Quando o bandido esquece o celular: a polícia pode acessar? Tema 977 do STF

Quando o bandido esquece o celular: a polícia pode acessar? Tema 977 do STF

Imagine a cena. Centro do Rio, saída de banco, dois caras armados rendem uma vítima. Rápido, violento, eficiente. Ou quase.

Na correria da fuga, ploft — celular no chão. A vítima, ainda tremendo, entrega o aparelho aos policiais. Eles abrem a agenda, checam as últimas ligações e… tcharam! Bandido identificado e preso no mesmo dia. Fim da história? Nem de longe.

O sujeito, Orlando Leovaldo Busin, foi condenado em primeira instância. Normal.

Todavia, os desembargadores do Tribunal de Justiça carioca resolveram criar caso: “Peraí, a polícia pode sair fuçando celular alheio assim, sem ordem judicial?” E anularam tudo. Disseram que era prova ilícita, que violava privacidade, que a Constituição não permitia.

O Ministério Público quase surtou. Com efeito, como assim?

O cara literalmente deixou cair o celular enquanto fugia de um assalto! Seria o mesmo que deixar a carteira com RG — óbvio que a polícia ia olhar, né?

Nesse diapasão, interpôs recurso extraordinário com agravo, originando o ARE 1.042.075 e o tema foi parar no STF, veja o que se decidiu de maneira resumida:

1. A mera apreensão do aparelho celular, nos termos do artigo 6º do Código de Processo Penal (CPP), ou em flagrante delito, não está sujeita a reserva de jurisdição. Contudo o acesso dos dados nele contidos:

1.1. Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso ou de quem seja seu proprietário não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida.

1.2. Em se tratando de aparelho celular apreendido na forma do artigo 6º do CPP ou por ocasião da prisão em flagrante, o acesso aos respectivos dados será condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial, que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e a autodeterminação informacional, inclusive em meios digitais. Nesses casos, a celeridade se impõe, devendo a autoridade policial atuar com a maior rapidez e eficiência possíveis e o Poder Judiciário conferir tramitação e apreciação prioritárias aos pedidos dessa natureza, inclusive em regime de plantão.

2. A autoridade policial poderá adotar as providências necessárias para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido antes da autorização judicial, justificando, posteriormente, as razões para o devido acesso.

3. As teses acima enunciadas só produzirão efeitos prospectivos, ressalvados os pedidos eventualmente formulados por defesas até a data do encerramento do julgamento.

Celular esquecido em cena do crime pode ser usado como prova, decide STF

O artigo 6º do CPP e a realidade que ele nem sonhava

Eis que surge o problema de fundo.

Veja, nosso Código de Processo Penal é de 1941.

Naquela época, o artigo 6º mandava a polícia preservar a cena do crime e “apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais”. Simples assim.

Ocorre que os legisladores de 1941 jamais imaginaram que um dia existiria um negócio chamado smartphone.

Ora, seu aparelhinho que cabe no bolso e guarda sua vida inteira — fotos, conversas, extratos bancários, histórico de localização, aquela mensagem comprometedora que você mandou às 3 da manhã depois de umas cervejas…

Destarte, você percebe o tamanho da encrenca jurídica.

Assim, se a polícia pode “apreender objetos”, pode também vasculhar tudo que tem dentro deles? Uma coisa é abrir uma carteira e ver documentos.

Outra, bem diferente, é entrar num universo digital com milhares de informações pessoais protegidas pelo artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal. Algumas relacionadas ao crime. A maioria, não.

Foi esse imbróglio que chegou ao STF, com repercussão geral reconhecida (Tema 977), relatado pelo ministro Dias Toffoli. Por conseguinte, a decisão unânime saiu em junho de 2025 – e vai cair nas provas.

Toffoli e a construção hermenêutica: nem oito nem oitenta

De início, o Ministro poderia ter ido por dois caminhos extremos:

Primeiro: privacidade acima de tudo, polícia nunca pode tocar em celular sem ordem judicial.

Segundo: segurança pública em primeiro lugar, bandido que perde celular em crime perde também direito à privacidade.

Não obstante, Toffoli construiu uma solução mais sofisticada, que diferencia situações completamente distintas com base nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Vamos lá.

1)Situação número um: o tal “encontro fortuito” — quando o meliante esquece ou abandona o celular na cena do crime.

    Tipo o nosso amigo Orlando.

    Nesse caso específico, a polícia pode sim acessar os dados.

    Porém — e aqui está o ponto nevrálgico —, não é festa.

    Só pode olhar o necessário para descobrir quem é o dono ou quem cometeu o crime. Achou o que precisava? Para tudo.

    Ademais, posteriormente tem que explicar pro juiz por que mexeu no aparelho, justificando a medida adotada.

    2) Agora, situação dois: quando pegam o sujeito com o celular no bolso, numa prisão em flagrante, verbi gratia.

    Aí muda tudo. Completamente. A polícia não pode nem sonhar em desbloquear o aparelho sem uma de duas coisas: ou o dono autoriza expressamente (e tem que ser autorização de verdade, não vale pressão psicológica), ou consegue ordem judicial.

    É o que estabelecem, ipsis litteris, os artigos 7º, III, e 10, §2º, da Lei 12.965/2014.

    Percebeu a diferença?

    Com efeito, quem larga o celular e sai correndo meio que abriu mão dele naquele momento. Quem está com o aparelho consigo mantém incólumes todos os seus direitos fundamentais.

    O Marco Civil encontra a Constituição numa interpretação sistemática

    Aqui a coisa fica interessante — e juridicamente complexa.

    O STF não estava lidando só com o velho CPP. Tinha também a Lei 12.965/2014, o famoso Marco Civil da Internet.

    O artigo 7º, inciso III, dessa lei diz que dados pessoais só podem ser acessados com “consentimento livre e expresso” ou ordem judicial.

    Prima facie, parecia caso encerrado.

    Todavia, Toffoli foi buscar o artigo 5º, LXXIX, da Constituição.

    Esse dispositivo nem existia até 2022, quando a Emenda Constitucional 115 o incluiu.

    Ele garante “a proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.

    Dessarte, o que o Supremo fez foi uma interpretação sistemática e teleológica.

    Disse: “Olha, o Marco Civil vale, a proteção constitucional existe, mas no caso específico do celular abandonado em crime, abrimos uma exceção controlada”.

    Assim, não é liberou geral. É uma janela estreita, com regras rígidas.

    Outrossim, mesmo quando a polícia pode acessar o celular abandonado, ela não pode usar qualquer coisa que encontrar. Os dados só servem para investigar aquele crime específico. É o que a doutrina chama de teoria dos frutos da árvore envenenada às avessas.

    Deixa eu explicar melhor.

    O bandido assalta o banco e perde o celular.

    A polícia olha e descobre quem ele é. Beleza. Mas aí também encontra mensagens sobre tráfico de drogas. Pode usar? Não! Achou fotos de sonegação fiscal? Também não! O acesso é vinculado àquele crime, àquele momento. Encontrou outra coisa? Azar. Finge que não viu. É a aplicação do princípio da especialidade da prova.

    A preservação cautelar de dados e o princípio da celeridade processual

    Tem outro detalhe interessante na decisão.

    Acesso

    Isto porque, a polícia pode fazer um backup forense do celular antes mesmo de ter autorização judicial. “Ué, mas não tinha que pedir pro juiz primeiro?” Calma que faz sentido juridicamente.

    Isto porque, dados digitais são elementos probatórios voláteis.

    Podem sumir num piscar de olhos.

    Ademais, o bandido pode apagar tudo remotamente, a bateria pode acabar, o aparelho pode “dar pau”.

    Por conseguinte, o STF disse: preserva primeiro, pede autorização depois. É a aplicação analógica do poder geral de cautela, previsto no artigo 297 do CPC.

    Não obstante — sempre tem um “não obstante” no Direito —, a contrapartida é pesada.

    A decisão invoca repetidamente o princípio da celeridade processual.

    Tradução: todo mundo tem que correr. A polícia tem que ser rápida e eficiente. E o Judiciário? Ah, o Judiciário tem que dar prioridade absoluta a esses pedidos.

    Inclusive, em regime de plantão judiciário.

    Sabe o que isso significa? Que juiz plantonista, aquele que antes só cuidava de prisão em flagrante e medidas urgentíssimas, agora vai ter que analisar pedido de acesso a celular às 2 da manhã de domingo. O WhatsApp do meliante não pode esperar segunda-feira. É a digitalização do plantão judicial, por assim dizer.

    A autodeterminação informacional como novo paradigma constitucional

    Por fim, tem um conceito importado da Alemanha que o STF adorou: “autodeterminação informacional” (informationelle Selbstbestimmung, para os germanófilos).

    Sounds fancy, né? Mas o conceito é importante juridicamente.

    Com efeito, significa que você tem o direito de controlar o que acontece com seus dados.

    Não é só privacidade. É poder de decisão sobre o acesso a sua informação pessoal. O Tribunal Constitucional Federal alemão desenvolveu isso no famoso caso do censo de 1983.

    Esse conceito ganhou status constitucional no Brasil com a EC 115/2022. Por conseguinte, muda muita coisa. Antes, a discussão era binária: sigilo versus investigação. Agora tem uma terceira dimensão: o controle do indivíduo sobre seus próprios dados, mesmo quando não são sigilosos.

    Verbi gratia: suas fotos de família não são secretas, mas são suas. A lista de contatos do seu celular não é sigilosa, mas você tem o direito de decidir quem acessa.

    Em resumo:

    “1. A mera apreensão do aparelho celular, nos termos do art. 6º do CPP ou em flagrante delito, não está sujeita à reserva de jurisdição. Contudo, o acesso aos dados nele contidos deve observar as seguintes condicionantes: 1.1 Nas hipóteses de encontro fortuito de aparelho celular, o acesso aos respectivos dados para o fim exclusivo de esclarecer a autoria do fato supostamente criminoso, ou de quem seja o seu proprietário, não depende de consentimento ou de prévia decisão judicial, desde que justificada posteriormente a adoção da medida. 1.2. Em se tratando de aparelho celular apreendido na forma do art. 6º do CPP ou por ocasião da prisão em flagrante, o acesso aos respectivos dados será condicionado ao consentimento expresso e livre do titular dos dados ou de prévia decisão judicial (cf. art. 7º, inciso III, e art. 10, § 2º, da Lei nº 12.965/2014) que justifique, com base em elementos concretos, a proporcionalidade da medida e delimite sua abrangência à luz de direitos fundamentais à intimidade, à privacidade, à proteção dos dados pessoais e à autodeterminação informacional, inclusive nos meios digitais (art. 5º, X e LXXIX, CRFB/88). Nesses casos, a celeridade se impõe, devendo a Autoridade Policial atuar com a maior rapidez e eficiência possíveis e o Poder Judiciário conferir tramitação e apreciação prioritárias aos pedidos dessa natureza, inclusive em regime de plantão. 2. A autoridade policial poderá adotar as providências necessárias para a preservação dos dados e metadados contidos no aparelho celular apreendido, antes da autorização judicial, justificando, posteriormente, as razões de referido acesso. 3. As teses acima enunciadas só produzirão efeitos prospectivos, ressalvados os pedidos eventualmente formulados por defesas até a data do encerramento do presente julgamento".

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