CNJ aplica pena de “disponibilidade temporária” a Desembargador
Gil Ferreira/Agência CNJ

CNJ aplica pena de “disponibilidade temporária” a Desembargador

De início, esse texto se pauta a fazer uma análise jurídica do processo disciplinar apenas, sem qualquer juízo de valor.

Isto porque, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recentemente proferiu uma decisão que marca um ponto de inflexão na jurisprudência disciplinar aplicável aos magistrados brasileiros.

Ao julgar o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) nº 0007698-52.2021.2.00.0000, o Conselho não apenas reconheceu a gravidade da conduta de um desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT-12), mas também inovou na aplicação da pena. Isso porque optou-se pela disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço pelo prazo de 60 dias.

Esta decisão, longe de ser uma mera aplicação rotineira das sanções previstas na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), representa uma evolução significativa na forma como o órgão de controle lida com infrações disciplinares cometidas por membros do Judiciário, especialmente aqueles que ocupam cargos nos tribunais de segundo grau.

Nessa linha, vamos explicitar o voto da Cons. Renata Gil de Alcantara Videira do CNJ.

Contexto

O caso que deu origem a esta decisão paradigmática ocorreu em 29 de julho de 2020, durante uma sessão virtual da 3ª Câmara do TRT-12.

Em um momento de aparente descuido, o Desembargador em questão proferiu uma frase profundamente ofensiva direcionada a uma advogada:

"isso, faz essa carinha de filha da puta que você já vai ver".

Desembargador José Ernesto Manzi foi punido com afastamento de dois meses pela ofensa proferida à advogada Roberta Neves durante audiência virtual em 2020.

O comentário, inadvertidamente captado pelo microfone aberto, não apenas chocou os presentes na sessão virtual, mas também gerou ondas de indignação na comunidade jurídica ao ser amplamente divulgado.

Nessa linha, o caso teve grande repercussão na defesa de gênero e das prerrogativas da causídica, vinculada à OAB/SC. A ordem catarinense realizou, naquele ano, ato de desagravo e cobrou explicações do magistrado.

Nota da OAB-SC, ACAT-SC e IASC:

A Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da Seccional de Santa Catarina e de suas Comissões de Direito do Trabalho, de Direito Sindical, e da Subseção de Joinville, juntamente com o Instituto dos Advogados de Santa Catarina – IASC e a Associação Catarinense dos Advogados Trabalhistas – ACAT/SC, emitem a presente NOTA CONJUNTA DE REPÚDIO, por conta do ocorrido na sessão virtual de julgamento da 3ª Câmara do TRT da 12ª Região, do dia 29/07/2020, disponível neste link, em que o desembargador presidente da Sessão, em meio ao julgamento de recurso, proferiu palavras de baixo calão durante a sustentação oral realizada pela advogada de uma das partes.

Trata-se de conduta inapropriada, que viola o dever de urbanidade do magistrado, previsto no art. 35, IV, da LOMAN (Lei Complementar 35/79), e o parágrafo único do art. 6º do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8906/94).

As instituições que em conjunto firmam a presente nota repudiam esta conduta, por atentar contra a atuação da advocacia e violar suas prerrogativas, expondo a classe e a magistratura ao vexame público.

As entidades signatárias solidarizam-se com a advogada Roberta Martins Marinho Vianna Neves e tomarão as medidas cabíveis em relação ao incidente que, veiculado nas redes sociais, repercutiu negativamente perante a comunidade jurídica e toda a sociedade. A OAB/SC já oficiou o magistrado para que este se pronuncie sobre o ocorrido.

Nota do Desembargador que proferiu as palavras:

Sobre os acontecimentos de ontem, na Sessão da 3ª Câmara do TRT-SC, sob a minha Presidência, por dever de respeito à Instituição, aos Colegas Magistrados, aos Advogados, Servidores e assistentes, dou as seguintes explicações:

a) Sou extremamente respeitoso com os advogados nas sessões, inclusive utilizando o pronome Vossa Excelência, quando me refiro a eles, ainda que por vezes tratado como Vossa Senhoria. Não faço distinção alguma entre os patronos, nem considero isso apropriado a qualquer magistrado, por isso me mantenho absolutamente afastado, para poder julgar. Se tenho qualquer questão, simpatia ou antipatia que possa prejudicar minha imparcialidade, afasto-me do processo, voluntariamente.

b) As sessões de julgamento chegam a durar 5 a 6 horas, durante as quais é inevitável que respondamos alguma mensagem de WhatsApp, da família ou de amigos, principalmente durante a leitura do voto do Relator, posto que a íntegra dele já é conhecida há várias semanas, nada acrescentando de novo ao nosso conhecimento dos fatos (diferentemente do que ocorre nas sustentações orais). Essas respostas no WhatsApp podem se dar tanto de forma escrita, como em mensagem verbal e é consabido ser possível que o Google Meet e outros aplicativos sejam utilizados no mesmo computador, monitor e microfone (pelo Web Whatts).

c) AFIRMO, COM VEEMÊNCIA, que não me dirigi a qualquer dos participantes da sessão de julgamento, sejam partes, advogados, servidores ou magistrados. Qualquer afirmação nesse sentido e mais, que considere que, não só falei para os participantes da sessão de julgamento, como, ainda, tinha a intenção de ofender determinada e específica pessoa, é fruto de absoluta ilação, quiçá com o intuito de obter algum proveito processual, pessoal ou de classe.

d) Não sou hipócrita a ponto de afirmar que, mesmo em minha vida privada, não use, vez ou outra, alguma palavra pouco recomendada, mas é pelo mesmo motivo que não atiçarei fogo a um debate inútil que sequer seria cogitado, há poucos anos atrás, quando a sociedade se preocupava mais com a moral, do que com o moralismo.

e) Precisamos nos acostumar com os novos tempos e as novas tecnologias que diminuem não só o nosso direito de estar-só, como até os deveres que nos eram impostos nessas ocasiões, por conta da possibilidade de, inadvertidamente, tornarmos público o que tínhamos na esfera estritamente privada e mais, pessoal, já que, no momento do fato, me encontrava absolutamente sozinho em minha sala, ainda que mantivesse diálogo em alguns grupos de WhatsApp, de que participo, inclusive de magistrados e de familiares.

f) Informo que o dever de urbanidade se destina ao tratamento dado às partes, servidores, advogados, colegas ou o público em geral e que, evidentemente, não inclui a possibilidade de, um microfone ligado, captar até um pensamento balbuciado, de uma expressão menos educada, pronunciada até por quem busca policiar-se nessa questão (e todos os que me conhecem, dos Porteiros do meu prédio, à mais alta autoridade com quem já estive, passando por todas as camadas intermediárias) sabe que não faço acepção de pessoas, embora tenha um humor ácido para alguns, tratando a todos da mesmíssima maneira que gostaria de ser tratado. De qualquer modo, exceto para os amigos íntimos e em tom jocoso, nunca proferi palavras desse calão, com o intuito ofensivo.

g) Quanto à Nota de Repúdio da OAB/SC, nada a declarar. Ela está na defesa de uma advogada (que desconfio seja a do processo em que minha colega votava, sem certeza, apenas pelo momento da coincidência) e, o fez, talvez, de forma apressada, sem conhecer todos os lados da questão e, mesmo que os conhecesse, em questão de prerrogativas, dela não se pode exigir senão uma visão unilateral, mais próxima do advogado, do que de magistrado, como aliás fazem as Associações de Classe da Magistratura, em situações análogas.

h) Por fim, nestes tempos em que a liberdade de expressão é admitida apenas como um atributo próprio, mas absolutamente inadmitida como direito alheio, como se fosse possível essa conciliação, sou obrigado a lembrar que nós, juízes, apesar de nossa função de julgar, somos seres humanos, passíveis de erros, interjeições, ou vermos captadas nossas conversas paralelas, com interpretações variadas e infinitas, que as redes sociais propiciam e a mentalidade superficial contemporânea incentiva.

i) Se alguém se sentiu ofendido, seguramente não foi o interlocutor a quem me dirigi, em paralelo, no meu áudio. Qualquer outra pessoa que assim se sinta, o faz sem que qualquer iniciativa minha tenha contribuído para tal e, em razão do equívoco ora esclarecido.

Florianópolis, 30 de julho de 2020.

Em 2021, por unanimidade, um PAD foi instaurado no CNJ, contra o desembargador.

Análise minuciosa do Voto Vencedor da Cons. Renata Gil de Alcantara Videira

Em breve síntese, este processo buscou apurar a conduta específica do magistrado. Além disso, tornou-se um ponto focal para discussões mais amplas sobre ética judicial, respeito profissional e igualdade de gênero no ambiente jurídico.

O voto da Conselheira Renata Gil, relatora do acórdão, merece uma análise detalhada, tocando em diversos pontos críticos que merecem destaque.

Violação de deveres funcionais

De início, destacou que houve violação de deveres funcionais: a relatora identificou múltiplas infrações aos deveres funcionais do magistrado. Ela referenciou não apenas a LOMAN, mas também o Código de Ética da Magistratura Nacional.

Nessa linha, ao citar especificamente os artigos 35, IV e VIII da LOMAN, que tratam da urbanidade e da conduta irrepreensível na vida pública e particular, Gil estabeleceu um parâmetro claro de que o comportamento inadequado de um magistrado, mesmo que momentâneo, pode ter consequências disciplinares.

Ademais, um aspecto particularmente importante da análise foi a ênfase dada ao contexto em que a ofensa ocorreu. Isto porque, a Conselheira não se limitou a avaliar as palavras proferidas isoladamente, mas considerou o momento preciso em que foram ditas – logo após a sustentação oral da advogada e durante uma discussão sobre litigância de má-fé

Dessa maneira, esta contextualização é crucial para entender a gravidade da conduta, pois demonstra como o comentário poderia ser percebido como uma reação direta e hostil à atuação profissional da advogada, potencialmente minando sua credibilidade e autoridade perante o tribunal.

De outro lado, o voto trouxe a inclusão de uma análise sob a perspectiva de gênero. Isto porque, ao caracterizar o comentário como misógino, Gil reconheceu o impacto imediato sobre a advogada em questão. Além disso, ela também considerou as implicações mais amplas para as mulheres no campo jurídico.

Um outro viés utilizado foi a aplicação do conceito do “observador razoável“, amplamente utilizado em jurisdições internacionais, que serve como um padrão objetivo para avaliar a percepção pública de condutas judiciais.

Integridade e imparcialidade

Disponibilidade temporária para desembargador

Ou seja, ao considerar como um cidadão comum interpretaria o incidente, Gil efetivamente ampliou o escopo da análise para além do ambiente jurídico imediato, reconhecendo o impacto potencial na confiança pública no Judiciário.

Logo, demonstra uma compreensão nuançada de que a legitimidade do Poder Judiciário depende não apenas da correção técnica de suas decisões, mas também da percepção pública de sua integridade e imparcialidade.

Sanções disciplinares e inovação jurisprudencial

A decisão do CNJ neste caso é particularmente notável pela inovação na aplicação das sanções disciplinares.

Isto porque, a LOMAN prevê um rol de sanções disciplinares para magistrados, que inclui:

  • Advertência
  • Censura
  • Remoção compulsória
  • Disponibilidade com vencimentos proporcionais
  • Aposentadoria compulsória
  • Demissão (apenas para juízes não vitalícios)

No entanto, a própria lei cria um desafio ao restringir a aplicação das penas de advertência e censura apenas aos juízes de primeira instância, conforme estabelecido no parágrafo único do art. 42.

Lembre-se que, no caso, tratava-se de uma sanção a um Desembargador.

Logo, como destacou a Relatora esta limitação legal cria uma situação paradoxal. Isto é, infrações cometidas por Desembargadores, que teoricamente deveriam servir como exemplos de conduta para os juízes de primeiro grau, poderiam escapar de punições mais brandas, saltando diretamente para sanções mais severas.

Tal cenário comprometia a proporcionalidade na aplicação das penas. Em adição, isso ainda limitava a capacidade do CNJ de responder adequadamente a uma gama diversificada de infrações.

Logo, a inovação do Conselho ao aplicar a pena de disponibilidade por tempo determinado representa uma solução criativa e juridicamente sofisticada para este dilema. Ao interpretar a lei de forma a permitir uma gradação mais refinada das sanções, o CNJ demonstrou sua capacidade de adaptar o sistema disciplinar às necessidades práticas da administração da justiça, sem violar o princípio da legalidade.

Assim, apesar de não conter expressamente na LOMAN a disponibilidade “temporária”, o CNJ determinou que houvesse a “disponibilidade temporária” pelo prazo de 60 sessenta dias, sendo possível que o Desembargador retorne as atividade após o prazo.

O que é a pena de disponibilidade “pura” e/ou “temporária” para juízes?

Disponibilidade pura (indeterminada)

Essa sanção, prevista na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), é uma das mais graves e afasta o juiz de suas funções por tempo indeterminado, mantendo vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

O juiz pode retornar às suas funções após o afastamento. Contudo, isso depende de uma reavaliação do tribunal, que pode demorar anos, como no caso do juiz mencionado, afastado por 32 anos sem retorno.

Recentemente, o CNJ alterou a Resolução 135/11, especificando que:

  • Para penas de até dois anos, o juiz pode retornar imediatamente, sem necessidade de realizar cursos de atualização.
  • Para penas entre dois e cinco anos, o magistrado deve realizar cursos de atualização antes de voltar.
  • Para afastamentos superiores a cinco anos, o tribunal deve instaurar um PAD (Processo Administrativo Disciplinar) para avaliar a possibilidade de aposentadoria compulsória do juiz, caso ele não seja mais considerado apto para o cargo.

Disponibilidade temporária de 60 dias

Esta é uma sanção disciplinar temporária e específica, aplicada por um período fixo, como os 60 dias citados. Durante esse período, o juiz está afastado de suas funções e recebe vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.

Ao contrário da disponibilidade pura, a temporária tem um prazo claramente definido, após o qual o magistrado pode voltar às suas funções sem a necessidade de reavaliações ou de cumprimento de cursos.

Nesse tipo de sanção, o impacto na carreira é muito menor, uma vez que o afastamento é curto e o retorno é praticamente garantido após o cumprimento do prazo.

Resumo das principais diferenças:

  • Disponibilidade pura: indeterminada, exige reavaliação pelo tribunal e pode resultar em aposentadoria compulsória após cinco anos sem reaproveitamento. Juízes afastados por até dois anos retornam sem exigência de cursos; entre dois e cinco anos, é necessário passar por cursos de atualização.
  • Disponibilidade temporária de 60 dias: tem um prazo fixo, após o qual o juiz retorna às suas funções sem necessidade de reavaliação ou cursos de atualização.

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