dormindo em tábuas de madeira. O ambiente ainda seria infestado por ratos, morcegos, formigas e cupins e exalaria um “odor forte e fétido”.
O relatório mostra que os seis funcionários pernoitavam numa casa abandonada, sem água potável e sem banheiro. Além disso, as camas eram improvisadas com tábuas de madeira e galões de agrotóxicos.
O Ministério do Trabalho publicou nesta segunda-feira (7) a atualização do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, a “Lista Suja”. Nesta edição, 176 empregadores foram incluídos, sendo 20 deles por práticas de trabalho análogo à escravidão no âmbito doméstico.
Análise Jurídica – Condição análoga a de escravo
A “lista suja do trabalho escravo” é como é popularmente conhecido o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à escravidão disciplinado pela Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR Nº 18 de 13 de setembro de 2024, e existe desde 2003, na forma dos sucessivos atos normativos que o regulamentaram desde então.
A inclusão de pessoas físicas ou jurídicas no Cadastro de Empregadores ocorre somente após a conclusão do processo administrativo que julga o auto específico de trabalho análogo à escravidão, resultando em uma decisão administrativa irrecorrível de procedência. Importante destacar que, mesmo após a inserção no Cadastro, conforme estipulado pelo artigo 3º da Portaria Interministerial que o regulamenta, o nome de cada empregador permanecerá publicado por um período de dois anos.
O Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão será divulgado no sítio eletrônico oficial do Ministério do Trabalho e Emprego, contendo o cadastro de pessoas físicas ou jurídicas autuadas em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.
O artigo 149 do Código Penal brasileiro tipifica como crime o ato de reduzir alguém à condição análoga de escravo, prevendo o seguinte:
Redução a condição análoga à de escravo
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Como se vê, de acordo com o Código Penal, as seguintes situações configuram o delito em comento:
- Submeter trabalhador a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva;
- Sujeitar trabalhador a condição degradante de trabalho;
- Restringir, por qualquer meio, a locomoção de trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
- Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
- Manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Dessa forma, no caso do cantor Leonardo a conduta que resultou a sua inclusão na “lista suja do trabalho escravo” se deu pelo fato dos trabalhadores de sua suposta fazenda estarem vivendo em condições degradantes.
O cantor Leonardo pode ser preso?
O delito de redução à condição análoga de escravo tem como pena reclusão de 2 a 8 anos, multa, além da pena correspondente à violência. Dessa forma, se ficar comprovado em processo criminal que o cantor agiu de forma dolosa para reduzir alguém à condição análoga de escravo é possível a condenação criminal dele à prisão.
No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, sendo fonte motriz dos sistemas de direitos humanos e o principal regramento de universalização da proteção do ser humano, expõe em seus artigos IV e XXIII:
“Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.
“Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.
Assim, a condenação da escravidão também consta de outros documentos internacionais, como a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura de 1926 e a Convenção Suplementar sobra a Abolição da Escravatura de 1956.
Nesse sentido, a Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 25/04/1957 e promulgada pelo Decreto n. 41.721/1957, define como trabalho forçado todo e qualquer trabalho para o qual o trabalhador não pode decidir livremente se aceita a atividade. Destacam-se, ainda, a Convenção n. 105 da OIT de 1957, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto n. 58.822/1966, que obrigam os países signatários a suprimir o trabalho forçado.
Não confundam trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão.
Como visto acima, o trabalho análogo à escravidão é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto.
Contudo, diferente é a escravidão, que não foi tipificada no Código Penal brasileiro por ter sido abolida pela Constituição Federal de 1988. E, para garantir isso, a CF/88 assegura, com base nos artigos 5º e 7º, várias liberdades individuais e sociais, como:
- Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
- Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
- Direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e
- Duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e 44 horas semanais.
Assim ensina a doutrina especializada:
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADPF 509 reconheceu a constitucionalidade da chamada “lista suja” do trabalho escravo ao julgar improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade da referida lista:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – CABIMENTO – SUBSIDIARIEDADE. A adequação da arguição de descumprimento de preceito fundamental pressupõe inexistência de meio jurídico para sanar lesividade – artigo 4º da Lei nº 9.882/1999. PORTARIA – CADASTRO DE EMPREGADORES – RESERVA LEGAL – OBSERVÂNCIA. Encerrando portaria, fundamentada na legislação de regência, divulgação de cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga à de escravo, sem extravasamento das atribuições previstas na Lei Maior, tem-se a higidez constitucional. CADASTRO DE EMPREGADORES – PROCESSO ADMINISTRATIVO – CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA – OBSERVÂNCIA. Identificada, por auditor-fiscal, exploração de trabalho em condição análoga à de escravo e lavrado auto de infração, a inclusão do empregador em cadastro ocorre após decisão administrativa irrecorrível, assegurados o contraditório e a ampla defesa. CADASTRO DE EMPREGADORES – NATUREZA DECLARATÓRIA – PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. Descabe enquadrar, como sancionador, cadastro de empregadores, cuja finalidade é o acesso à informação, mediante publicização de política de combate ao trabalho escravo, considerado resultado de procedimento administrativo de interesse público.
Caiu em concurso
O tema referente ao trabalho em condição análoga de escravo é recorrentemente cobrado em concursos públicos. Recentemente foi cobrada a seguinte questão na prova para o cargo de Advogado da União (2023):
O gabarito da questão é a letra D, sendo corretos os itens I e III.
O tema trabalhado aqui é ótimo para as provas da Magistratura do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Procuradorias.
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