*João Paulo Lawall Valle é Advogado da União (AGU) e professor de direito administrativo, financeiro e econômico do Estratégia carreira jurídica.
Entenda o caso
Imaginem a seguinte situação: você está inscrito em determinado concurso público em outro Estado da federação. A banca examinadora agenda um etapa do certame e você precisa se deslocar até a cidade da prova. Para isso compra passagem aérea, com conexão, mas a companhia aérea não cumpre o contrato de transporte e atrasa a sua chegada no destino, gerando a perda da prova do concurso público.
Neste caso, há o dever de indenizar por parte da empresa de transporte aéreo?
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais entendeu que sim.
No caso concreto, um candidato estava com etapa de concurso público (exame psicológico) agendado para o dia 03 de julho de 2022, às 07:00, para ingressar na carreira da Polícia Militar do Estado do Piauí.
O candidato adquiriu passagem aérea para se deslocar até a cidade de Teresina, com chegada marcada para a noite do dia 02 de julho de 2022, havendo conexão na cidade de Brasília.

O voo partiu com atraso da capital mineira e chegou em Brasília com intervalo de 8 minutos para a decolagem. Não obstante a informação prestada pela empresa aérea que o voo da conexão esperaria os passageiros que decolaram com atraso, ao pousar em Brasília o candidato procurou representante da empresa. Este, através de deboche, informou que o avião já havia decolado.
Com esta falha na prestação do serviço aéreo, o candidato perdeu a etapa do concurso público e foi eliminado do certame.
A questão foi judicializada perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Nas duas instâncias da justiça mineira reconheceu-se a responsabilidade civil da companhia de transporte aéreo e o determinado o pagamento de indenização por danos morais e materiais. Nesse caso, foram consideradas as peculiaridades do caso e o impacto psicológico sofrido pelo autor.
Análise Jurídica
Responsabilidade civil
A responsabilidade civil das empresas de transporte aéreo é objetiva, nos termos do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor e da Convenção de Montreal. Isso significa que a transportadora responde independentemente de culpa pelos danos causados aos passageiros em razão de atraso, cancelamento de voo, extravio de bagagem ou acidentes.
A regulamentação geral da responsabilidade civil por ato ilícito está prevista no artigo 186 do Código Civil. O dispositivo prevê que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Por sua vez, especificamente nas relações de consumo, o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor prevê o seguinte:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Caso fortuito
Para a configuração do dever de indenizar, basta a comprovação do dano e do nexo causal. A responsabilidade é afastada apenas em hipóteses excepcionais, como caso fortuito ou força maior devidamente comprovados.
No caso analisado, a companhia aérea trouxe em sua defesa que o atraso ocorreu em decorrência de readequação de malha aérea e que isto corresponderia a caso fortuito, excluindo o dever de indenizar.
O Poder Judiciário não acolheu o argumento, na medida que a situação alegada em defesa pela empresa representa fortuito interno e, portanto, inapto a excluir a responsabilidade civil.
Importante destacar a diferença entre fortuito interno e fortuito externo:
Fortuito interno | Fortuito externo |
O fortuito interno refere-se a acontecimentos imprevisíveis ou inevitáveis, mas inerentes ao risco da atividade desempenhada pelo agente. Por isso, não afasta a responsabilidade civil, pois representa um desdobramento daquilo que se espera como risco normal do exercício da atividade. Exemplo clássico: pane mecânica em aeronave. | O fortuito externo é um evento absolutamente estranho à atividade desenvolvida, imprevisível e inevitável, não relacionado ao risco assumido pelo agente. Nessas situações, o fortuito pode romper o nexo causal e afastar o dever de indenizar. Exemplo clássico: uma erupção vulcânica que impede a decolagem de voos. |
Conforme decidido pelo TJMG, alinhado com o STJ, o atraso de voo por “readequação da malha aérea” configura fortuito interno, inerente à atividade do transportador, não afastando a responsabilidade da companhia aérea.
Reconhecida a existência de responsabilidade civil, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais passou a análise do valor da indenização devida a título de danos morais. Segundo a Corte mineira, o valor da indenização por danos morais deve observar critérios de razoabilidade e proporcionalidade, considerando a extensão do dano e as peculiaridades do caso.
Conclusão
A circunstância da perda de prova do certame para a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais e a consequente eliminação do concurso público foi considerado prejuízo injusto suportado pela vítima e, portanto, apto a justificar a condenação em danos extrapatrimoniais.
Por fim, vejamos o acórdão proferido pelo TJMG:
I. CASO EM EXAME Apelação interposta contra sentença que julgou procedentes os pedidos de indenização por danos materiais e morais formulados em razão de atraso de voo que resultou na perda de conexão, impedindo o autor de participar de etapa eliminatória de concurso público.
II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO Há duas questões em discussão: (i) definir se a companhia aérea deve ser responsabilizada por danos materiais e morais em decorrência do atraso de voo e perda de conexão; e (ii) estabelecer se o valor fixado para a indenização por danos morais deve ser mantido ou reduzido.
III. RAZÕES DE DECIDIR Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor à relação entre passageiro e companhia aérea, estabelecendo a responsabilidade objetiva do fornecedor pelos danos causados ao consumidor (art. 14 do CDC). O atraso de voo por "readequação da malha aérea" configura fortuito interno, inerente à atividade do transportador, não afastando a responsabilidade da companhia aérea. A falha na prestação do serviço é comprovada pela perda da conexão e consequente desclassificação do autor do concurso público, resultando em dano material e moral. O valor da indenização por danos morais, fixado em R$15.000,00, observa os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, considerando as peculiaridades do caso e o impacto psicológico sofrido pelo autor.
IV. DISPOSITIVO E TESE Recurso desprovido. Tese de julgamento: 1. A companhia aérea responde objetivamente pelos danos causados ao consumidor em decorrência de atraso de voo que resulta em perda de conexão, mesmo quando decorrente de readequação da malha aérea, considerada fortuito interno. 2. O valor da indenização por danos morais deve observar critérios de razoabilidade e proporcionalidade, considerando a extensão do dano e as peculiaridades do caso. Dispositivos relevantes citados: CR/1988, art. 5º, V e X; CDC, arts. 2º, 3º, 14; CBA, art. 256, II. Jurisprudência relevante citada: STF, RE nº 636.331, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 25.05.2017; TJMG, Apelação Cível 1.0000.20.517087-1/001, Rel. Des. Roberto Vasconcellos, 17ª Câmara Cível, j. 26.11.2020. APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0000.24.360334-7/001 - COMARCA DE VESPASIANO - APELANTE(S): TAM LINHAS AÉREAS S/A LATAM - APELADO(A)(S): VANEILSON PEREIRA DO NASCIMENTO
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