Autismo – “problema”? Tratamento é “passear na floresta”?

Autismo – “problema”? Tratamento é “passear na floresta”?

As recentes declarações de um Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferidas durante o Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, merecem uma análise técnica aprofundada, considerando tanto o contexto jurídico quanto seus desdobramentos científicos.

Veja aqui o vídeo:

Ministro do STJ diz que autismo é “problema” e que clínicas são “passeio na floresta”

Análise dos trechos controversos

Primeiro trecho polêmico

"Para os pais, é uma tranquilidade saber que o seu filho, que tem um problema, vai ficar de 6 a 8 horas por dia em uma clínica especializada, passeando na floresta. Mas isso custa".

"Tratamento em ambiente natural. Eu não sei o que é isso. Faz parte da ABA. Eu acho que leva a pessoa pra floresta, abraça árvore. Deve ser esse negócio”.

Este trecho é controverso por três aspectos:

  1. Uso do termo “problema” para se referir ao TEA;
  2. Sugestão de que pais buscam “tranquilidade” ao enviar filhos para tratamento;
  3. Banalização das terapias especializadas ao compará-las a “passeio na floresta”.

De início, a caracterização do Transtorno do Espectro Autista (TEA) como um “problema”, conforme expresso na declaração representa um grave desalinhamento com todo o arcabouço jurídico e científico atual.

Nossa legislação, a partir da Lei 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) e reforçada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), reconhece expressamente o autismo como uma condição do neurodesenvolvimento que constitui deficiência para todos os efeitos legais, merecendo proteção integral do Estado e da sociedade.

Inclusive, a inadequação da declaração se torna ainda mais evidente quando consideramos os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da não-discriminação, além dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil através da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Autismo

Perceba, quando se menciona que crianças passam “6 a 8 horas por dia em uma clínica especializada, passeando na floresta”, é necessário esclarecer que segundo a Sociedade Brasileira de Psicologia e Análise do Comportamento (SBPAC, 2023), a ABA (Applied Behavior Analysis) é uma ciência com mais de 40 anos de pesquisas e evidências científicas.

Ademais, de acordo com Lovaas (1987), pioneiro no tratamento intensivo, a intervenção estruturada pode requerer de 20 a 40 horas semanais.

Em outras palavras, a Applied Behavior Analysis (ABA) é uma metodologia cientificamente validada, reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia. Inclusive, o tratamento intensivo tem protocolos específicos e estruturados, bem como, o”ambiente natural” refere-se a situações cotidianas controladas para desenvolvimento de habilidades.

Fontes

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no atendimento às pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Brasília: CFP, 2023. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/>.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. Transtorno do Espectro do Autismo: Atualização de Condutas em Pediatria, 2023. Disponível em: <https://www.sbp.com.br/>.

Segundo trecho polêmico

"Então, crianças que estão dentro do espectro, Transtorno do Espectro Autista, que é uma abrangência, o autismo pode ser, qualquer um de nós pode ter um fator de autismo, qualquer um de nós, acredito que eu, deva ter também".

Assim, o trecho é problemático por:

  1. Relativização do diagnóstico do TEA;
  2. Imprecisão técnica sobre o conceito de espectro;
  3. Banalização do transtorno ao sugerir que “qualquer um” pode ter.

Veja, propriamente, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, 2013) estabelece critérios específicos para o diagnóstico do TEA.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (CID-11, 2022), o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento com características próprias e critérios diagnósticos definidos, sendo assim, não existe uma imprecisão técnica.

Fontes

AUTISM SPEAKS. Applied Behavior Analysis (ABA). Disponível em: <https://www.autismspeaks.org/applied-behavior-analysis-aba-0>. Acesso em: 22 nov. 2024.

CDC – Centers for Disease Control and Prevention. Autism Spectrum Disorder (ASD). Disponível em: <https://www.cdc.gov/ncbddd/autism/>. Acesso em: 22 nov. 2024.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. CID-11: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 11ª ed., 2022.

Terceiro trecho polêmico – sobre a Lei Romário

"Essa Lei 14.454, chamada de Lei Romário, porque o senador Romário foi indicado como relator. Não por acaso, mas ele tem um filho com problemas de cognição, uma filha, não sei bem...".

Este trecho é controverso por:

  1. Sugestão de parcialidade na relatoria da lei;
  2. Imprecisão ao se referir à condição da filha do senador;
  3. Questionamento implícito da legitimidade da legislação.

Em verdade, as declarações parecem ser uma crítica quanto a superação do entendimento do STJ pela chamada Lei Romário, nos caso da jurisprudência sobre plano de saúde. Vamos explicar detalhadamente.

A questão do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) passou por significativa evolução jurisprudencial e legislativa nos últimos anos, culminando com a promulgação da Lei 14.454/2022, conhecida como Lei Romário.

Veja, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou, durante anos, uma relevante divergência interna sobre a interpretação do rol de procedimentos da ANS.

A Terceira Turma do tribunal adotava o entendimento de que o rol seria exemplificativo (numerus apertus), significando que as operadoras de planos de saúde deveriam cobrir procedimentos mesmo quando não listados expressamente pela ANS, desde que houvesse prescrição médica e cobertura contratual para a doença.

Isso implicava diretamente que os tratamentos de autismo que muitas vezes não estavam no rol da ANS pudessem ser coberto pelos planos de saúde.

A lógica fundamentava-se na premissa de que os planos de saúde poderiam estabelecer as doenças cobertas, mas não limitar o tipo de tratamento a ser utilizado, preservando assim a autonomia médica e o melhor interesse do paciente.

Por outro lado, a Quarta Turma do STJ defendia a taxatividade do rol (numerus clausus), argumentando que esta interpretação proporcionaria maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações contratuais entre operadoras e beneficiários.

Em síntese, o entendimento baseava-se na necessidade de garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e a própria sustentabilidade do sistema de saúde suplementar, uma vez que a previsibilidade dos custos permitiria o oferecimento de planos a preços mais acessíveis.

A tentativa de pacificação pelo STJ

Em junho de 2022, a Segunda Seção do STJ, ao julgar os Embargos de Divergência nos Recursos Especiais 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, buscou pacificar o entendimento sobre a matéria.

A decisão, sob relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, adotou uma posição intermediária: estabeleceu o caráter taxativo do rol, mas com possibilidade de flexibilização em situações excepcionais, mediante o cumprimento de requisitos específicos:

Em junho de 2022, o STJ decidiu que o rol de procedimentos da ANS era, em regra, taxativo, podendo ser mitigado quando atendidos determinados critérios (EREsps nºs 1.886.929/SP e 1.889.704/SP).
A Lei nº 14.454/2022 promoveu alteração na Lei nº 9.656/98 (art. 10, § 13) para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar.
A superveniência do novo diploma legal (Lei nº 14.454/2022) foi capaz de fornecer nova solução legislativa, antes inexistente, provocando alteração substancial do complexo normativo.
Ainda que se cogite que a alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.454/2022 foi uma forma de “interpretação autêntica”, mesmo assim essa mudança não produz efeitos retroativos, operando apenas efeitos ex nunc, já que a nova regra modificadora ostenta caráter inovador.
Em âmbito cível, vigora o Princípio da Irretroatividade, de forma que a lei nova não alcança fatos passados, ou seja, aqueles anteriores à sua vigência. Seus efeitos somente podem atingir fatos presentes e futuros, salvo previsão expressa em outro sentido e observados o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido.
Vale ressaltar, contudo, que a Lei nº 14.454/2022, embora não possa retroagir, aplica-se imediatamente a partir de sua vigência para os tratamentos de caráter continuado.
Dessa forma, nos tratamentos de caráter continuado, deverão ser observadas, a partir da sua vigência (22/09/2022), as inovações trazidas pela Lei nº 14.454/2022, diante da aplicabilidade imediata da lei nova.

STJ. 2ª Seção. REsp 2.037.616-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 24/4/2024 (Informativo 812).

Superação da jurisprudência pela “Lei Romário”

Assim, a promulgação da Lei 14.454/2022 (Lei Romário) representou uma verdadeira revolução no tratamento da matéria.

Isto porque, a nova legislação alterou significativamente o artigo 10 da Lei 9.656/98, incluindo os parágrafos 12 e 13, que estabeleceram critérios objetivos para a obrigatoriedade de cobertura de procedimentos não previstos no rol da ANS.

O texto legal determinou que as operadoras devem cobrir tratamentos prescritos por profissionais de saúde habilitados, desde que: (i) existam comprovações científicas de eficácia; (ii) haja recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC); ou (iii) exista recomendação de ao menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.

Nesse sentido, é possível afirmar que a Lei Romário modificou o entendimento do STJ.

De mais a mais, cabe ressaltar que nos casos de autismo, já há decisões significativas do STJ, dizendo que planos de saúde são obrigados a custear psicopedagogia, equoterapia e musicoterapia para crianças com autismo, se tais tratamentos tiverem sido prescritos pelo médico assistente:

A psicopedagogia, a equoterapia e a musicoterapia são de cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde para os beneficiários com transtornos globais do desenvolvimento, dentre eles o transtorno do espectro autista.

STJ. 3ª Turma.REsp 2.064.964/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 20/2/2024 (Informativo 802).

E, você, o que acha da Lei Romário, o rol da ANS deve ser taxativo ou exemplificativo? Concorda com as falas do Ministro?


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